Comunhão é participação, também na ação
Proclamar Libertação – Volume 44
Prédica: 1 Coríntios 10.16-17
Leituras: Êxodo 24.1-11 e Mateus 26.36-56
Autoria: Flávio Schmitt
Data Litúrgica: Quinta-Feira da Paixão
Data da Pregação: 09/04/2020
1. Introdução
Os textos de leitura para a Quinta-Feira da Paixão nos colocam em sintonia com a comunhão proporcionada pelo corpo e sangue de Cristo. No texto de Êxodo 24.1-11, somos confrontados com a aliança feita por Moisés. Depois de ler o livro da aliança diante do povo, o povo responde prometendo obediência (v. 7). Em seguida, Moisés toma o sangue dos holocaustos e sacrifícios que havia sido recolhido em bacias e asperge sobre o povo dizendo: eis aqui o sangue da aliança (v. 8). Com essas palavras estava selada a aliança entre Deus e o povo.
No texto de Mateus 26.36-56, temos a narrativa que fala da presença de Jesus com os discípulos no Getsêmani (que significa prensa), ocasião em que Jesus é preso. Em profundo estado de tristeza (v. 38), a tônica da primeira parte do texto gira em torno da vigília e da oração (26.36-46). Há um contraste entre o dormir dos discípulos e a atitude de oração de Jesus. Os versículos seguintes descrevem a traição (26.47-50), o papelão protagonizado por Pedro (26.51-52) e a fuga dos discípulos (26.53-56). O corpo, entregue para ser julgado e condenado, é o corpo da pessoa de Jesus.
Em 1 Coríntios 10.16-17 Paulo está discutindo a função da Ceia na vida da comunidade de Corinto. O apóstolo afirma que a comunhão da comunidade ocorre no sangue e corpo de Cristo.
Por ocasião do início da Quaresma, é manifestada a disposição de começar de novo, de renovar o viver diário, de deixar que as palavras do evangelho iluminem a vida das pessoas. Quaresma é um tempo para questionar a vida que se vive e oportunidade de comprometer-se com a nova vida que se espera. Agora que a Quaresma está chegando ao final, quando mais uma vez a comunidade lembra e relembra os acontecimentos que envolveram os últimos dias de Jesus, é hora de voltar a atenção para o que isso tudo significa em nossas vidas.
Ao fazer memória da Quinta-Feira Santa, quando o tempo de mais uma Quaresma se abrevia, somos desafiados a olhar para os dias que se passaram e avaliar o que a Quaresma nos possibilitou. Porém, acima de tudo, a Semana da Paixão é oportunidade para olhar com mais atenção para o que Deus fez por nós na morte e ressurreição de Jesus.
2. Exegese
O texto
V. 16 – O texto grego começa dizendo: o cálice (to potērion) da bênção (tēs eulogias) que abençoamos (ho eulogoumen) não é a comunhão (koinōnia) do sangue (tou haimatos) de Cristo (tou Chistou)? O pão (ton arton) que partimos (hon klōmen), não é a comunhão (koinōnia) do corpo (tou sōmatos) de Cristo? As perguntas retóricas somente podem ser respondidas com um sonoro sim. Como é possível perceber, apenas as palavras Cristo e comunhão são repetidas no versículo.
Autores de auxílios de edições anteriores do PL (VII, XIII) têm chamado atenção para a inversão da sequência cálice-pão. O mais comum é a sequência contrária: pão-cálice. “Os exegetas fazem muitas suposições, dizendo que em Corinto teria havido uma sequência diferente das demais comunidades, ou que a inversão teria sido feita por Paulo para facilitar a ligação com a ideia da comunidade como pão, no v. 17” (DREHER, 1988, p. 173).
A expressão “cálice da bênção“ remete à prática judaica de proferir a ação de graças sobre o cálice de vinho no final da refeição, em sinal de gratidão. A palavra “comunhão“ aponta para a união comum proporcionada pela participação na partilha do vinho e do pão.
Paulo emprega a expressão “sangue de Cristo“ para falar da morte de Je- sus. Com a palavra “sangue“ Paulo faz referência ao sofrimento e morte violenta de Cristo. É justamente nessa morte que reside a perspectiva salvífica de Jesus. Se a vida reside no sangue, conforme o entendimento judaico (Lv 17.11), derramar sangue significa matar (Gn 9.6). O que Paulo destaca ao falar do sangue de Cristo é o caráter salvífico da morte violenta de Jesus.
Em suma, ao beber do cálice, tem-se a participação na ação salvífica da morte violenta de Cristo na cruz. De modo semelhante, o partir do pão é participação na comunhão do corpo de Cristo entregue à morte na cruz. Ao falar do pão, Paulo retoma uma prática judaica (Jr 16.7) de abençoar o pão, parti-lo e distribuir aos convivas.
V. 17 – Porque (hoti o[ti) um pão (eis artos), um corpo (hen sōma), muitos somos (hoi polloi esmen), pois todos (hoi gar pantes) participamos (metecho- men) de um único pão (ek tou henos artou). Chama atenção que o texto apenas destaca o elemento do pão.
O que chama nossa atenção é o acento que Paulo dá ao pão. A comunidade de Co- rinto não teve apenas
um pão em sua celebração. Mesmo assim, pode-se falar de um pão, pois os muitos pães passam a ser um
em virtude de seu significado: todos eles dão participação na morte salvífica de Cristo. Também
para a comunidade essa única dádiva tem um significado: a multidão de crentes torna-se um corpo.
Participando da morte de Cristo ao comerem do pão, os crentes passam a formar um todo orgânico.
Sua unidade não procede de decisão própria, mas é conhecida sempre de novo pelo Ressurreto que,
na Ceia, dá participação em sua morte salvífica. Eles passam a formar
uma fraternidade cristã (DREHER, 1988, p. 174).
O contexto
O contexto em que Paulo transmite essas palavras à comunidade de Corinto está relacionado com a discussão iniciada em 1 Coríntios 8.1 e que se estende até o capítulo 11. Nessa parte da carta, Paulo trata da questão do consumo de carne dedicada aos deuses por ocasião do abate. A expressão carne sacrificada aos ídolos, normalmente utilizada para descrever a discussão da carta, já parte de um pressuposto cristão. No fundo, a forma como Paulo se expressa revela uma prática da sociedade de Corinto.
A pergunta norteadora da discussão consiste basicamente em esclarecer se uma pessoa seguidora de Jesus pode ou não comer da carne comercializada no mercado público de Corinto e que foi abatida segundo um ritual religioso. Possivelmente a questão tenha sido colocada em discussão por parte de judeus. Para os judeus era proibido, por conta das leis de pureza e impureza, comer esse tipo de carne. Por essa razão judeus mantinham seus próprios abatedouros. Podemos pressupor que para os cristãos de origem não judaica, quem sabe acostumados com o consumo dessa carne, a questão não era assim tão relevante, embora que, pelo que nos dá a entender 1 Coríntios 8.7, esses também faziam objeção ao consumo dessa carne.
Ainda assim, o assunto está colocado e o apóstolo se posiciona. Para responder à interrogação, Paulo recorre a quatro argumentos:
1. conhecimento e autoridade para o consumo de carne sacrificada: 8.1-13;
2. exemplo pessoal de desistência de liberdade: 9.1-27;
3. admoestação quanto à falsa segurança: 10.1-22;
4. liberdade e responsabilidade quando do consumo de carne sacrificada: 10.23-11 (DREHER, 1988, p. 172).
Portanto o texto da pregação faz parte do terceiro ponto da argumentação do apóstolo. Num primeiro momento, Paulo recorre ao exemplo do êxodo (v. 1-13). A experiência do deserto serve como advertência. A situação é apresentada como sendo uma verdadeira tentação diante da qual a comunidade não pode sucumbir. No caminho escolhido pela comunidade reside a fidelidade ou infidelidade à aliança.
Qual é a tentação? Disso o texto nos fala na sequência. A tentação é o que para Paulo é idolatria (v. 14), ou seja, não celebrar a ceia devidamente. No que diz respeito ao comer carne vendida no mercado, Paulo diz: comei de tudo que se vende no mercado, sem nada perguntardes por motivo de consciência; porque do Senhor é a terra e a sua plenitude (v. 25-26).
Paulo polemiza, em 1 Coríntios 10.1-22, contra a participação em ceias pagãs com carne sacrificada a ídolos, partindo do Batismo e da Santa Ceia. Aparentemente (v. 12), os coríntios pensavam estar imunes à apostasia em virtude de sua participação nos sacramentos. Apontando para o êxodo e para a peregrinação de Israel no deserto, Paulo afirma que a salvação jamais está definitivamente garantida. Batismo e Santa Ceia não são garantia, mas chamam à obediência. A dádiva do Batismo e a da Santa Ceia chamam à responsabilidade. Com isso, Paulo elimina qualquer compreensão mágica dos sacramentos. Por outro lado, Paulo também evidencia que os sacramentos não têm seu significado apenas a partir da fé. Também em caso de desobediência os sacramentos têm um significado: condenação. Essa é a reação da graça oferecida para a salvação, quando rejeitada pelos seres humanos. Por isso (v. 14), em virtude da fidelidade de Deus (v. 13), a pessoa cristã nega-se, peremptoriamente, a participar de ceias cultuais pagãs, as quais Paulo designa de idolatria (v. 14). A participação nessas ceias é volta à vida anterior, pagã, da qual Cristo libertou a pessoa cristã, e provocação do juízo divino (DREHER, 1988, p. 172).
Paulo dá a entender que o problema maior da comunidade não está efetivamente no problema que lhe foi informado. Pior do que a questão da carne abatida em nome de alguma divindade e consumida por pessoas que seguem Cristo em outros ambientes é o que está acontecendo na própria comunidade. Para o apóstolo, a verdadeira idolatria é outra. Trata-se das divisões existentes na igreja. Por um lado, a divisão entre ricos e pobres (1Co 11.17-22); de outro, a divisão entre os partidos: os de Paulo, os de Pedro e os de Apolo. Para completar o quadro, Paulo é considerado como um pregador de menor capacidade em relação a Apolo e a Pedro (1Co 3.4; 11.19).
Como resposta à situação, Paulo centra sua argumentação na questão central: na cruz. Para o apóstolo, pão e vinho são sinais visíveis da cruz e ressurreição de Jesus. O cálice não é outra coisa que a comunhão no sangue de Cristo. O pão não é outra coisa que a comunhão no corpo de Cristo. Vinho e pão, sangue e corpo, somente serão elementos dignos da morte e ressurreição de Jesus onde e quando estiverem a serviço da comunhão entre os filhos e filhas de Deus.
3. Meditação
Central para a pregação deve ser a compreensão de que o sangue e o corpo de Cristo na Santa Ceia nos dão participação na sua morte e ressurreição. Paulo é claro nisso. Pela comunhão somos incluídos no corpo de Cristo, passamos a fazer parte desse corpo. O apóstolo dá a entender que se é possível ter comunhão com o sacrifício aos ídolos, “quanto mais pão e vinho nos dão comunhão com o corpo e o sangue de Jesus, quando realmente são aceitos nesta fé” (BERNHARD, 1982, p. 109).
Contudo, antes importa perguntar pelo que efetivamente significa “partir o pão”. Para a maioria das comunidades, Santa Ceia, partir o pão, não passa de um ritual do qual é necessário participar. A comunhão no sangue e corpo de Cristo pela qual a comunidade agradece deveria ser mais que um gesto eucarístico. Para fazer jus à cruz, implica a partilha do pão e do fruto do trabalho no dia a dia de quem participa do corpo. Aqui os gestos de partilha do próprio Jesus nos querem abrir os olhos para ver. Comunhão é participação, também na ação.
Um ponto importante a ser considerado para a pregação diz respeito à unidade do corpo. Quem efetiva a unidade no corpo é a presença de Cristo no sangue e no pão. Ao fazer memória do que Deus fez por nós em Cristo, a comunidade que celebra a comunhão no corpo e sangue de Cristo se compromete e responsa- biliza pela unidade desse corpo. Unidade não é resultado da boa vontade de quem participa da comunhão ou da comunidade, mas dádiva de quem se entende como acolhido na comunhão do sangue e corpo de Cristo.
A prédica deveria acentuar que, enquanto tantos irmãos passam fome ao nosso lado, enquanto irmãos
vivem explorados e oprimidos pelos mais fortes, enquanto irmãos nossos passam por dificuldades e
sofrem injustiças que nós mesmos não gostaríamos de sofrer, enquanto tudo isso e muito mais ainda
acontece ao nosso lado, a comunhão da Santa Ceia está incompleta. Enquanto não existir em nós a
preocupação mais decisiva por justiça, e mais concretamente a vontade de entrar nesta luta, o
processo de salvação iniciado na Santa Ceia fica fragmentado, inter- rompido (BERNHARD, 1982, p. 110).
Mais do que explicar o contexto da comunidade de Corinto e tirar lições da comunhão comprometida dessa comunidade, importa verificar qual é a “carne sacrificada aos ídolos” de nossa vivência de fé. Ou seja, perceber onde e como a comunhão no sangue e corpo de Jesus está sendo comprometida em nossa maneira de ser comunidade e igreja. Aqui o tema da aliança também pode ser retomado. Aliança e comunhão precisam andar juntas, em sintonia. São os dois lados de uma mesma moeda.
4. Subsídios litúrgicos
Confissão de pecados
Senhor Deus, Cristo morto na cruz! Perdoa, quando não vivemos a comu- nhão que esperas de nós. Perdoa, quando tornamos leviano o sangue derramado para nos resgatar da morte para a vida. Perdoa, quando abusamos do pão da co- munhão que celebramos. Reconhecemos, Senhor, que não temos tirado as devi- das consequências da comunhão que temos na Ceia. Além de causar mal, temos sido omissos no serviço em favor dos irmãos e irmãs necessitados. Nossa partilha do necessário para a vida não reflete o cálice comum onde comungamos. Da mesma forma, nosso partir do pão fica entre quatro paredes e não tem alcançado as ruas, casas e becos onde estão os convidados à mesa. Perdoa, Senhor, nossa falta de fé. Cria em nós um Espírito novo e renova em nós a aliança contigo e com os irmãos e irmãs que a Ceia nos proporciona no sangue e corpo de Cristo. Tem, Senhor, piedade!
Oração
Senhor, em teu nome nos encontramos reunidos. Tu nos queres conduzir como teu povo, tua comunidade. Dá que por meio de teu Santo Espírito a comunhão seja edificada em nosso meio, quando partilhamos do corpo e sangue ue por nós morreu na cruz e foi ressuscitado. Em nome de Jesus, te pedimos. Amém.
Oração geral da igreja
Senhor Deus, Cristo Ressuscitado! Aqui estivemos reunidos como teus filhos e filhas. Como família da fé celebramos a comunhão no sangue e corpo de Cristo que nos liberta e dá vida. Agora nos voltamos a tua presença para pedir-te:
– interceder pela comunidade, pela autenticidade de sua comunhão, pela partilha da vida;
– interceder pela igreja, para que a comunhão dos santos permaneça viva como chama acessa em meio ao frio do inverno, em nosso país, continente e planeta;
– interceder pelas necessidades e questões das pessoas da comunidade.
Que a tua presença nos fortaleça e sustente, Senhor. Que o teu caminho nos desafie a caminhar pelas veredas da comunhão. Juntos, tu conosco e nós contigo, dá que testemunhemos o amor revelado na morte e ressurreição de Jesus, em cujo corpo e sangue temos comunhão. Permita que permaneçamos na tua aliança, na nova aliança, hoje e sempre. Amém!
Bibliografia
BERNHARD, Rui. 1 Coríntios 10.16-17. In: KIRST, Nelson. Proclamar Libertação. São Leopoldo: Sinodal, 1982. v. 7.
BROWN, Raymond Edward. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Paulinas, 2012.
CHAMPLIN, Russell Norman. O Novo Testamento interpretado versículo por versículo. São Paulo: Milenium, 1982. v. 2.
DREHER, Martin. 1 Coríntios 10.16-17. In: HOEFELMANN, Verner. Proclamar Libertação. São Leopoldo: Sinodal, 1988. v. 13.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).