Unidos, sim. Iguais, não!
Proclamar Libertação – Volume 40
Prédica: 1 Coríntios 12.12-31a
Leituras: Neemais 8.1-3,5-6,8-10 e Lucas 4.14-21
Autoria: Eloir Enio Weber
Data Litúrgica: 3º Domingo após Epifania
Data da Pregação: 24/01/2016
1. Introdução
Há textos que são tão conhecidos, tão “batidos”, que a gente tem dificuldades em lê-los sem se desfazer dos vícios preestabelecidos. O texto em questão, sugerido para a pregação deste domingo, é um exemplo claro. Quem de nós nunca o usou para falar em reuniões de lideranças da comunidade a fim de mostrar e conclamar as pessoas para uma caminhada conjunta?
Para isso, sugiro ao pregador um olhar não só focado no texto da pregação, mas incluir os textos de leitura. Eles podem auxiliar muito na formatação da temática. Temos posto, então, três textos, que, em princípio, não têm uma ligação temática muito clara.
O texto do evangelho é um clássico do tempo de Epifania. Relata o início do ministério de Jesus na Galileia. Jesus, em Nazaré, lugar onde cresceu e era conhecido por todos, surpreendeu depois de ler o rolo do profeta Isaías na sinagoga, ao dizer: “hoje, se cumpriu a Escritura que acabais de ouvir” (v. 21). A Epifania de Deus acontece à medida que Jesus coloca em prática o que as palavras de Isaías predisseram.
O livro do profeta Neemias, do qual vem o texto de leitura do Antigo Testamento, é um belo exemplo de trabalho conjunto, de distribuição de tarefas e de liderança comprometida com o bem-estar social e espiritual da comunidade de Jer salém no período pós-exílico. Um povo que recebe dos seus líderes o devido valor e o incentivo adequado compromete-se e trabalha unido. O texto mostra um povo que, depois do trabalho realizado, reúne-se para celebrar em torno da Palavra. Essa celebração religiosa culmina com uma festividade e uma oração de confissão de pecados, que brota de um povo arrependido e pronto para recomeçar.
No texto de pregação, o apóstolo Paulo fala dos carismas e dons e da diversidade, a partir da qual a comunidade de fé cristã é convidada para uma caminhada conjunta, de entendimento, compreensão, valorização mútua. Nessa comunidade do povo de Deus não pode haver espaço para superiores e inferiores, dominadores e dominados. Todas as pessoas receberam dons e todos os dons, unidos fazem a comunidade.
2. Exegese
A questão sobre a diversidade na unidade, que o apóstolo Paulo descreve de forma pedagógica na figura do corpo humano e suas diversas partes, tem origem em seu posicionamento em relação à ceia do Senhor (11.17-34). A questão da ceia havia revelado um problema de relacionamento na comunidade: os que comiam e bebiam demais e aqueles que passavam fome e sede, ou seja, aqueles que dominavam na celebração da ceia e os que ficavam à margem.
Logo após constatar a dificuldade na ceia, de apontar os erros e indicar caminhos, Paulo continua as admoestações, falando sobre os dons espirituais. Inicia dizendo que o assunto é abordado nessa carta porque ele não quer que sejam ignorantes (12.1). Aponta para o fato de que há diversidade de dons, mas o Espírito é o mesmo; diversidade de ministérios, mas o Senhor é o mesmo; diversos modos de ação, mas é o mesmo Deus que realiza tudo em todos. (12.4-6). Após descrever alguns dons espirituais, ele diz que um só e o mesmo Espírito realiza todas estas coisas, distribuindo-as, como lhe apraz, a cada um (12.11).
Fica explícito que, na comunidade de Corinto, havia uma minoria de carismáticos em condições de ostentar manifestações exaltantes do Espírito e, por isso, animados por evidente complexo de superioridade em relação aos outros. Esses coexistiam com uma maioria de crentes, que, não tendo dons extraordinários, sofriam de complexo de inferioridade. Em outras palavras, havia poucos que se consideravam (eram considerados?) mais cristãos e mais dignos do que a maioria. Deus teria preferidos e, consequentemente, alijara outros para o segundo plano. Deus teria sido mais generoso com alguns em detrimento da maioria.
Paulo aborda essa situação em três etapas na sua reflexão teológica: a) a diversidade de dons que produz a unidade (12.12ss) – a perícope prevista para este estudo; b) os dons da graça e a agape (cap. 13); c) os dons e o crescimento da comunidade (cap. 14).
Na perícope em destaque, Paulo ilustra a unidade na diversidade com a figura do corpo humano, que possui muitos membros, e cada um desses membros tem a sua função. Todas as funções visam fazer o corpo funcionar harmoniosamente, e tudo contribui para o bem-estar do corpo.
Duas questões chamam a atenção: a) Paulo não diz aos coríntios que formem um só corpo a fim de constituir uma sociedade/comunidade coesa. O pensamento é o inverso. Ele parte do corpo único do Ressuscitado para mostrar que ele pode ser diversificado, articulado, sem deixar de ser um; b) ele não diz diretamente assim também é a igreja. Diz algo equivalente, no entanto, mais profundo: assim também é Cristo. Em um ponto posterior afi rma, no entanto, vós sois o corpo de Cristo; e, individualmente, membros desse corpo (v. 27).
Paulo cita o Batismo a fim de colocar todas as pessoas da comunidade de fé no mesmo patamar. Apesar dos dons diferentes, não pode haver superiores e inferiores. Assim ele ataca, de forma consciente, aquelas pessoas que se julgavam superiores por causa do dom e defende as que sofriam de complexo de inferioridade.
O fundamental, neste texto, é a compreensão eclesiológica deixada por Paulo. Ele defende, de forma radical, que a igreja necessariamente é cristocêntrica. Essa unanimidade não é “burra” (Nelson Rodrigues dizia que “toda unanimidade é burra”), mas está firmada no centro da nossa fé cristã: Jesus Cristo, revelado na cruz e ressuscitado no domingo de Páscoa. Nesse corpo tem lugar para as diferenças. Por isso a unanimidade não é burra no corpo eclesial. O Deus que fez a “Epifania” em Jesus Cristo é o mesmo que se revela hoje em sua comunidade. Para o apóstolo Paulo, Cristo é o arquétipo de uma nova e glorificada humanidade, conforme a mesma se desenvolve na igreja.
Nem todas as pessoas são iguais, incluindo aquelas que são parte do corpo de Cristo. Nem todas as pessoas exercem ou podem exercer as mesmas funções. Mas todos os dons espirituais operantes são importantes, e todos os membros são necessários. Além disso, há uma grande interdependência entre todos os membros. A saúde e o bem-estar do corpo dependem da saúde e da função apropriada de todos os seus membros. Por essa razão deve haver unidade em um serviço amoroso e não a exaltação de alguns membros em detrimento dos demais.
O corpo humano necessita de todos os seus membros para funcionar e para que a pessoa se sinta bem. Assim também ocorre no caso do corpo de Cristo – igreja. Outrossim, tanto no corpo como na igreja, os membros são muitos porque há múltiplas funções, mas isso não deveria perturbar a unidade essencial e a comunhão do corpo e nem o seu alvo e propósito. Paulo salienta que todos os membros são indispensáveis. Seria uma visão grotesca ver um corpo transformar–se em um único membro. A própria diversidade do corpo são tanto a sua beleza como o seu meio de sobrevivência, bem como o bem-estar da pessoa. No entanto, essa diversidade seria autodestrutiva se não houvesse alguma espécie de unidade essencial.
Marco Aurélio, o filósofo e imperador romano estoico, referia-se ao ser humano como um ser criado a fim de aprender a cooperar com seus semelhantes em paz, assim como pés, mãos, pálpebras e os maxilares superior e inferior devem cooperar entre si.
Um membro pode até degradar a si mesmo ou então degradar outro membro, fazendo comparações desiguais entre os seus dons e os de outros membros. Porém essa degradação não elimina o membro degradado e nem a função e a necessidade que esse membro representa.
Vimos que ser parte da comunidade de fé é ser parte do corpo de Cristo. Conviver com as diferenças e, mesmo assim, manter a unidade não é uma opção – é algo preestabelecido e é uma necessidade.
3. Meditação
Já está virando chavão dizer que vivemos em uma sociedade na qual impera o individualismo. Que estamos cada vez mais isolados, mesmo cercados por pessoas, e que vivemos em uma sociedade doente porque não sabemos conviver. Tudo isso é verdade, e não ouso desmentir essa realidade. Só acho que essa constatação já foi feita, e é hora de dar um passo adiante.
A partir dos textos bíblicos indicados para este domingo, podemos ir além. Os textos levam-nos a olhar para o tempo de Epifania. Deus revelou-se, em um tempo específico, no seu Filho Jesus Cristo. Ele continua revelando-se na história ainda hoje. Cremos nisso pelo fato de crermos em Jesus Cristo. Deus manifesta–se por meio de pessoas, de instituições eclesiais, sociais e educacionais. Ele o faz também por inúmeros outros meios, muitas vezes invisíveis aos nossos olhos. No texto de leitura, temos o exemplo bonito deixado pela liderança de Neemias, que animou, convidou e dividiu tarefas na grande obra de reconstrução de Jerusalém. O povo uniu-se não só para assentar tijolos, mas para reconstruir vidas, histórias, lembranças. O texto lido neste dia mostra um povo em comunhão em torno da Palavra. Um povo que trabalhou, empenhou-se, suou, mas recebeu em troca um brilho de esperança nos olhos – um pagamento e tanto por seu esforço. Talvez seja esta a dádiva mais bonita para aqueles que percebem a epifania de Deus: brilho de esperança nos olhos, coragem de seguir adiante, de não aceitar a situação, de erguer a cabeça e enfrentar medos e temores. Na leitura do texto de 1 Coríntios, somos lembrados da fi gura do corpo eclesial, do corpo de Cristo, das diferenças que temos, mas também das oportunidades de caminhar em conjunto.
Quando falamos de corpo, precisamos lembrar que em nosso mundo vivemos um verdadeiro “culto ao corpo”. A mídia diz-nos como é o corpo ideal, e nós ficamos escravizados, correndo atrás desse ideal. Por isso é necessário refletirmos a respeito do corpo. Certamente a afirmação primeira é que Deus criou o ser humano e deu-lhe o corpo com seus diversos sentidos. É com o corpo que louvamos a Deus e através dele expressamos e vivemos concretamente a nossa fé. Mas nele também sentimos o peso da sede de vida, de aceitação, de realização.
Infelizmente, em nossa sociedade atual, uma grande parte dos corpos de seres humanos criados à imagem e semelhança de Deus não possui o direito de viver dignamente. São massacrados, explorados, enfraquecidos, destruídos e também mortos… A ânsia de todo ser humano são a vida, a utopia, o sonho, a transformação da realidade desumana e assassina. Essa também é a vontade de Deus, que em Cristo tornou-se corpo, tornou-se gente.
Como pessoas cristãs, temos o compromisso de promover a vida para todos os corpos que a têm ameaçada. Não é porque buscamos ou ansiamos a vida somente para nós, mas porque, acima de tudo, Deus a quer e nos incumbe de buscá-la para todos os corpos por ele criados. Por mais que estejamos banhados pelo espírito excludente da atualidade, o evangelho é mais forte e quer nos tocar e nos trazer uma nova mentalidade.
Sabemos que necessidades unem pessoas. Não é à toa que, quando há uma tragédia de grandes proporções, sempre há muitas mãos dispostas a colaborar. Mas o olhar da comunidade de fé precisa ser mais amplo. Pequenas tragédias, não mostradas no Jornal Nacional, fazem parte da vida de muitas pessoas em nosso meio. Elas necessitam sentir a diversidade de dons, os diferentes jeitos de consolar, animar e curar feridas presentes na unidade do corpo de Cristo.
Por outro lado, não poucas vezes a convivência comunitária é atrapalhada e dificultada porque egoísmos, interesses pessoais, disputas de beleza e poder atravessam a mensagem do evangelho. Nas palavras de Lutero, aprendemos que na comunhão cristã todos os bens espirituais e também os pecados são compartilhados e passam a ser comuns, de todas as pessoas. Lutero compara isso a uma cidade: é assim como, numa cidade, cada cidadão passa a participar do nome, da honra, da liberdade, dos negócios, dos costumes, das tradições, do auxílio, da assistência e da proteção dessa cidade; em contrapartida, ele participa de todos os perigos, incêndios, inundações, inimigos, da mortandade, dos prejuízos, das taxas e impostos e de coisas semelhantes. Pois quem quer desfrutar também precisa contribuir e pagar amor com amor. Aqui se vê que quem causa algum mal a um cidadão, causa mal à cidade e a todos os cidadãos; quem faz bem a um cidadão merece o favor e a gratidão de todos os outros (OSel 1, 429).
4. Imagens para a prédica
Penso que os tópicos anteriores já nos dão uma boa base e boas imagens para a pregação. Acrescento ainda algo que pode auxiliar. Pensei na questão da unidade e no que atrapalha a boa convivência em nossas comunidades. Lembrei do exemplo das doenças autoimunes. No fundo, nas questões de disputas nas comunidades acontece algo parecido com as doenças autoimunes. O próprio corpo acaba atacando a si mesmo. Leia abaixo o que retirei da internet a respeito do assunto:
Doenças autoimunes são aquelas em que o sistema imunológico de um indivíduo ataca e destrói tecidos saudáveis do próprio corpo, como que por engano… Normalmente, os leucócitos que fazem parte do sistema imunológico de uma pessoa protegem o corpo contra a invasão de substâncias nocivas, como bactérias, vírus, toxinas, células cancerosas, sangue ou tecidos de outras pessoas. Nas doenças autoimunes, o sistema imunológico do indivíduo não consegue distinguir entre os tecidos saudáveis do corpo e os elementos estranhos ou nocivos e os danifica ou destrói. As causas dessa incapacidade de distinguir entre tecidos saudáveis do corpo e elementos estranhos ou nocivos ainda são desconhecidas, mas supõe-se que obedeçam a uma predisposição genética, a alterações hormonais e a uma baixa regulação imunológica.
5. Subsídios litúrgicos
Hinos
O Povo Canta: 86 (Corpo); HPD: 325, 336, 89, 109.
Dinâmica
Na semana que antecede a celebração, distribuir tarefas entre pessoas, famílias ou grupos da comunidade. Cada qual ganha a tarefa de confeccionar uma parte de um corpo humano: mão e braço direito, mão e braço esquerdo, perna e pé direito, perna e pé esquerdo, tronco, cabeça, pescoço. A regra é que ninguém pode ver como, em que material e em que tamanho o outro está confeccionando a sua parte correspondente. Durante a celebração, formar o corpo, juntando as partes. Certamente vai haver uma discrepância entre as partes confeccionadas unidade e a necessidade de comunicação para que o corpo (comunidade) consiga ser harmonioso.
Bibliografia
BARBAGLIO, Giuseppe. 1-2 Coríntios – Pequeno Comentário Bíblico. São Paulo:Edições Paulinas, 1993.
CARREZ, Maurice. Primeira Epístola aos Coríntios. São Paulo: Edições Paulinas,1993.
CHAMPLIN, Russell Norman. O Novo Testamento interpretado versículo por versículo. Vol. IV. 4. ed. São Paulo: Milenium Distribuidora Cultural, 1983.
DOENÇAS AUTOIMUNES: o que são? Disponível em: . Acesso em: 13 jun. 2015.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).