Pela graça de Deus, sou o que sou
Proclamar Libertação – Volume 43
Prédica: 1 Coríntios 15.1-11
Leituras: Isaías 6.1-8 e Lucas 5.1-11
Autoria: Beatriz Regina Haacke
Data Litúrgica: 5º Domingo após Epifania
Data da Pregação: 10 de fevereiro de 2019
1. Introdução
O texto da prédica (1 Coríntios 15.1-11) inicia a argumentação de Paulo em favor da ressurreição de Cristo e, por consequência, dos mortos, que segue no v. 12 em diante. O apóstolo faz questão de trazer à lembrança da comunidade de Corinto o ponto central do evangelho: Cristo morreu por nossos pecados e ressuscitou, tendo sido visto por muitas outras pessoas. Paulo se apresenta como um apóstolo, testemunha dessa verdade evangélica que o tocou profundamente. Ao mesmo tempo, reconhece não ser digno desse chamado. Mas é pela graça de Deus que agora ele faz tudo o que realiza.
Isaías 6.1-8 relata a visão que o profeta teve em sua vocação. Quando colocado perante a santidade de Deus, Isaías afirma ter lábios impuros e estar perdido. Porém Deus o purifica e o convoca para ser porta-voz da sua palavra. Semelhante é com os discípulos de Jesus, que são confrontados com o seu poder no evento narrado como “a pesca maravilhosa”, em Lucas 5.1-11. Pedro fica prostrado diante dele, assumindo ser um pecador que não merece estar na sua presença. Após esse olhar para si mesmo, admitindo sua pequenez, Pedro é confortado (“não temas” – v. 10) e recebe o chamado para ser pescador de gente.
Os textos previstos para este 5º Domingo após Epifania são perpassados por um pano de fundo em comum: no encontro com Deus, o ser humano se reconhece como pecador, indigno e não merecedor; no entanto, graciosamente, Deus o chama e capacita. O evangelho do perdão dos pecados e da ressurreição nos alcança e nos conduz para servir, tornando-nos testemunhas da boa nova.
2. Exegese
Breves informações sobre a comunidade de Corinto – Por ser capital da província da Acaia e cidade portuária, Corinto caracteriza-se como um centro urbano, multicultural e plurirreligioso, com muitas pessoas ricas, mas também com muita desigualdade social. Paulo esteve presente na fundação da comunidade cristã de Corinto, o que deve ter ocorrido por volta do ano 49, e partiu de lá para atuar em Éfeso por volta do ano 51, local de onde escreve a carta, em torno de 54. A motivação para a redação está numa primeira carta enviada pelos coríntios a Paulo (7.1), com o pedido de resposta a questões práticas da vivência cristã. Além disso, ao que parece, havia contato intenso entre o apóstolo e membros da comunidade, dos quais ele obtém informações (1.11; 16.17). Uma carta de Paulo à comunidade cristã em Corinto, hoje perdida, precedeu a atual (1 Coríntios) (5.9).
Informações sobre o texto – Provavelmente, por seus contatos, Paulo toma conhecimento de que há na comunidade pessoas que não creem na ressurreição dos mortos (15.12). O capítulo 15 é reservado para tratar desse assunto com vigor e atenção especiais, que não observamos em outros escritos. Contudo, antes de abordar possíveis dúvidas e discordâncias que existiam na comunidade a respeito da ressurreição, Paulo inicia exortando-a a lembrar-se do evangelho que por ele foi anunciado (1.1) e, simultaneamente, ressalta que seus membros estão firmes nesse evangelho. Ou seja, ele traz à tona um assunto que é conhecido da comunidade, admite o conhecimento prévio do mesmo e, a partir daí, apresenta sua recomendação nos versículos 12 e seguintes.
Paulo faz questão de apresentar um breve resumo do evangelho nos versículos 3-7. A base de sua argumentação nesse capítulo reside no ensinamento de que “antes de tudo” (v. 3, versão Almeida Revista e Atualizada, ARA) ou “em primeiro lugar” (versão Bíblia de Jerusalém, BJ) ele entregou à comunidade o que ele também recebeu. O conteúdo dos versículos 3b-5 já possui peso de tradição entre as comunidades cristãs, não sendo de autoria paulina. Paulo reproduz a tradição que lhe foi repassada, provavelmente, no início de sua vida na fé cristã. E reforça que esse é o conteúdo da pregação cristã, independente de quem seja a pessoa que o anuncia (v. 11).
Sobre este núcleo do evangelho: Cristo morreu pelos nossos pecados, foi sepultado e ressuscitou no terceiro dia, segundo as Escrituras, tendo sido visto por várias pessoas, sustentam-se a fé e a esperança cristã. Desde o início, as comunidades cristãs já compreendiam a morte de Jesus como sacrifício por nossos pecados. Esse credo, contido nos versículos 3 a 5, com o acréscimo dos versículos 6 e 7, apresenta as testemunhas da ressurreição de Cristo, pessoas pelas quais ele “foi visto” (ōphte, também pode ser “apareceu”, como traduzido pela versão Nova Tradução na Linguagem de Hoje, NTLH). Paulo não somente cita as pessoas que tradicionalmente eram tidas como testemunhas da ressurreição, como também amplia o leque para mais de quinhentas pessoas, para Tiago e, mais adiante (v. 8), Paulo se inclui nesse grupo de testemunhas da ressurreição.
Pelo testemunho dessas pessoas, a novidade da ressurreição foi anunciada, possibilitando uma base confessional comum para as primeiras comunidades. “Mas não só isso! Essas mesmas testemunhas convidam as pessoas a ver confirmada a ressurreição de Cristo em sua trajetória individual, na comunidade que se reúne em torno de palavra e sacramento e na ação do Espírito Santo que, através de seus dons, transforma o mundo” (Brakemeier, 2008, p. 196).
Um apóstolo é um enviado ou delegado. O que Paulo compreende por apóstolo? Seriam os doze? Ao defender seu ministério e sua autoridade como apóstolo, ele costuma mencionar como argumento o fato de que ele viu o Senhor (15.8; 9.1). Mas as mais de quinhentas pessoas que viram o Senhor são chamadas de “irmãos”, e não apóstolos (v. 6). Enfim, o título apóstolo não fica restrito aos doze do v. 5, e não há uma preocupação em definir precisamente quem eram e quantos eram os apóstolos e apóstolas (Rm 16.7), mas há um envio para a missão, uma autoridade investida e um comprometimento que é comum.
Paulo fala de si mesmo como tendo sido a última das testemunhas a quem o Senhor ressuscitado apareceu (v. 8). Ele utiliza o termo ektrōmati, traduzido em ARA por “nascido fora do tempo”, mas literalmente “um aborto” ou “um abortado” (na BJ, “abortivo”), referindo-se à sua condição de ter sido designado como apóstolo bem depois dos demais. Entretanto, sua autoridade apostólica aqui não está fundamentada em quando Cristo lhe aparece, mas no conteúdo de sua pregação evangélica, ou seja, no anúncio da morte e ressurreição do Cristo que nos salva. Parece que Paulo não faz distinção nenhuma entre a aparição de Jesus a ele na estrada de Damasco (At 9.3-6) e as aparições entre a ressurreição e a ascensão. Talvez possamos entender esse trecho assim: o menor de todos os apóstolos, aquele que antes perseguia a igreja, era como que um aborto, no sentido de algo de onde não se espera mais nada, onde parece não haver mais vida; mas do encontro com o ressuscitado e pela ação da graça de Deus, o abortado recebe vida nova e é investido de autoridade para anunciar o evangelho da ressurreição.
No v. 9, Paulo se autodenomina como o menor dos apóstolos (elachistos, superlativo de mikros, pequeno, ou seja, “o menor de todos, menor ainda que o menor”). Por sua graça, Deus, em sua grandeza, revelou-se e chamou para ser seu apóstolo – Paulo – o pequeno (do latim paullo, “pequeno”).
3. Meditação
Evangelho não é um conteúdo a ser aprendido ou um objeto a ser descrito, mas é poder de Deus para salvação das pessoas que creem (Rm 1.16). É recebido e crido pessoalmente (v. 1-2). Por isso, se nos capítulos anteriores Paulo vinha tratando de assuntos da vida cotidiana das comunidades ou da doutrina, sobre os quais podem surgir diferentes interpretações, aqui ele compreende que não há espaço para divergências. Afirmar ou negar a ressurreição de Cristo não depende de opinião particular, e sim do centro do evangelho, do qual não se pode desviar.
Ao crer nessa boa nova da ressurreição, a vida é reorientada. Assim aconteceu com o próprio Paulo a partir de sua experiência na estrada de Damasco. No texto em questão, no v. 8, Paulo faz menção a esse acontecimento. Porém Atos 9.1-9 não apresenta um grande discurso de Jesus dirigido a Saulo. Eu sou Jesus, a quem tu persegues é sucinto e suficiente para que a notícia da ressurreição torne-se uma certeza para quem a negava a todo custo. Crer na ressurreição significa também crer na ação salvadora de Deus na crucificação. Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras (v. 3).
Confrontado com essa revelação, Paulo é transformado e chamado a ser apóstolo. Mas ele reconhece, ao deparar-se com o Cristo, que não é digno. Seu zelo pela lei e empenho em acabar com a fé cristã agora são para ele o que há de mais reprovável. Por causa da sua atitude anterior, ele seria um antiapóstolo. E, mesmo agora, ele se considera o menor de todos os apóstolos. Todavia, a graça de Deus é maior. Pelo fato de ter compaixão com esse mais miserável, a graça de Deus revela-se como totalmente graça. E por fazer de um opositor ferrenho da fé uma testemunha da ressurreição e apóstolo do evangelho, a graça apresenta-se como não vã e eficaz. Para Paulo, o que demonstra isso não são seus dons espirituais, como os que são enaltecidos pela comunidade de Corinto (1Co 14.12), mas seu afinco em trabalhar na tarefa que lhe foi confiada. Seu chamado e seu servir são compreendidos como consequência do crer e da ação graciosa de Deus. A graça que o acolheu também o impulsionou a trabalhar.
Na Segunda Carta aos Coríntios, Paulo defende seu apostolado com mais afinco e relembra à comunidade todo o seu empenho, trabalho exaustivo e perseguições que sofreu por ser, de fato, um apóstolo (2Co 11.23-30). Mais uma vez ele reconhece sua fraqueza perante a grandeza de Deus (1Co 12.9), reafirmando sua posição em 1Co 15.10: Pela graça de Deus, sou o que sou. Por sua atuação humilde, no entanto, coerente com a graça, Paulo pode também expressar com sinceridade que seja eu ou sejam eles, assim pregamos e assim crestes (v. 11). Não há sentido em comparar-se com os demais apóstolos ou vangloriar-se. O que importa não é primeiramente a pessoa que anuncia, mas aquilo que é anunciado, a saber, o evangelho da morte e ressurreição de Jesus.
O que conhecemos da biografia de Paulo e de muitos outros homens e mulheres que foram testemunhas do agir de Deus nos revela que a missão que Deus deseja realizar em nosso mundo, fazendo do ser humano seu instrumento, não carece de um currículo prévio impecável. Foi assim com Moisés, Débora, Isaías e com Pedro, também com Maria Madalena, Paulo, Priscila, Áquila e tantos outros. De algumas pessoas sabemos mais, de outras muito pouco. Porém, certamente, todas essas pessoas não eram dignas por sua inteligência, força ou caráter irrepreensível ao serem confrontadas com o Deus santo, santo, santo (Is 6.3). Elas foram chamadas por Deus, cientes de suas fraquezas, creram e foram capacitadas para testemunhar a graça que acolhe e renova.
Como nos sentimos ao ouvir esse chamado que também é dirigido a nós? Como lidamos com nossos erros e nossas limitações ao assumirmos a tarefa de servir a Deus? Na comunidade, cada pessoa batizada é chamada a ser testemunha do evangelho, com suas qualidades e também com seus defeitos. Temos atendido a esse chamado com disposição e humildade? Disso também faz parte motivar outras pessoas para que respondam ao chamado que Deus lhes faz.
Toda a ação e seus resultados, tudo o que realizamos é obra da graça de Deus. Mesmo assim, não podemos nos conformar com o não saber, nos acomodar com a falta de formação. Ainda que fosse limitado e cheio de fraquezas, Paulo não deixou de esforçar-se para que a missão acontecesse. E quando ela ocorre, a graça nos faz compreender que ela não é fruto do nosso esforço, mas sim mérito do agir de Deus em nós, seus instrumentos.
4. Imagens para a prédica
Somos pessoas salvas pela graça e servas pelo amor. Para Paulo, servir é efeito da graça de Deus em sua vida. Poder trabalhar em favor da missão de Deus é graça, bem como ser chamado e chamada, crer e ser capacitado e capacitada para tal.
Como instrumentos do agir de Deus, reconhecemos nosso pecado, nossa fraqueza. Arrependemo-nos e deixamo-nos renovar por Deus. Como instrumentos de Deus, podemos buscar preparo para que nossa ação seja para a edificação do corpo de Cristo. Nesse sentido, pode-se usar a imagem do instrumento musical durante a prédica. Primeiramente, tocar uma música em um violão que está desafinado. Apesar da desafinação, o instrumento não perde o seu valor para quem o detém. Ele continua sendo útil e valioso para a execução da música e para o musicista. Após afinar o violão, tocar novamente a mesma música, para que a comunidade perceba a diferença. Afinar o violão provoca tensão nas cordas, transformação. É como o preparo, a capacitação que necessitamos e recebemos de Deus, aquele que nos tem em suas mãos e nos concede valor, aquele que nos chama para tocar a sua música, para ser seus instrumentos em sua missão.
Quando percebemos que tudo o que somos e o que fazemos é graça de Deus, passamos a nos ver também como um violão que é colocado junto a outros instrumentos musicais. O conjunto dos instrumentos é importante para o maestro de uma orquestra; porém o mais importante não é o violão, ou o violino, ou a flauta, ou o piano, mas a música que juntos executam.
5. Subsídios litúrgicos
Confissão de pecados
Deus de amor e misericórdia, tu nos conheces tão bem, assim como um músico conhece seu instrumento musical. Sabes das nossas falhas, de onde nos desviamos do teu propósito e de quando nos falta fé. Reconhecemos que não merecemos a salvação, não somos dignos e dignas de teu amor. Ainda assim, tu nos acolhes por Jesus Cristo. Pedimos perdão por tantas vezes que caímos na tentação de buscar glória própria, achando-nos melhores do que outras pessoas, julgando e excluindo uns aos outros dentro da comunidade cristã, onde deveríamos viver em comunhão fraterna. Perdão quando somos indiferentes ao teu chamado, quando ouvimos tua voz, mas não respondemos com a prontidão para o serviço. Entregamo-nos em tuas mãos, confiando em teu perdão e tua graça. Amém.
Anúncio da graça
A minha graça te basta, porque o poder se aperfeiçoa na fraqueza (2Co 12.9) – foram as palavras que o apóstolo Paulo ouviu do Senhor. O perdão de Deus se estende a todos e todas que se arrependem. Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras. Isso vos anuncio em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém.
Bibliografia
BRAKEMEIER, Gottfried. A primeira carta do apóstolo Paulo à comunidade de Corinto: um comentário exegético-teológico. São Leopoldo: Sinodal; EST, 2008.
SCHNELLE, Udo. Teologia do Novo Testamento. Santo André: Academia Cristã; São Paulo: Paulus, 2010.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).