Ai de mim se não pregar o evangelho!
Proclamar Libertação – Volume 36
Prédica: 1 Coríntios 9.16-23
Leituras: Isaías 40.21-31 e Marcos 1.29-39
Autor: Roberto Zwetsch
Data Litúrgica: 5º Domingo após Epifania
Data da Pregação: 05/02/2012
1. Situando o texto
As cartas de Paulo têm sido muito estudadas no corpo dos textos do Novo Testamento. A primeira Carta aos Coríntios é uma delas. Como temos muitos registros acerca da atividade apostólica de Paulo, isso nos permite um bom conhecimento de sua teologia, principalmente porque ele a desenvolveu no contexto da ação missionária, respondendo a perguntas concretas das comunidades nas quais atuou como ministro do evangelho. Sobre este texto de 1 Coríntios 9.16-23 já foram escritos dois outros auxílios homiléticos no PL XIV, por Hans Trein, e no PL XXV, por Verner Hoefelmann. Para quem tiver esses volumes, sugiro sua leitura em complementação ao que escrevo aqui.
O texto da prédica para este domingo encontra-se no meio da carta, num contexto em que Paulo discute o problema do consumo de carne consagrada aos ídolos e a incompatibilidade da convivência entre idolatria e comunhão com Cristo. Nesse contexto maior, o capítulo 9 parece deslocado às vezes, pois coloca em foco o ministério da pregação, a obrigação que pesa sobre o apóstolo de anunciar o evangelho e a liberdade de fazê-lo de graça para, pelo menos, ganhar alguns para Cristo.
Quando fundou a comunidade de Corinto, Paulo permaneceu lá por um ano e meio (At 18.11). Ele conhecia bem a cidade, que tinha uma população que passava de cem mil habitantes. Corinto foi reconstruída pelos romanos em 46 a.C., tendo assumido as características marcantes de uma cidade romana, com a administração pública ligada à província da Acaia e políticos eleitos anualmente, além da famosa ágora grega. Era a maior cidade ao sul da Grécia, centro de comércio na proximidade de dois portos, que faziam a ligação do estreito: Cencreia, no mar Egeu, e Laqueu, no mar Adriático, ligados por uma estrada de cerca de 6 km, por onde transitavam o pujante comércio e até barcos puxados por escravos, de modo que os viajantes pudessem evitar os perigos da circum-navegação da península. Havia também uma atividade industrial famosa naquele tempo (olaria, metalúrgica e tecelagem). A população era muito diversificada tanto cultural como religiosamente. Corinto destacava-se pelas muitas expressões religiosas e numerosos templos, como o popular culto à deusa Ártemis, em cujo templo – segundo alguns pesquisadores – serviam mais de mil mulheres nos cultos de fertilidade. Não por acaso, dois temas importantes dessa carta são a carne sacrificada aos ídolos e a prostituição sagrada.
Importa destacar ainda a questão do trabalho que Paulo assume como forma de sustentar-se autonomamente. Segundo Atos 18.1ss e 20.34s, ele trabalhou como fazedor de tendas, tendo sido acolhido em Corinto por Priscila e Áquila em sua casa, compartilhando com eles o mesmo ofício, para assim anunciar o evangelho sem ocasionar ônus para a comunidade recém-fundada. Casa (em grego, oikos) na época significava uma unidade básica da organização social e da produção econômica. O conceito abrangia um grupo social com várias gerações da mesma família convivendo no mesmo espaço, além de escravos e libertos que trabalhavam na produção doméstica. Nela havia uma hierarquia: senhores – escravos; marido – mulher; pais – filhos. Até a religião dos escravos era determinada pelo chefe de família. Nessa estrutura, a nova valorização da pessoa, especialmente das pessoas mais pobres, que o evangelho e a fé cristã trouxeram, mexeu não só com a vida religiosa das pessoas, mas também com a estrutura socioeconômica em vigor, fato logo percebido pelas autoridades.
Sobre essa questão do trabalho de Paulo, vale registrar a interpretação de José Comblin, pois ajuda a compreender o texto em estudo. Paulo fez uma opção ao chegar a Corinto. Ele se encontrava diante de duas possibilidades:
1) a primeira alternativa era entrar como filósofo, aparecer em praça pública, como Lucas o descreve em Atos 17 no discurso de Atenas. Como filósofo ou especialista da palavra, ele poderia agradar a alguém de posses, que então o convidaria para sua casa, onde permaneceria como hóspede, sendo sustentado por essa pessoa, retribuindo como professor de seus filhos. Ao que parece, Paulo feriu os brios de algumas poucas famílias abastadas que vieram juntar-se à comunidade cristã de Corinto ao não aceitar sua hospitalidade. Paulo rejeitou todas as ofertas, para garantir a independência na pregação do evangelho. Essa talvez seja a explicação para a liberdade com que ele pôde criticar os ricos da comunidade, que não sabem esperar pelos mais pobres quando da reunião para o culto e a celebração da Santa Ceia (1Co 11). Em todo caso, é esse grupo que fomentou difamações contra Paulo por causa dessa opção pelo trabalho (que, na época, era semelhante a fazer-se escravo), acabando por colocá-lo até mesmo em oposição ao próprio Jesus (9.14). A questão é tão melindrosa, que Paulo, na segunda Carta aos Coríntios, retorna ao assunto e com palavras ainda mais duras (2Co 10-11).
2) A outra alternativa era trabalhar com as próprias mãos, com todos os riscos e possíveis más interpretações que essa opção significava. Foi essa que Paulo escolheu. Por quê? Ora, trabalhar na época era meter-se no meio dos pobres, de escravos e artesãos. Paulo procurou o bairro em que moram os trabalhadores que exerciam o mesmo ofício que ele. E lá encontrou os judeus Priscila e Áquila, que o convidaram para trabalhar com eles em sua casa. Dessa maneira, Paulo se situou diretamente no bairro dos trabalhadores e relacionou-se com o mundo deles. Na comunidade que se forma a partir do anúncio da cruz e da ressurreição de Jesus, ele acompanhará e representará sempre o ponto de vista deles com naturalidade e não de forma forçada ou ideológica (1.26ss; 4.12). Para os mais ricos, isso significou um problema. Quando irrompe o conflito, passam a acusá-lo de ser fraco, sem discursos grandiloquentes de sabedoria humana, nem de apresentar as credenciais que outros apóstolos tinham como manifestações visíveis do Espírito, ser sustentado pela comunidade e ser acompanhado por uma mulher, entre outras. Ao escolher esse caminho, ele tece uma parábola da própria opção de Deus pelos mais fracos. Deus escolheu os fracos, rejeitando assim o poder da riqueza e da cultura gregas. O argumento de 1 Coríntios 1.27s é de uma clareza estonteante e ainda hoje causa escândalo nas comunidades cristãs: “Deus escolheu as cousas loucas do mundo para envergonhar os sábios e escolheu as cousas fracas do mundo para envergonhar os fortes; e Deus escolheu as cousas humildes do mundo, e as desprezadas, e aquelas que não são, para reduzir a nada as que são; a fim de que ninguém se vanglorie na presença de Deus”. Essa opção de Deus, que se materializou na encarnação de Jesus, também ele nascido de uma jovem desconhecida mulher e numa cidadezinha da periferia de Israel (Nazaré da Galileia), levou Paulo a afastar-se da praça pública, do mundo das pessoas “livres”, das famílias importantes e a dirigir-se ao bairro dos trabalhadores e trabalhadoras, onde assume sua cultura e sua forma de se comunicar. Essa opção pode explicar por que o evangelho se espalhou tão rapidamente por todo o império, levado por pessoas simples, trabalhadores, mulheres, escravos, comerciantes, militares, além de alguns sábios que se converteram de coração ao evangelho de Cristo.
Paulo atuou na polis, na cidade. Ele é um missionário tipicamente urbano, que divulgou uma mensagem que veio da zona rural da Palestina. Sua opção pelas cidades foi estratégica. Basta conferir acompanhando suas viagens missionárias. Isso fez com que ele fizesse um trabalho de tradução do evangelho de Jesus e de inculturação de sua mensagem para o mundo urbano, algo inédito até aquele momento, mantendo a radicalidade da cruz e da ressurreição como mensagem da liberdade. Isso é importante para nós hoje, quando nos vemos às voltas com o desafio das cidades e do mundo urbano. Paulo dirigiu-se a cidadãos e cidadãs urbanos, e a pregação do evangelho precisava fazer sentido nesse contexto. Em segundo lugar, o evangelho não se tornou unanimidade, gerou conflitos que implicavam perseguição e inimizades. Terceiro: a mensagem do evangelho é um convite ao exercício da fé como esforço comunitário e organizado e não como uma mensagem intimista e alheia ao meio em que está inserida. Dessa forma, a comunidade cristã qualificou-se bem cedo como um segmento participativo da polis, e isso se pode notar tanto nas cartas de Paulo como nas cartas pastorais (p. ex.: 1Pe), que anotam vários conselhos de como ser cristão no mundo urbano.
Uma informação ainda é digna de registro: Paulo escreve aos coríntios junto com o irmão Sóstenes, o que indica uma postura de equipe e responsabili¬dade compartilhada pelo trabalho de evangelização. Ele escreve a Carta de Éfeso como resposta a uma carta enviada pela comunidade (5.9). Não só aqui, mas em vários outros textos, Paulo indica nomes de suas colaboradoras e colaboradores, o que também é sinal de uma maneira de trabalhar em grupo e de forma planejada. Nesse sentido, concordo com Nélio Schneider, que escreveu que é hora de nos despedirmos definitivamente da abordagem romântica muito difundida sobre Paulo como figura excepcional, que teria sido responsável, quase sozinho, pela missão aos gentios. Nada mais distante da verdade histórica. A grandeza desse apóstolo, além de seu compromisso radical com o evangelho da cruz, está em sua capacidade de trabalhar com outras pessoas, na autonomia que atribuía às comunidades por ele evangelizadas e na confiança que depositava nas pessoas que o acompanhavam e até o ajudavam em situações de penúria, perseguição e encarceramento. Só para ter uma ideia, nas cartas de Paulo são mencionadas nominalmente quarenta pessoas como suas colaboradoras, nos Atos dos Apósto¬los mais doze nomes e nas cartas pastorais outras dez. Quer dizer, embora Paulo tenha exercido notável liderança e energia na missão e no esforço teológico, ele soube trabalhar junto com pessoas dispostas a colaborar, sem criar tutelas ou discípulos. Esse método, como indica Schneider, “mais do que uma estratégia bem bolada, era exigência do meio urbano, com sua diversidade étnica, cultural e de condição social”. Possivelmente foram essas pessoas que, conhecedoras de seu contexto, foram as responsáveis por boa parte do sucesso na divulgação da mensagem evangélica e na solidificação das comunidades formadas a partir da pregação de Paulo. Faríamos bem hoje em dia se considerássemos em nossa ação pastoral essa maneira de exercer o ministério, principalmente numa igreja que, desde 1994, adotou o conceito do ministério compartilhado.
2. Considerações exegéticas
O capítulo 9 de 1 Coríntios é um retrato de quem assume o ministério. Paulo poderia ser sustentado pela comunidade. Ele conhece os seus direitos e inclusive pode citar uma palavra de Jesus que legitima essa relação entre quem trabalha pelo evangelho e o dever que a comunidade assume em sustentar aquele ou aquela (v. 1-14). A questão que Paulo coloca é outra. Ele assumiu trabalhar de graça, e isso até poderia ser atribuído como sua glória particular. Mas ele reconhece: até mesmo o anúncio do evangelho que o identifica não pode ser motivo de glória. Antes, é uma necessidade imposta, uma verdadeira obrigação: “Se anuncio o evangelho, não tenho de que me gloriar, pois sobre mim pesa essa obrigação; porque ai de mim se não pregar o evangelho! Se o faço de livre vontade, tenho galardão; mas, se constrangido, é a responsabilidade de despenseiro que me está confiada” (v. 16-17). Paulo exercita aqui algo que é fundamental em sua compreensão do evangelho de Cristo: a liberdade. E liberdade, no seu entendimento, tem como característica a capacidade de renúncia, de entrega e de exercício da gratuidade. Qual a recompensa que se pode esperar desse gesto unilateral? “É que, evangelizando, proponha, de graça, o evangelho, para não me valer do direito que ele me dá” (v. 18).
No argumento de Paulo, há um termo próprio de sua teologia do ministério que pode assustar: anagkê, traduzido ao português por coação ou obrigação. Se exercer o ministério se resume a esse sentimento imperioso, como explicar que Paulo o entenda como livre expressão de sua liberdade em Cristo? Aqui temos um paradoxo, pois, mesmo sendo uma obrigação que pesa sobre ele, Paulo aprendeu a exercer o ministério com alegria (cf. Filipenses, carta escrita na prisão), desprendimento, ousadia, paixão e liberdade insuperáveis. Paulo, o apóstolo nascido fora do tempo (Gl 1.15; 1Co 15.8), aprendeu a viver em qualquer situação, pois a graça de Deus lhe basta (2Co 12.9). É impressionante considerar o seu testemunho como apóstolo. Parece que Deus colocou os apóstolos em último lugar, como condenados à morte. Eles são um verdadeiro espetáculo ao mundo, tanto a anjos como a homens. De certa forma, ele pode dizer por experiência própria: “Nós somos loucos por causa de Cristo, e vós sábios em Cristo; nós fracos, e vós fortes; vós nobres, e nós desprezíveis. Até a presente hora, sofremos fome, e sede, e nudez; e somos esbofeteados, e não temos morada certa, e nos afadigamos, trabalhando com as nossas próprias mãos. Quando somos injuriados, bendizemos; quando perseguidos, suportamos; quando caluniados, procuramos conciliação; até agora temos chegado a ser considerados lixo do mundo, escória de todos” (1Co 4.12-13).
Se assumir o ministério significa tal desqualificação e sofrimento, quem se habilitará? Esse retrato do ministério da pregação, da evangelização ou da profecia, como quer que o venhamos a definir, definitivamente não se coaduna com a experiência contemporânea em que, muito seguidamente, ele está associado a status e boa vida. Se ficássemos com esse modelo de ministério, provavelmente nossas escolas de teologia e preparação para o ministério, e isso vale para todas as igrejas, tornar-se-iam vazias e entregues às moscas. Na experiência de Paulo, a marca do verdadeiro ministério são o sofrimento e a entrega total, se necessário da própria vida. É, portanto, uma experiência radical. Por isso renovo a pergunta: Quem se habilita? Quem está disposto a ir tão longe em sua decisão de dispor-se ao caminho do evangelho, assumindo suas consequências?
Ocorre que somente assim podemos compreender o que está dito nos versículos 20-23. Paulo escreve que foi um judeu para com os judeus, vivendo como se também para ele a lei judaica fosse o critério da fé verdadeira. Quanto às pessoas que desconheciam a lei, viveu com elas como se também ele não estivesse mais sob o regime da lei judaica, antes exclusivamente sob a lei de Cristo, e essa é a lei do amor. O intuito em todos os casos era um só: “Fiz-me fraco para com os fracos, com o fim de ganhar os fracos. Fiz-me tudo para com todos, com o fim de, por todos os modos, salvar alguns” (v. 22-23). Vemos aqui mais uma vez Paulo argumentando em defesa de sua posição e atitude. Ele não quer impor a ninguém sua atitude e seu pensamento, mas deseja que compreendam em profundidade as suas razões. E essas se prendem inextricavelmente ao evangelho da graça e do poder de Deus, o evangelho da cruz de Cristo, loucura para os gregos e escândalo para os judeus, mas, para a comunidade cristã, poder de Deus e sabedoria de Deus (1Co 1.21-24).
É importante que se esclareça, contudo, que o tornar-se “tudo para com todos”, a fim de ganhar o maior número possível de pessoas para o evangelho de Cristo, não equivale a uma atitude impensada, oportunista e interesseira no afã de angariar adeptos ou membros para a comunidade. Pois, para Paulo, está claro que na ação missionária o ministro não se pode valer de meios que contradigam a proposta do evangelho e da liberdade cristã, cujo critério maior é o amor (1Co 13). É nesse sentido que toda ação cristã, seja de quem assume o ministério especial, seja da pessoa membro de uma comunidade de fé, equivale à ação do próprio evangelho. Nesse sentido, Paulo poderá afirmar noutro lugar: “Sede meus imitadores, como também eu sou de Cristo” (1Co 11.1).
Disso tudo se pode concluir que o terreno onde brota e germina o evangelho é o serviço gratuito e desinteressado, generoso, amoroso, sem ostentação de direitos ou privilégios, solidário, esperançoso, mesmo quando ministros ou ministras até se possam valer de uma ordem de Cristo ou da lei de Moisés (9.14; Mt 10.10; Dt 18.1s) para seu sustento e sobrevivência condigna. A conclusão de Paulo é uma só: “Tudo faço por causa do evangelho, com o fim de me tornar participante dele”, numa tradução que diz melhor o que está expresso no original grego. Participante do ou comungante com o evangelho – também se poderia dizer, como forma de traduzir o grego sigkoinonos. Tudo o que foi dito diz respeito à dignidade do ministério de Cristo, de suas exigências (anagke) e de seu galardão (misthos). Tal compreensão e radicalidade no serviço do evangelho só se realizam no espaço e na vivência de uma profunda liberdade, pois, do contrário, será sempre peso, enfado e rotina que desqualificam o ministério, como o próprio Paulo anteviu (9.27). Por isso Paulo pode afirmar mais uma vez: “Porque sendo livre de todos, fiz-me escravo de todos, a fim de ganhar o maior número possível” (v. 19).
3. Rumo à prédica
O texto para a pregação refere-se explicitamente ao exercício do ministério da igreja. Refere-se, portanto, justamente a quem nestes dias estará falando no púlpito ou na estante de leitura. É um texto de autorreferência, e por isso não é fácil de pregar sobre ele. Esse é um dos problemas com essa pregação. Mas há outros. E o mais duro é confrontar-se com as altas exigências que Paulo coloca para anunciar, de graça, o evangelho, sem que isso implique qualquer direito humano ou recompensa espiritual.
Como então anunciar o evangelho contido nessa passagem de 1 Coríntios, focando no exercício do ministério e, ao mesmo tempo, apontando para Cristo, para o evangelho, como ensinou Lutero? Eis aí como entendo o desafio desse texto para nós hoje, pastoras, pastores, missionárias, diáconos, diaconisas, educadores e educadoras cristãs, seja quem for que estiver na vez de pregar neste domingo.
Assisti, há poucos dias, a um filme francês que me causou profundo impacto e que recomendo a quem puder assisti-lo como preparação para essa prédica. Trata-se de Homens e deuses, recentemente divulgado no Brasil (direção de Xavier Beauvois, França, 2010, veja detalhes na internet). Baseado em fatos reais, acontecidos em 1996, o filme narra a vida e o serviço prestado por monges cistercienses numa remota região do Mahgreb, na Argélia, norte da África, de tradição muçulmana, bem como o martírio de vários deles por fundamentalistas islâmicos, após violenta repressão das forças do exército do país. Os monges vivem de seu trabalho e exercem um ministério diaconal e testemunhal para com os vizinhos muçulmanos, em sua maioria mulheres, crianças e pessoas idosas, muito pobres e sem qualquer ajuda do governo. Vivem entregues à própria sorte, desempregados, lutando por um pedaço de pão, além de estar situados entre as forças do governo e os grupos guerrilheiros que se opõem ao regime político dominante. Nessa situação, viver é muito perigoso, como escreveu Guimarães Rosa no Grande sertão: veredas. Não cabe aqui reproduzir o filme, belíssimo sob diversos aspectos: fotografia, argumento, qualidade da interpretação dos personagens, música, mensagem. Desejo apenas destacar alguns momentos marcantes que talvez nos ajudem na busca por caminhos para a prédica deste domingo. Um deles acontece quando, certa noite, o mosteiro é invadido por um comando guerrilheiro. O chefe do grupo manda chamar o abade, e esse acorre ao pátio para ver o que está acontecendo. Ao deparar-se com a força militar, ele se apresenta e afirma que aquele é um lugar de paz e que ele não aceita discutir qualquer assunto mediante a força das armas. Ele pede então que o grupo se retire. Há um momento de silêncio e grande tensão até que o chefe do grupo faz um sinal e todos se retiram. Fora dos muros, em frente ao portão, o abade aceita conversar e o chefe do grupo faz suas exigências. Precisa com urgência que o monge-médico vá com ele para atender um guerrilheiro gravemente ferido. O abade contesta novamente, dizendo que o monge é pessoa idosa, padece de asma e não pode deixar o mosteiro. O guerrilheiro solicita remédios, mas outra vez o abade nega, afirmando que são poucos e que o mosteiro atende prioritariamente a população local, que é muito pobre e numerosa, de tal modo que os remédios mal bastam para as suas necessidades. Há outro silêncio constrangedor, e os guerrilheiros finalmente se afastam. O abade ainda faz uma pergunta ao chefe da milícia, que se volta para escutá-lo: Você sabe que dia é hoje? Ele responde: Não. O abade: Hoje é o dia do príncipe da paz, e nós vamos celebrar o seu dia logo mais na capela. O guerrilheiro pensa e responde: Eu não sabia disso. Calmamente, volta até o abade, põe-se à sua frente, olha para aquele homem desarmado e firme e, finalmente, estende-lhe a mão. O abade vive um momento de dúvida atroz, mas finalmente também lhe estende a mão, trêmulo. O homem armado e seu grupo vão embora.
É uma cena antológica, a meu ver, do cinema contemporâneo, sobretudo se pensarmos nos conflitos do Oriente Médio, dos grupos islâmicos radicais, normalmente acusados de terrorismo, das revoluções populares que estão ocorrendo no mundo árabe e assim por diante. Mas o que desejo destacar aqui é outro aspecto. Para mim, aquele mosteiro, a situação em que ele está inserido, a discussão interna que se deu na comunidade, se devia ou não permanecer naquele lugar tão cheio de perigos e sem perspectivas de sucesso evangelizador, colocam um ponto de interrogação radical para a compreensão do que seja o ministério cristão na atualidade. Longe das benesses de uma vida tranquila e em paz, aquele mosteiro estava no front da missão e levou o seu compromisso com o evangelho até as últimas consequências. Os monges fizeram longas conversas na comunidade se deviam permanecer ou sair para proteger suas vidas. Um a um foi instado pelo abade, em total liberdade, a decidir se permanecia ou se voltava para a França. Depois de muitos dias, de muita conversação, angústia e noites maldormidas, a pequena comunidade viu chegar o dia da decisão. A maioria resolveu ficar; apenas um decidiu voltar e nem por isso foi criticado pelos irmãos. Assim se cumpriu a lei da liberdade cristã naquela ocasião. Mais tarde, esse monge retorna, traz notícias do país e das famílias e, num jantar de confraternização, os irmãos podem saborear algumas comidas do país e um pequeno cálice do melhor vinho francês, iguarias que há muito não tinham mais podido saborear – um pouco de prazer em meio a sofrimento, dor e perigos.
No que diz respeito às relações políticas, os monges foram instados pelas autoridades a retirar-se para preservar a vida. Eles não aceitaram. Certo dia, o abade é convocado ao quartel militar para reconhecer um dos guerrilheiros mortos num encontro com os militares do exército do país. E, para sua tristeza, o homem morto era aquele líder que o havia procurado e a quem pudera estender a mão num gesto de paz e reconhecimento mútuo. Ele então fica sabendo que o homem não só havia sido morto, como também arrastado por vários lugares por um carro militar para demonstrar o ódio e o desprezo dos governistas ao grupo opositor.
O que desejo trazer à reflexão é o que significa exercer o ministério num contexto controverso e tão desfavorável como o que vivemos hoje em dia. Não me refiro às rotinas do ministério e ao serviço oficial que se espera de cada pessoa que é chamada, prepara-se e finalmente assume a tarefa de pregar o evangelho, administrar os sacramentos e cuidar com atenção e responsabilidade da comunidade que lhe foi confiada. Quero crer que a maior parte das pessoas em nossas igrejas assumiu o ministério com seriedade e tenta exercê-lo com sensibilidade, responsabilidade e visão missionária. Mas o texto de Paulo nos coloca, entendo eu, diante de outra perspectiva de análise e de comprometimento com o evangelho. Ainda que sejamos sustentados pelo serviço que prestamos na igreja e nas comunidades, como exercer o nosso ministério de graça¸ livres, sendo fraco para com os fracos, tudo para com todos, para assim ganhar alguns? Como viver para e servir ao evangelho, como se fôssemos os últimos, o lixo do mundo? Para ser honestos, deveríamos pelo menos responder que não é fácil. Há muitos argumentos a nosso favor para que possamos nos defender com justiça perante nossos semelhantes e mesmo perante Deus. Mas não é disso que Paulo fala. Ele aponta para uma dimensão completamente louca do ministério, e é isso que nos incomoda nesse texto. Por isso penso que não é fácil pregar sobre ele ou a partir dele. Creio que será um exercício duro e sofrido enfrentar esse texto e anunciá-lo neste domingo. Mas acredito que, se conseguirmos encontrar nele o tesouro escondido, sairemos fortalecidos da noite escura em que ele nos coloca, e certamente também a comunidade que nos ouve e que, com suas contribuições não apenas nos sustenta, mas contribui generosamente para com todo o trabalho da comunidade e ainda da missão global da igreja (escrevo nos meses em que participamos como IECLB da Campanha Missionária Nacional Vai e Vem). Anunciar o evangelho de graça, como de graça o recebemos e por graça fomos salvos, é algo que ultrapassa a rotina da igreja, a luta por direitos legítimos, mas não últimos, que o ministério confere. Compreender isso e viver de acordo com essa premissa paulina é algo, ao mesmo tempo, radical e profundamente libertador. Creio que Lutero entendeu isso ao formular a sua compreensão paradoxal da fé cristã em seu panfleto Da liberdade cristã: “um cristão é um senhor libérrimo sobre todas as coisas, pela fé; mas um cristão é escravo de todas as pessoas, pelo amor”. Compreender esse paradoxo e vivê-lo no dia a dia, assumindo-o em toda a sua radicalidade, é a marca da vida cristã tanto para Paulo e Lutero como para nós hoje no século 21. Saber atualizar tal compreensão da liberdade cristã e exercê-la com criatividade, coragem e desprendimento hoje na sociedade do dinheiro e do sucesso a qualquer custo não será fácil, sem qualquer sombra de dúvida. Mas me parece que é por aí que começa a pertinência da fé cristã num mundo em que só valem a fama, o lucro e a vantagem em tudo.
4. Subsídios litúrgicos
Leituras:
Isaías 40.21-31 – O texto do Segundo Isaías recorda o Deus Criador, aquele que criou a terra e tudo o que nela existe: animais, plantas, rios, céus, estrelas e tudo o que se possa imaginar. Ele é tão poderoso, que nenhum ser humano é capaz de esquadrinhar o seu pensamento. Ele é simplesmente Santo. Mas justamente esse Deus santo e criador é quem faz forte ao cansado, é ele quem multiplica a força dos que perderam o vigor, é quem levanta jovens cansados e moços exaustos. É na experiência da esperança que as forças dos cansados se renovam. Os que esperam no Senhor, isto é, os que se entregam a ele de corpo e alma, voam como águias, correm e não se cansam, caminham e não se sentem fatigados. Belo texto para auxiliar na compreensão da carta de Paulo e de sua compreensão do ministério do evangelho.
Marcos 1.29-39 – O evangelho de hoje coloca-nos diante de experiências práticas do exercício do ministério de Jesus. Na visita à casa de Pedro, Jesus é chamado pelos discípulos e, atendendo ao apelo, cura a sogra de Pedro. As pessoas da cidade logo sabem da notícia, e muita gente acorre a Jesus, porque também padecem de muitas enfermidades. Aliás, quem entre o povo não sofre de algum mal ou doença? Se naquele tempo foi assim, hoje não é muito diferente. Houve progressos na medicina, mas normalmente ele é reservado a poucos; enquanto os hospitais públicos estão cheios, o seu pessoal muitas vezes luta bravamente para atender a população, mas é despreparado, o que acaba por causar conflitos e enorme insatisfação. Resultado: o povo enche as igrejas pentecostais ou outros lugares de religião em busca de cura, de dignidade, de escuta, de cuidado. Quem se habilita a acolher e a cuidar do povo como fizeram Jesus e seu grupo? Mas como aguentar tamanha responsabilidade e tanta demanda reprimida? Creio que é essa a razão da retirada estratégica de Jesus. Ele se levanta alta madrugada e vai a um lugar deserto para orar. Quem no ministério aguenta tanta carência e tanta necessidade? Não é fácil responder, mais uma vez. Mas a prática de Jesus pode nos ajudar. Retirar-se para orar e colocar-se nu diante de Deus é muito importante no ministério, eu até diria que é essencial. E quem o faz saberá viver de graça e, por graça e na graça, anunciar livremente o evangelho que liberta e salva. Tal experiência o ajudará a não permanecer acomodado, mas antes ir a outros lugares em que também pessoas esperam pela boa notícia que cura, salva e liberta para o amor sem fim.
Poema: Há um poema de Dietrich Bonhoeffer (Resistência e Submissão, p. 469s) que pode servir como inspiração para este culto em algum momento. Diz assim:
Cristãos e pagãos
Pessoas buscam a Deus na sua necessidade.
Imploram auxílio, pedem felicidade e pão,
libertação de doença, culpa e morte.
Assim fazem todas, todas, cristãs e pagãs.
Pessoas buscam a Deus em sua necessidade,
acham-no pobre, insultado, sem abrigo e sem pão.
Veem-no envolto em pecado, fraqueza e morte.
Cristãos ficam com Deus na Sua paixão.
Deus busca todas as pessoas na sua necessidade,
satisfaz o corpo e a alma com o Seu pão,
sofre por cristãos e pagãos a morte na cruz
e a ambos concede perdão.
Oração:
Jesus, amigo e irmão de todas as pessoas que te buscam sinceramente: Tu viveste a liberdade maior entregando tua vida para o nosso bem e a nossa salvação. Contigo aprendemos o que é amar e ser livre. Hoje em dia, com facilidade pensamos que somos livres porque podemos comprar muitas coisas e encher nossa vida com uma agenda lotada. Mas, pensando bem, isso é pura vaidade, como escreveu o sábio de teu povo. Ajuda-nos, Senhor, a viver a liberdade cristã em humildade e ousadia, apaixonados pelo evangelho e pela graça que nos faz ser livres em ti. Que aprendamos a viver o amor para com os nossos semelhantes e, se for o caso, ensina-nos a amar até mesmo os nossos inimigos. Tem compaixão de teus ministros e ministras e dá-lhes coragem e fé para anunciar com liberdade e por graça o evangelho que nos deste. Amém.
Bibliografia
BRAKEMEIER, Gottfried. A primeira Carta do apóstolo Paulo à comunidade de Corinto. Um comentário exegético-teológico. São Leopoldo: Sinodal, EST, 2008.
COMBLIN, José. Paulo, apóstolo de Jesus Cristo. Petrópolis: Vozes, 1993.
SCHNEIDER, Nélio. A primeira Carta de Paulo aos Coríntios. São Leopoldo: CEBI, 2008.