Proclamar Libertação – Volume 36
Prédica: 1 João 1.1-2.2
Leituras: Marcos 16.12-18 e Atos 4.32-35
Autora: Arteno Ilson Spellmeier
Data Litúrgica: 2º Domingo da Páscoa
Data da Pregação: 15/04/2012
1. Introdução
A Primeira Carta de João dirige-se a comunidades em conflito, em que parte dos membros considerava-se dona de um conhecimento superior e de um saber mais profundo dos mistérios divinos, mas negava a encarnação de Deus no mundo na pessoa de Jesus Cristo. O autor da carta contesta esse conhecimento, apelando para a legitimidade do testemunho (martyria) dado pelos que o antecederam na fé e a superioridade da coerência entre a martyria da encarnação de Deus na vida em Jesus Cristo e a vida diária. Deus não se encarnou em Jesus Cristo para dentro da sabedoria e das ideias, mas para dentro da vida.
Os textos de Marcos 16.12-18 e Atos 4.32-35 corroboram o quanto Deus se tornou ser humano, ressuscitando em Jesus Cristo para dentro da vida (Mc 16.14) e transformando a vida das pessoas que nele creem (At 4.32).
Quanto à relação da Primeira Carta de João com o Evangelho de João, presume-se que não foram escritos pela mesma pessoa, mas que, devido à semelhança de estilo e conteúdo, o autor da carta tenha tido à sua frente o evangelho. Evangelho e Primeira Carta de João dirigem-se contra dois grupos diferentes: o evangelho contra o “mundo”, contra não cristãos, contra representantes do judaísmo, e a carta contra membros dissidentes das comunidades em foco, contra representantes do gnosticismo, que negavam a encarnação, a vinda de Deus em Jesus Cristo como ser humano e, simultaneamente, como Messias.
2. Exegese
V. 1a – “Estamos escrevendo a vocês a respeito da Palavra da vida, que existiu desde a criação do mundo.” Não há dúvidas de que o início do Evangelho de João (“Antes de ser criado o mundo, aquele que é a Palavra já existia. Ele estava com Deus e era Deus” – Jo 1.1) serviu de modelo ao versículo 1 da Carta de João, com algumas significativas diferenças: no evangelho consta “no princípio” e na carta, “desde o princípio”. Enquanto que no evangelho a encarnação de Deus em Jesus Cristo é interpretada como acontecimento concluído, na carta ela é interpretada como acontecimento escatológico que continua a acontecer na pregação do evangelho e no testemunho dos crentes. Jesus continua a nascer, a viver, a morrer e a ressuscitar. Deus continua a se “encarnar” no mundo por meio do testemunho e da vida dos que seguem Jesus Cristo.
V. 2 – “Quando essa vida apareceu, nós a vimos. É por isso que agora falamos dela e anunciamos a vocês a vida eterna que estava com o Pai e que nos foi revelada.” Quem são os nós (que vimos e falamos da Palavra da vida) e os vocês (a quem anunciamos a vida eterna)? Os termos usados – vimos, ouvimos e tocamos – denotam, num primeiro momento, que nós e vocês referem-se aos membros fiéis das comunidades e, num segundo momento, pensa-se neles como testemunhas oculares do Jesus histórico, que, porque tiveram contato e creram em Jesus Cristo, nele reconheceram a Palavra da vida. Deve-se, no entanto, considerar: 1) que em vista da época tardia em que a carta foi escrita, é quase impossível que os membros das comunidades em foco tenham sido testemunhas oculares do Jesus histórico; 2) que muitos judeus conterrâneos de Jesus o viram, ouviram e tocaram e, assim mesmo, só uma minoria reconheceu nele a Palavra da vida.
O ver, ouvir e tocar do texto são mais do que sentidos inerentes ao ser humano. Neles é expresso outro tipo de percepção: uma realidade além da limitação do tato, dos olhos e ouvidos humanos. O ver, ouvir e tocar também não querem provar a existência da Palavra da vida, mas querem expressar que a Palavra da vida está intrinsecamente ligada a Deus, ao Pai, e à vida dos seres humanos e que a sua encarnação aconteceu de fato no mundo concreto e não apenas no mundo das ideias e do conhecimento. A fé no Jesus nascido humano e crucificado e no Cristo ressuscitado é a base da fé e do testemunho cristão. O ver, ouvir e tocar a vida encarnada, crucificada e ressurreta dão testemunho de que ela ainda está em nosso meio, mesmo estando junto ao pai. A Palavra da vida é também a Palavra da vida eterna. Nisso também não muda nada o fato de que nem os membros das comunidades de João foram e nem nós somos testemunhas oculares do Jesus histórico.
A pregação a respeito da Palavra da vida vem sendo feita através da história pelo testemunho das pessoas que em Jesus Cristo viram a encarnação de Deus na vida. Encontramo-nos numa longa tradição e cadeia de pessoas que creram e viveram a sua fé, dando testemunho em palavras e ações da encarnação de Deus em Jesus Cristo, de sua vida ligada ao Pai e ao que há de mais fraco no mundo, de sua morte na cruz, de sua ressurreição e volta ao Pai. Sem esse testemunho oral e escrito, falado e vivido, nós nada saberíamos do Deus a favor de nós. Se Deus tivesse nascido exclusivamente para dentro de nossas ideias e nossos ideais, ele seria extremamente manipulável, porque estaria desvinculado da vida e nenhuma coerência entre o pensar e o viver seria necessária. Isso por um lado. Por outro, bastaria a nossa própria lógica e seríamos prisioneiros de nossos pensamentos; considerar-nos-íamos donos da verdade e sem pecados; o nosso pensar e agir não exigiriam coerência mútua. Seríamos como os membros dissidentes da comunidade, adeptos do pensamento gnóstico, que: 1) consideravam-se possuidores de verdades mais profundas e menos contraditórias do que a mensagem anunciada de um Deus que se torna humano, é crucificado e ressuscita para a vida a favor da humanidade; 2) consideravam-se iluminados, pertencentes ao “mundo da luz” e não ao “mundo das trevas” e, por isso, não tinham pecado e nem necessitavam de perdão; 3) consideravam-se de um conhecimento e de uma espiritualidade superiores aos demais membros; 4) consideravam-se pertencentes ao mundo da luz e, como tais, liberados de praticar o amor ao próximo e dispensados da comunhão com Deus e os irmãos de fé.
V. 3 – “Contamos o que temos visto e ouvido para que vocês estejam unidos conosco, assim como nós estamos unidos com o Pai e com Jesus Cristo, o seu filho.” As palavras-chave são martyria (testemunho) e koinonia (comunhão). A partir delas são definidos os conteúdos da pregação referentes à Palavra da vida. Sem a martyria, o testemunho de nossos pais na fé, o que saberíamos dos profetas e evangelistas, dos apóstolos e reformadores? Sem o testemunho deles nada saberíamos do amor de Deus por sua criação, de sua encarnação, de sua vida em nosso meio, de sua morte na cruz, de sua ressurreição na Páscoa, de sua volta ao Pai, da vinda do Espírito Santo. Nada saberíamos do Deus ao nosso lado, da luta pela verdade através dos séculos. Quando pessoas e igrejas passaram a difundir e viver uma espiritualidade desencarnada (como os gnósticos), governos e poderosos apropriaram-se do evangelho e instrumentalizaram Deus para os seus fins.
Também nós, os membros e as comunidades de hoje, somos portadores dessa tradição, quando testemunhamos a nossa fé no Cristo que continua vivo dentro de sua palavra e de seus sacramentos, quando denunciamos práticas de exploração, discriminação e exclusão em nossa sociedade. Também nós somos portadores dessa tradição quando testemunhamos por meio de nosso modo de vida o Jesus que esteve em nosso meio como ser humano, viveu a vontade do Pai, colocando-se ao lado do que havia de mais fraco na criação e deixando-se crucificar, que ressuscitou dos mortos. Também nós somos testemunhas para as gerações futuras se houver alguma coerência entre o que cremos e o que vivemos, inclusive no reconhecimento de nossas fraquezas e de nossos erros. Não há plena coerência entre nossa fé e vida. Ela necessita e vive do perdão, pois a vida da pessoa cristã não é estática e acabada, mas dinâmica e em vias de ser (2.1-2).
V. 4 – “Escrevemos isso para que a nossa alegria seja completa.” Objetivos e consequências do testemunho da Palavra da vida são: a comunhão com Deus e com os irmãos. Só ela permite que a nossa alegria seja plena. “A alegria é fruto da salvação, que tem sua origem na comunhão com o Pai e o Filho, a salvação escatológica” (Rudolf Bultmann).
V. 5 – “A mensagem que Cristo nos deu e que anunciamos a vocês é esta: Deus é luz, e não há nele nenhuma escuridão.” Quem achar que automaticamente tem comunhão com Deus porque se considera possuidor da luz e, portanto, identificado com Deus que é luz está enganado. A identificação com Deus não acontece pela pretendida pertença ao mundo da luz, mas pela opção em fazer a vontade dele, em procurar a comunhão com o próximo, em reconhecer os pecados e em viver do perdão dado por Cristo. A comunhão com Deus não consiste de um ato místico ou de esforço intelectual, mas de postura diante da vida. A comunhão dos crentes tem sua origem no evangelho anunciado e vivido.
V. 9 – “Mas, se confessarmos os nossos pecados a Deus, ele cumprirá a sua promessa e fará o que é justo: perdoará os nossos pecados e nos limpará de toda a maldade.” Para o autor da carta, está claro que os dissidentes estão peregrinando na escuridão por não ter comunhão uns com os outros (v. 7), por odiar seus irmãos (2.9,11), por desconsiderar os mandamentos, em especial o mandamento do amor (2.3-4), por considerar-se sem pecado (v. 8) e por negar a encarnação de Jesus e a sua condição de Messias (2.22 e 4.2).
3. Meditação e pistas para a prédica
3.1 – Para o autor da carta, os elementos a seguir são critérios de salvação e de diferenciação dos membros dissidentes:
– Cremos que Deus veio a nós em Jesus Cristo como “Palavra da vida, que existiu desde a criação do mundo”; cremos que ele continua a vir a nós por intermédio da Palavra e do testemunho; sabemos isso pelo testemunho dado pelos que nos antecederam na fé, que a viram, ouviram e tocaram; fazemos parte dessa cadeia de testemunhas. Não estamos sós.
– A fé no Deus que entrou em nossa história tem como frutos a comunhão com o Pai, o Filho e os irmãos e as irmãs e a alegria plena da salvação escatológica de saber-se nas mãos de Deus em meio a um mundo de contradições e pecados.
– A verdade está com aqueles que em Jesus reconhecem a Palavra da vida e o Cristo ressuscitado.
– Só teremos comunhão com Deus e viveremos em sua luz se fizermos sua vontade e tivermos comunhão com as outras pessoas.
– Estamos a caminho e, se dissermos que não temos pecados, enganamo-nos a nós mesmos, “mas, se confessarmos os nossos pecados a Deus, ele cumprirá a sua promessa e fará o que é justo: perdoará os nossos pecados e nos limpará de toda maldade” (v. 9), por Jesus Cristo. “… Ele nos defende diante do Pai” ( 2.1).
– A nossa fé é frágil. O nosso testemunho é contraditório. A nossa comunhão com Deus e as demais pessoas é incompleta. O nosso amor deixa a desejar. A nossa caminhada a partir e rumo ao Reino anunciado e vivido por Jesus Cristo é constantemente interrompida por nossos pecados, por incoerências e vaidades mil.
Assim mesmo, somos testemunhas desse Reino, porque nós vimos, ouvimos e tocamos a Palavra da vida e nela reconhecemos o Deus a favor de sua criação.
3.2 – O texto é longo e denso. Não é possível abordar todos os conteúdos e possíveis enfoques que vão da encarnação à necessidade do testemunho (martyria), da comunhão (koinonia) à alegria como fruto da fé, do reconhecimento de que Deus é luz à impossibilidade de viver nela pelas próprias forças, da necessidade de reconhecer os pecados ao perdão dos pecados por Jesus Cristo. Em vista disso, sugiro que concentremos a pregação: 1) na importância do testemunho desde as primeiras comunidades cristãs, que falemos desse Jesus que se tornou pessoa humana, viveu a sua vida a favor do que havia de mais frágil dentro da criação de Deus, que morreu na cruz, que ressuscitou para dentro da vida, que subiu junto ao Pai e enviou o Espírito Santo; 2) na importância de nosso testemunho de vida, em palavras e ações, para dentro de nossa sociedade e de nosso tempo e em que esse testemunho se deve orientar (cf. os critérios de salvação da carta acima); 3) na importância da comunhão como fruto e como testemunho vivo da fé na encarnação de Deus em Jesus Cristo.
3.3 – Refletir sobre a importância do testemunho de vida como martyria, em que palavras e ações se abraçam. Sem o testemunho de fé e de vida de nossos antepassados, não saberíamos nada sobre Deus. Sem o nosso testemunho de fé e vida, por mais contraditórios que sejam, os cristãos que virão depois de nós não saberão como damos testemunho para dentro da realidade de nosso tempo.
– Dar breves históricos de vida de testemunhas ao longo da história: da época das comunidades primitivas (por exemplo, de Paulo ou de outra pessoa), da época da Reforma (por exemplo, de Lutero ou de outra pessoa) e de tempos mais recentes (por exemplo, de Dietrich Bonhoeffer ou Martin Luther King ou de alguém do povão que teve uma vida humilde, mas coerente). Quando disponíveis, incluir na liturgia orações feitas por eles, cantar hinos compostos por eles, citar exemplos de vida deixados por eles.
– Refletir com os membros sobre o testemunho de sua comunidade através de sua história: 1) Se o testemunho da fé na encarnação de Jesus Cristo se manifesta de forma exemplar na koinonia, na comunhão, como ela se manifestou através da história e ainda se manifesta hoje na comunidade? 2) Em que o testemunho dos membros em geral foi fiel ao que o autor da carta escreveu? 3) Em que eles foram um exemplo para as gerações posteriores? 4) Quando o testemunho se pareceu mais com o dos dissidentes que viveram como se Jesus não tivesse nascido ser humano, morrido e ressuscitado? 5) Em que podemos aperfeiçoar o nosso testemunho? 6) Quando a nossa espiritualidade se torna vazia e desencarnada e se torna arrogante como a dos dissidentes das comunidades de João?
A empreitada certamente será dura, porque não será fácil falar (nem para o pregador nem para os membros) dos momentos em que a comunidade fracassou e em que ela estava mais para os dissidentes do que para os membros fiéis pressupostos na carta. Empreendê-la só será possível se tivermos clareza que vivemos na tensão entre a Palavra da vida, que já é o prenúncio da nova vida, e a nossa condição de seres humanos pecadores, que necessitam do perdão e da nova vida.
– A Palavra da vida, que veio a nós em Jesus Cristo, que morreu crucificado na Sexta-feira Santa e que ressuscitou na Páscoa para dentro da vida (a nossa atual e a eterna), transforma a vida das pessoas que creem, a tal ponto que elas começam a modificar o mundo ao seu redor e a compartilhar (At 4.32-35). Estamos a caminho e, se dissermos que não temos pecados, enganamo-nos a nós mesmos, “mas, se confessarmos os nossos pecado a Deus, ele cumprirá a sua promessa e fará o que é justo: perdoará os nossos pecados e nos limpará de toda maldade” (v. 9) por Jesus Cristo. “… Ele nos defende diante do Pai” ( 2.1).
Bibliografia
BULTMANN, Rudolf. Die Johannesbriefe. 2. ed. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1969.
SIMON, Odemir. Auxílio Homilético sobre 1 João 1.1-2.2. Proclamar Libertação 22. São Leopoldo: Editora Sinodal, 1996.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).