Prédica: 1 Pedro 2.21b-25
Autor: Marli Lutz e Valdir Frank
Data Litúrgica: Domingo Misericordias Domini
Data da Pregação: 13/04/1986
Proclamar Libertação – Volume: XI
I — Considerações introdutórias
O texto está inserido num quadro que descreve regras de conduta aos cristãos na sociedade (2.13-3.7), proveniente de catálogos helenísticos e judaicos (Barth, p. 58). À primeira vista pode transparecer a partir deste quadro que o cristianismo assimilou e viveu de acordo com os padrões sociais da época (senhores x escravos), sem ao menos, questioná-los. Mas já no versículo 19 verificamos o inverso. A vivência cristã se dá dentro de uma alternativa social, oposta à ideologia dos senhores/dominantes: escravos são membros de igual direito, eles sabem pensar, eles têm consciência de Deus.
Para a sociedade de então isto é novo e profundamente questionador, pois o escravo não tem direito, não pensa, nem tem consciência. O escravo nunca tem razão diante de seu senhor. Aqui, no entanto, se admite que o escravo pode ter razão perante seu senhor (Barth, p. 70). Isto traz, a nível ideológico, o rompimento de valores que sustentam e asseguram a sociedade classista de então. Neste sentido podemos postular com Goppelt, que este texto converge no conflito (Teologia do NT, p. 434).
II — Análise do texto
V. 21 b: Cristo sofreu por vós vai de encontro à morte expiatória de Jesus. O verbo sofreu vem perseguindo uma linha traditiva antiga: possivelmente vem do próprio Jesus. Sua ligação direta com Jesus fica clara em Lc no anúncio do sofrimento. Também a encontramos em Paulo (Hb). Este verbo designa o sofrimento de Jesus, e sofrimento até a morte; também traz consigo as experiências de aflições dos cristãos pelo seu ser cristão. Esse sofrer é a temática da carta (aparece 12 vezes na carta, enquanto que em todo NT 30 vezes: Goppelt, p. 199ss).
deixando-vos exemplo — o exemplo não deixa alternativa ou escolha. É por ali mesmo!
seguires passos é seguir uma direção já dada. Esta direção é caracterizada nos w. que seguem. Este seguimento é discipulado. Quem são os discípulos? A introdução do v. EIS TOUTO GÁR EKLÉTETE fala do chamado, isto é, chamado de Deus aos seus eleitos, seu povo. Estra introdução faz uma ligação entre este texto (21 b-25) e a parênese anterior (Goppelt, p. 199ss). Este elo de ligação deixa entender que o chamado é atribuído aos escravos. Os escravos são os eleitos, os discípulos. Isto nos aproxima da tradição do êxodo: Deus é o Deus dos escravos!
Este chamado, ao se fundamentar sobre o conteúdo dos vv. anteriores, é um chamado não para a glória, nem para uma vida melhore agradável, mas para o sofrimento (Barth, p. 71). — Cristianismo autêntico está encarnado nos sofredores, maltratados, nos que carregam as cruzes deste mundo…
Vv. 22-25: Estes são a citação de um hino cristológico, determinado por Is 53 (Barth, p. 73-74). 1 Pe recorre ao escravo sofredor para testificar o Cristo, e, para dizer nas palavras de Mesters, porque Cristo assumiu a missão do Servo, enfrentou conflitos, denunciou, lutou e rezou, venceu as tentações, foi caminhando, firme, no passo do Servo… (p. 135). Este hino é inserido neste contexto certamente por sua afinidade com a situação real dos escravos.
1ª. estrofe — v. 22: não cometeu (nenhum) pecado, nem dolo algum se achou em sua boca = Is 53.9. Tem início a descrição do sofrimento inocente de Jesus Cristo e vê-se uma nítida relação entre este sofrimento e o dos escravos. Esta correlação é determinante para toda a comunidade.
2ª. estrofe – v. 23: Esta estrofe não traz características de Isaías mas se trata também de um verso já fixado (Barth, p. 74). Aqui a relação para com a admoestação aos escravos se tornou bem nítida. Parte-se da experiência dos escravos para descrever o Cristo como homem ultrajado, injuriado. Não se deixou contaminar pela violência dos senhores, pois mesmo judiado e oprimido, não judiava e não oprimia; não alimentava ódio nem vingança, pois sabe que aquele que julga com justiça está aí. É uma entrega na certeza de que Deus esta presente.
Também a resposta dos escravos não se dá na prepotência, no poder, ou seja, no mesmo nível dos opressores. Curvando-se, resistem. Esta resistência deixa os senhores de mãos vazias e sem eco.
3ª. estrofe – v. 24: …carregando ele mesmo …os nossos pecados = Is 53.4,11,12; …por suas chagas fostes sarados = Is 53.5.
Esta estrofe fala do efeito expiatório da morte de Jesus. Através do seu sofrimento e morte acontece a libertação do pecado e a possibilidade de uma vida que tem como meta a justiça. Assim, o viver para a justiça tem como consequência a cruz.
V. 25: Porque estáveis desgarrados como ovelhas… Aqui se abandona as afirmações cristológicas, o que deixa em dúvida se faz parte do hino. Fala-se sobre a situação dos cristãos outrora e agora. O desgarramento como ovelhas no passado ainda é característica de Isaías 53.6. O agora é novo. Há uma contraposição entre o tempo do desgarramento e o novo tempo trazido por Jesus Cristo, o verdadeiro pastor que dá a sua vida pelas ovelhas. Portanto, o agora é caracterizado como um tempo em que as vidas sofridas são protegidas. Agora há alguém que se importa e conhece o seu desgarramento e aju¬da a encaminhar uma saída. Sofre junto. Dá sentido ao sofrimento. Em meio ao desgarramento e desproteção, salva e protege.
III — Reflexões a partir do texto
(1). O texto de 1 Pe 2.21 b-25 nos desafia em uma direção bastante concreta. Parece claro que, tanto a origem como o centro do texto está no sofrimento dos escravos. A citação de Isaías 53 é exemplo disto. Assim vemos ressurgir aqui um aspecto fundamental da cristandade primitiva. O esquecido, o afastado é resgatado e ganha valor. Recupera-se sua história. Ainda mais. Há praticamente uma identificação dos escravos sofridos com o Cristo Sofredor. E por isso são agraciados por ele; são ajudados a suportar o sofrimento. Mesmo na condição de dominados, impotentes e fracos, estes escravos abrem uma perspectiva de caminho e de esperança. Pois são consolados e exortados a permanecerem nos passos de Jesus mesmo que isto lhes custe sofrimento. Não são exortados a confiar na ajuda de seus senhores. A saída não está no poder destes. São chamados à resistência e nesta vislumbra-se a saída. Esta saída se encontra naquele que lhes é solidário, que também suportou dores: a saída está na cruz.
Esta exortação e consolo aos escravos traz consigo consequências. A saída, de início, está na resistência demonstrada no silêncio. Ao se curvarem, denunciam os atos dos quais são vitimas, enfraquecendo, assim, o poder dos opressores (de seus senhores). Dá-se uma inversão de valores. Os que eram objeto passam a ser sujeitos (v. 18-19). E é a partir destes, fracos e despedaçados, que é aberto o caminho para o seguimento a Jesus Cristo. Portanto, este texto traz em seu bojo uma teologia e prática que se forja do lado oposto da história.
(2). Poderíamos ir perguntando: quem são os escolhidos, os eleitos, os agraciados em nossos dias? A partir do texto não são os poderosos, os que vencem, os patrões. São, isto sim, os que carregam a cruz. Hoje se joga o sofrer cristão num panelão onde tudo cabe dentro. Tanto o rico como o pobre falam: é preciso sofrer! Mas 1 Pe é claro: não está falando de nós, no geral. O servo sofredor está apontando para os escravos de hoje, os miseráveis, sofridos, empobrecidos, o lixo do mundo, escória de todos (1 Co 4,13).
Partindo da concreticidade do texto e seus consequentes desafios, não podemos minimizá-lo. Todos nós somos chamados a um questionamento. Como pessoas e comunidades da IECLB, somos colocadas contra a parede. Também nós somos desafiados a seguir os passos de Jesus. E esses são direcionados a partir da margem, da periferia. Cristo assume a figura do servo sofredor porque é por aí que se manifesta o poder de Deus. É a partirdes escravos, do resto do modelo econômico brasileiro e também do resto da nossa igreja, que surge o verdadeiro sentido do seguimento, do discipulado a Jesus Cristo. É claro que é mais fácil e mais cómodo compactuar para não sofrer do que sofrer por não compactuar. Porém, a credibilidade de nossa mensagem como igreja só será atraída à medida que olharmos para a margem. Isto é, para os massacrados e marginalizados de nosso país e das nossas comunidades. Caso contrário, estaremos no iminente perigo de esquecer o profundo sentido da cruz de Jesus Cristo.
Como igreja do Servo de Deus no Brasil somos desafiados a buscar com liberdade e sem temor as sementes que nascem e querem nascer a partir daqueles que carregam as cruzes deste mundo, dos quais muitas vezes até desviamos o rosto porque seu aspecto não nos agrada.
O(a)s lavradore(a)s, o povo indígena, operário(a)s, bóias-frias, mulheres, crianças, sem-terra, etc., estão aí. Vamos dizer-lhes que seu sacrifício é bênção enquanto enriquecem a poucos, ou vamos descobrir junto com eles forças para superar o sofrimento?
Sabemos apostar no poder de Deus que se revela na fraqueza da cruz?
IV — Pistas para a prédica
O texto é uma clara denúncia de nossa pouca eficácia no discipulado. O sofrimento, que ó condição deste (discipulado) é estranho a nós. Diante disto o texto se coloca como um desafio para a transformação da realidade eclesial e social: de igreja de médios e grandes para uma igreja dos pequeninos; de um sistema econômico concentrador e marginalizador ao mesmo tempo, para um sistema que possibilite justiça social.
Inicialmente recolocamos o texto na sua situação histórica. Não nos limitamos ao texto apenas. Uma vez que o hino cristológico é colocado a partir dos escravos, dependemos deste contexto para caracterizar melhor o texto na nossa realidade.
Hoje, a presença dos enfraquecidos nos lembra o Cristo que assumiu a condição de Servo. O povo indígena espoliado de seus valores e suas terras está morrendo. Operários(as) são explorados e convidados a morrer de fome em troco de um salário de morte. Assim também os(as) lavradores(a,s), os(as) bóias-frias, os(as) sem-terra exigem um posicionamento e atitude concretos.
Nas nossas comunidades também presenciamos a marginalização e o sofrimento. É mais fácil ficar no círculo fechado dos melhor situados economicamente. É mais cômodo. Por outro lado, são os mais fracos que, na grande maioria, sustentam as paróquias economicamente. Será assim também em outras decisões a nível de paróquias e IECLB? O texto nos empurra para a margem, para a periferia.
A comunidade inserida no seu contexto social precisa ser sal e luz. A partir do texto ela é desafiada a uma luta contra o sofrimento. Assim podemos desafiar a comunidade para o engajamento corajoso em favor dos marginalizados da nossa sociedade. A maioria das nossas comunidades precisam cheirar mais a margem, a periferia da sociedade injusta em que vivemos. Seria o desafio final que chamaria ao compromisso no mundo.
V — Subsídios litúrgicos
1. Confissão de pecados: Senhor Jesus Cristo, a ti chegamos para confessar a nossa fraqueza no discipulado. Quantas vezes nos afastamos de ti — quando não queremos ver o rosto daqueles que sofrem; — quando não fazemos nada para mudar este mundo dividido entre ricos e pobres, abastados e famintos; perdoa quando nas nossas comunidades deixamos valer a voz dos bem situados, dos poderosos e nos esquecemos daqueles que bem perto de nós são maltratados e explorados. Senhor, nossa cegueira não nos deixa ver a ti dentro desses que carregam as cruzes deste mundo. Tem piedade de nós, Senhor.
2. Oração de coleta: Senhor, pedimos que tu ilumines este nosso encontro com a tua presença. Que tua palavra nos traga de volta da cegueira, do temor de sermos tuas testemunhas em nossos dias. Que teu Santo Espírito nos faça compreender o verdadeiro sentido do teu amor por nós. Aquele amor que se encarna nos judiados, explorados e maltratados das nossas comunidades e nossa sociedade. Liberta-nos para que saiamos do comodismo e deixemos nos incomodar pelas cruzes deste mundo. Ajuda-nos, Senhor! Amém.
3. Oração final: Ó Deus, Mãe e Pai! Mais uma vez fomos desafiados a sermos sal e luz no mundo. Descobrimos que não podemos passar de largo diante das injustiças que causam tanto sofrimento e morte. Tu revelas a tua presença nas crianças que morrem de fome em nosso país, nas mulheres que são vítimas de uma sociedade machista, nos índios espoliados e tornados mendigos em sua própria terra, nos bóias-frias e sem-terra que são sobra de nosso sistema político e econômico que está voltado às grandes e médias empresas rurais e ao latifúndio improdutivo; nos operários que são sugados como mão-de-obra barata para o enriquecimento de poucos.
Assim, Senhor, tu nos chamas para um testemunho fiel e corajoso no lugar onde vivemos, encarnando junto a todos estes que são vítimas desse nosso sistema desumano. Fortalece em nós a perseverança neste engajamento e vivifica em nós a chama de tua luz para sermos e semearmos nesta sociedade sinais bem concretos do teu Reino. Amém.
VI — Bibliografia
– BARTH, G. A primeira epístola de Pedro, 2ª. ed., São Leopoldo, 1979.
– GOPPELT, L. Der erste Petrusbrief. In: Kritisch-exegetischer Kommentar ueber das NT, v. 12/1, 8ª. ed., Göttingen, 1978.
– GOPPELT, L. Teologia do Novo Testamento, v. 2, São Leopoldo, 1982.
– MESTERS, C. A missão do povo que sofre, Petrópolis, 1981.