Prédica: 1 Pedro 2.21b-25
Autor: Dario Schaeffer
Data Litúrgica: Domingo Misericordias Domini
Data da Pregação:20/04/1980
Proclamar Libertação – Volume: V
Porque o próprio Cristo sofreu por vocês e deixou o exemplo, para que sigam seus passos.
Sobre sofrimento é preciso falar. Que tipo de sofrimento Jesus sofreu? Qual a causa deste sofrimento?
Jesus Cristo sofreu perseguição e ódio durante a sua vida de pregação e vivência da boa nova de Deus. E no final de sua vida sofreu torturas e a morte de um marginal.
Muita gente sofre isto hoje em nossa sociedade. Nem sempre temos condições de avaliar de modo claro a causa desse sofrimento.
Muitas vezes sabemos do sofrimento de gente presa e torturada, pelos depoimentos policiais e pela versão das autoridades que infligem esse tipo de sofrimento.
Mas sem dúvida podemos afirmar que existe sofrimento proveniente do erro humano. O sofrimento que provém do fato de errarmos em relação a nós e em relação aos outros. O sofrimento que surge da mentira, da vingança, da ameaça, do julgamento injusto etc. Creio que este tipo de sofrimento é o que mais largamente está espalhado entre nós. É o sofrimento que nós mesmos causamos por estarmos fazendo o jogo das ideias que desumanizam o homem.
Não é desse sofrimento que nos é falado aqui.
Outro tipo de sofrimento é o que nos é dado passar por sermos fracos fisicamente: a doença, a solidão, a velhice etc. É claro que isto não é um sofrimento que queremos. Não o provocamos nós mesmos. Pois mesmo com os maiores cuidados e as melhores chances de vida a doença é algo de que ninguém escapa. Pensemos no câncer que hoje não discrimina ninguém.
Muitíssimas vezes se diz, no entanto, que a doença é um sofrimento, é uma cruz, colocada sobre nossos ombros e que deve ser carregada sem queixas, estoicamente. Isto é uma perversão da compreensão do sofrimento cristão. E por causa disto, uma alienação fatalista e muitas vezes fatal.
Este sofrimento, pelo contrário, deverá nos tornar rebeldes. Pois é um mal que ataca e destrói o corpo que foi feito por Deus. Devemos, pois, reagir. E esta reação, esta rebeldia, este não-conformismo com o sofrimento da doença é que leva à cura. Tanto subjetivamente, quando o doente psicologicamente ajuda na cura, como também objetivamente, quando a ciência e a medicina procuram a solução para os males e os consequentes sofrimentos Portanto, neste sofrimento não há lugar para passividade, mas sim para reação positiva.
Mas também não é desse sofrimento que é falado aqui.
O exemplo de Jesus é o sofrimento causado pela vivência da fé.
É um sofrimento calculado. Isto é, quando se entra em contato com a fé, com uma vida que leva a sério a fé, a ponto de transformar a fé em algo realmente existencial para si e para o convívio social, entra-se imediatamente em contato com o sofrimento causado por esse tipo de vida. O sofrimento que provém do fato de que o mundo em que se vive esta fé, não está apto a digerir esta vivência, não está na linha do pensamento e da ação de Deus.
Por isso a justiça dos homens sem Deus se choca frontalmente com a justiça dos homens com Deus, o amor elitista e particularista dos sem Deus contradiz o amor universal, ecuménico dos com Deus etc. E esta contradição leva ao sofrimento.
O fundamentalmente diferente neste caso é o lado em que a gente se encontra. Do lado do sofrimento sem Deus, isto é, do lado das pessoas que sofrem por ideias e ações que elas acham correias ou que apenas o momento filosófico ou histórico acha certo, há o conluio do homem com o pensamento que rege o mundo. Quer dizer, por exemplo: se uma pessoa acha que, por pertencer a uma classe social determinada, não pode ser tratada com desrespeito, então ela sofre, no momento em que é desrespeitada. Deixando claro que, para ela, respeito pode ser tudo aquilo que ela imagina ser respeito. E, além disso, deixando claro que ela própria se inflige este sofrimento por causa de sua imaginação sobre a qual construiu a vida.
Esse tipo de sofrimento é um sofrimento desnecessário, calcado apenas no orgulho da pessoa e na imaginação do que é sofrimento e do que é vida.
O profundamente pecaminoso, neste caso, é que as pessoas fogem do sofrimento por ele lhes sugerir vergonha, baixeza, perda do valor humano, e ser algo desnecessário. E quando estas pessoas sofrem, queixam-se amargamente. O sofrimento não tem sentido para elas. Por isso deve ser evitado.
Evitar o sofrimento é um mal-entendido do sofrimento, é uma compreensão errada do sofrimento é a vivência do sofrimento que tem causa sem sentido.
É desse tipo de sofrimento que Jesus se distancia em sua vivência. O sofrimento de Cristo tem um sentido. Sim, ele até é necessário. É por isso que ele não necessita de desforra, de vingança, de queixa, ou, por outro lado, de reconhecimento, de compaixão, de pena. Não precisa nada disso, porque é necessário e tem sentido. Somente este sofrimento é justo.
Por isso Pedro afirma conseqüentemente:
Ele não cometeu nenhum pecado. Ninguém nunca ouviu uma mentira de seus lábios. Jesus sofreu, não por causa do pecado e por causa da mentira, mas exatamente por causa de não ter cometido nada disso.
E a consequência disto:
Quando foi amaldiçoado, não respondeu com maldições. Quando sofreu não ameaçou, mas pôs sua esperança em Deus, o justo juiz.
Uma leitura puramente superficial ou fundamentalista desta passagem pode sugerir uma apatia e um fatalismo diante do sofrimento. Pode levar à afirmação de que devemos aceitar, qualquer tipo de sofrimento apaticamente, sem nenhuma reação. Mas temos que voltar, então, a afirmar que o sofrimento de Cristo, colocado diante de nós como exemplo, não é qualquer sofrimento. É sofrimento que é provocado por causa de sua vivência. Isto é, a causa do sofrimento é a ação que o antecede e esta ação é a ação de Cristo, de levar nossos pecados em seu corpo. Quer dizer, com este ato ele inverteu radicalmente toda e qualquer ação humana. Também dos santos de sua época. Inverteu-a de modo a colocar a preocupação de salvação não mais no indivíduo, mas para fora do indivíduo, para fora do eu preocupado com sua auto-salvacão, pelas leis e pela vida religiosa e moral.
O próprio Cristo levou nossos pecados em seu corpo sobre a cruz, para que morrêssemos para o pecado e vivêssemos para a justiça. Por meio das feridas dele vocês foram curados.
Seguindo os passos de Cristo, isto é, aceitando o sofrimento que vem de nossa ação e da fé em Deus, vamos enxergar em Cristo mais do que um exemplo. Vamos reconhecer que, além de exemplo de sofrimento para nós, ele também é aquele que liberta, que mata para o pecado e dá vida para a justiça. O fato de ele ter carregado nossos pecados, o fato de nós carregarmos os pecados, o fato de ele ter sofrido, o fato de nós sofrermos tem como consequência o fim do relacionamento com o pecado. Lembrando-nos do que foi dito há pouco, precisamos dizer: o sofrimento sem sentido provém do nosso comprometimento com o pecado, que se mostra na nossa auto-preservação, no nosso orgulho, na garantia que jogamos sobre as coisas que temos e conseguimos adquirir. Com a aceitação de Jesus Cristo e seu sofrimento, como exemplo, este relacionamento sem sentido estará sendo cortado. Estaremos sendo mortos para o pecado.
E ao mesmo tempo está se abrindo espaço para a vida. Uma vida, porém, não mais relacionada com o que havia antes, com o sofrimento sem sentido. Mas uma vida para a justiça.
Creio que não há nada mais claro do que esse apelo, que nos leva à atividade. Justiça, aqui, é entendido em sentido amplo, como justificação que vem por parte de Deus, como também como justiça vivida e tornada real na convivência dos homens. Pois como esta justiça parece ser o oposto do pecado, creio que ela deve ser entendida de modo tão concreto como o é o pecado. E além disso viver significa tudo aquilo que a vida contém, em primeiro lugar a ação. Temos pois todos os ingredientes para uma ação, livre da preocupação com o sofrimento, exatamente para que a justiça seja tornada real.
E creio que é redundante dizer o que é a justiça de Deus, que é mencionada aqui. Conhecemos muito bem a justiça de Deus e sabemos que os mandamentos do AT nos falam dela, que o grande mandamento nos fala dela, que o amor ao próximo é a justiça de Deus, que a igualdade entre os homens é meta dessa justiça, que o respeito a toda e qualquer vida está englobado nela etc. Podemos fazer um estudo muito longo e talvez muito proveitoso do que significa esta justiça concretamente. E este estudo será necessário, para termos pelo menos em parte um padrão de medida para nossa ação. Mas creio que o que sabemos já é suficiente. Se isso for realizado já teremos feito muito.
O problema é sabermos como agir. Podemos usar exemplos recentes (pelo menos para o momento em que escrevo esta meditação), como a luta aberta e armada da Nicarágua, onde também Ernesto Cardenal, como padre cristão, entre outros, se envolveu e a apoiou. Ali a justiça de Deus se demonstrou através de uma luta que custou muitas vidas. Um preço alto.
Aqui no Brasil esta justiça deverá se mostrar (e se mostra, em parte) na ação de igrejas conscientes do momento histórico, das opressões, das explorações que se tornam cada vez mais sutis e com isso menos analisáveis pela maioria. A justiça se mostra nas denúncias abertas e claras feitas nas pregações e nas ações de uma igreja que sabe de sua responsabilidade aqui no Brasil. Não faltam exemplos de coragem e de sofrimento por causa desses apelos e dessas ações, principalmente no seio da Igreja Católica.
Ainda não foi analisado o porquê de a IECLB ter apenas manifestado ténues vozes de protesto durante dezesseis anos de ditadura, onde foram cometidos pecados contra os direitos das pessoas, cujo volume e cujo alcance verdadeiros apenas agora estão começando a vir à tona. Será que é compromisso com o medo do sofrimento, isto é, compromisso com o pecado da preocupação consigo só? Da preocupação com sua perfomance religiosa? Preocupação em não perder terreno para pseudo-religiões e seitas? Será que não aconteceu a mesma coisa que aconteceu ao cachorrinho da história, que viu sua imagem com um osso na boca, refletida no riacho, e, tentando conseguir também esse, acabou perdendo o osso que tinha? Isso é, quem tudo quer, tudo perde? Principalmente talvez quando se procura no sentido errado. Pois estávamos muito preocupados com nossa identidade. Nossa existência como igreja no Brasil foi abalada. E começou uma procura insólita por uma identidade em tudo que é sentido. Menos naquele que no momento era o mais importante: na luta pela justiça ao lado do povo que não tinha e não tem possibilidade de participação, a não ser na miséria que se torna sempre maior, num país dirigido por tecnocratas e empresários, cuja meta capitalista é a de fazer o país crescer, e que nesse afã esquecem que um país só cresce se o povo tem condições sempre melhores de vida. Abocanhando a água, não percebemos que era este o nosso lugar, o lugar da justiça de Deus, do sofrimento.
Vocês eram como ovelhas que haviam perdido o rumo. Mas agora foram trazidos de volta para seguir o pastor e guarda de suas almas.
A situação que vivemos no Brasil ainda não mudou. E não mudará, enquanto existirem forças mantenedoras de uma sociedade capitalista falida, e cuja fórmula se demonstra sempre mais incapaz de solucionar os problemas sociais e econômicos bem como a insatisfação política surgida deles. Por isso, creio que podemos caracterizar de um modo ainda mais claro nossa identidade. Mas agora não mais a partir de estudos teóricos em concílios e em escrivaninhas, mas na ação de concretizar a justiça de Deus. Creio que a ação nesta linha poderá não apenas dar um sentido a vidas em particular (pode, sem dúvida) mas também à existência de uma igreja. Evidentemente não mais como uma igreja estanque, mas como igreja ecumênica, ligada a outras igrejas como também a entidades que entendem sua existência a partir da luta, do sofrimento por justiça no mundo. Cabe à Igreja dar um respaldo e uma consciência clara do porquê da vida para a justiça. Cabe a ela dar um sentido e um rumo a esta vivência.
As ovelhas sem rumo, as individuais como as coletivas, eclesiásticas e sociais, acharão o rumo. O rumo de seguir o Pastor e o Guarda de nossas vidas.
Para a prédica sugiro três partes, em que também está dividido, pelo sentido, o trabalho acima:
1. O sofrimento sem sentido e o sofrimento que provém do seguir os passos de Cristo.
2. Com esse sofrimento, a descoberta cia liberdade do pecado para a vivência da justiça de Deus.
3. E, como consequência disso, a descoberta de uma identidade, de um sentido pare a vida. Creio que pode e deve ser acentuado aqui que esta descoberta de um sentido para a vida pode ser individual, no engajamento pessoal por justiça, como deverá ser eclesiástica e social. Ela pode ser pessoal, quando jovens descobrem que o sentido de sua vida deve ser o acima descrito. Quando pessoas – que procuram na alienação, nas muitas oferecidas hoje, lenitivo e esquecimento para o fato de não terem futuro, que se sentem e se tornam de fato doentes por falta de esperança etc. – quando essas pessoas se engajam conscientemente na vivência da justiça de Deus no mundo, poderão achar sua identidade perdida e uma razão para sua existência. A descoberta se torna eclesiástica e social quando tais pessoas descobrem que essa luta só pode ser conjunta, nunca individualizante, mas comunitária, socializante.
Bibliografia usada e sugerida:
– BARTH, G. A Primeira Epístola de Pedro. São Leopoldo, 1967.
– LANSON, A. Libertar os oprimidos. Crateús, 1969.
– SEGUNDO, J.L. Teologia aberta para o leigo adulto. Vol. 2. S. Paulo, 1977. (especialmente 1. Salvos, aqui ou no além? e 2. A Liberdade e os seus momentos)
– TRAUB, H. Meditação sobre 1 Pedro 2.21-25. In: Herr tue meine Lippen auf. Vol. 2. Wuppertal-Barmen, 1959.
Sobre a questão da identidade: PRIEN, H.J. Identität und Entwicklungsproblematik. In: DUCHROW. U. ed. Zwei Reiche und Regimente Gütersloh, 1977.