Proclamar Libertação – Volume 36
Prédica: 1 Pedro 3.18-22
Leituras: Gênesis 9.8-17 e Marcos 1.9-15
Autor: Flávio Schmitt
Data Litúrgica: 1º Domingo na Quaresma
Data da Pregação: 26/02/2012
1. Introdução
A caminhada da igreja mais uma vez recomeça com a Quaresma. Depois das férias, depois das festas, inclusive do carnaval, agora é hora de recomeçar também no calendário eclesiástico. Tema do ano, campanha da fraternidade, reuniões e estudos bíblicos fazem parte deste tempo de preparação que antecede a Páscoa, o grande dia.
Para este novo tempo, o texto escolhido para pregação é da Primeira Carta de Pedro. Quando o assunto é 1 Pedro, a primeira lembrança que vem à mente remete à ideia do “sacerdócio geral de todos os crentes”. Porém, neste início da Quaresma, esse assunto é coadjuvante.
A carta de Pedro confronta-nos com uma questão da mais alta relevância para a igreja primitiva, com a qual as futuras gerações certamente haverão de se defrontar: como viver como cristão numa sociedade não cristã?
Os textos de leitura para este primeiro domingo da Quaresma têm afinidade temática com o tema da aliança. Em Gênesis (Gn 9.8-17), a aliança é com Noé, cujo sinal é o arco-íris. O Evangelho de Marcos destaca o batismo de Jesus e o início de sua atividade pública com o anúncio do reino de Deus (Mc 1.9-15).
2. A Carta de Pedro
A Primeira Carta de Pedro foi redigida possivelmente na comunidade judaico-cristã de Roma (5.13), onde a tradição petrina era guardada de modo especial. Quando a carta foi escrita, lá pelo final do primeiro século da era cristã, Pedro já havia se tornado uma figura de grande prestígio em toda a igreja. Como um dos primeiros apóstolos e como mártir de Roma, a palavra de Pedro tem credenciais. Entre os destinatários da carta estão cristãos da Ásia Menor, mais precisamente os eleitos na dispersão (1.1).
De certa forma, a carta atualiza a autoridade de Pedro para consolar, exortar e animar os cristãos que vinham sofrendo hostilidades, provocações e perseguições. Esses seguidores do Cristo há pouco evangelizados são desafiados a viver segundo o batismo numa sociedade avessa ao evangelho. Como ainda não estão suficientemente firmes para conviver com os conflitos e as adversidades, a carta tem o propósito de confirmar a identidade cristã e sensibilizar para a solidariedade e unidade da igreja.
O conteúdo da carta pode ser percebido em duas partes. A primeira trata da vocação cristã (1.3-2.10). A segunda trata das consequências concretas para a vida dessa vocação (2.11-5.11). Para o ser e o fazer cristão vale o princípio “assim como Cristo”.
Assim como Cristo é a “pedra viva” (2.4), escolhida (2.5), dedicada, santa (2.9), os cristãos também são os escolhidos de Deus, ainda que sua dignidade diante de Deus esteja em oposição à rejeição que experimentam na sociedade. Assim como Cristo foi rejeitado e sofreu, também os seus seguidores passam por sofrimentos.
Para ajudar nesse discernimento, Pedro alude diversas vezes à experiência dos antepassados na fé, o povo de Israel. Tanto o êxodo como o exílio, relidos na carta (2.1-10), têm o objetivo de fortalecer a conduta e autocompreensão dos cristãos.
Na estrutura da carta, podemos identificar a saudação inicial, seguida da ação de graças (1.1-12), o estilo de vida cristão (1.13-2.10), a condição do cristão no mundo (2.11-4.12), o viver em conflito (4.13-5.11) e, por fim, a saudação final (5.12-14).
Na teologia da carta, alguns temas se sobressaem: estrangeiros no mundo, o “verdadeiro” povo de Deus, a ética cristã e os sofrimentos do mundo. Ao chamar seus destinatários de estrangeiros residentes (“estrangeiros na própria casa”), Pedro emprega a expressão “nascer de novo” (1.3-4) para falar da vida fraterna que são chamados a viver. Não obstante as provações e provocações, a esperança fundamentada na ressurreição de Jesus não decepciona.
Qual era, afinal, o sofrimento dessa gente? Primeiramente, eram uma minoria como cristãos. Com a conversão, essa gente muda de comportamento (1.14; 4.3-4), o que não é bem visto pelos pagãos. Por conta disso, passam a ser vítimas, caem em descrédito “perante a opinião pública” (2.1-12; 3.14; 4.4). Além da discriminação de que são vítimas, sofrem marginalização social e política, são os não cidadãos. Toda essa conjuntura desfavorável é agravada ainda mais com a separação do movimento cristão de suas raízes judaicas. Essa tensão com o ambiente externo tem reflexo na comunidade, provocando tensões e comprometendo a coesão interna.
3. Exegese
A perícope de 1 Pedro 3.18-22 está inserida no conjunto maior da carta que trata do comportamento em relação ao mundo. Começa com uma exortação geral, que inicia essa parte da carta (2.11-12). Na sequência, os leitores são exortados a colaborar com as autoridade civis (2.13-17). Segue uma orientação para os escravos cristãos (2.18-25). Em seguida, trata do testemunho cristão de esposas e maridos na vida matrimonial (3.1-7), da importância de fazer o bem sem olhar a quem (3.8-17), da paciência segundo Cristo (3.13-22) e da ruptura com o pecado (4.1-11). A doxologia de 4.11 indica que no versículo 12 temos um novo começo. Na sequência, a carta fala do sofrer por ser cristão (4.12-19) e dirige-se aos líderes, anciãos e jovens, e membros da comunidade (5.1-11). Portanto a parte da carta que interessa está inserida num conjunto em que é tematizada a paciência/sofrimento (do latim patere = sofrer), inspirada no exemplo de Jesus.
Algumas das verdades fundamentais da fé cristã, consignadas inclusive na formulação do Credo Apostólico, estão presentes nesse texto: Jesus morreu, desceu à “mansão dos mortos”, ressuscitou, subiu ao céu, está sentado à direita e tem poder sobre anjos, dominações e potestades.
O v. 18 fala do sofrimento vicário de Cristo. Sofreu uma vez por todas (aludindo à expiação do cordeiro) e pelos pecados, o justo pelos injustos, a fim de vos conduzir a Deus. O sofrimento vicário de Cristo quer conduzir a Deus. “Tendo sido morto segundo a carne, foi vivificado pelo espírito.” Ao falar da morte segundo a carne (sarks), argumenta que Jesus morreu como morrem os humanos. Jesus era verdadeiramente humano, mas foi vivificado pelo Espírito (pneuma).
No Espírito (v. 19), foi anunciar aos espíritos na prisão e aos que haviam sido desobedientes outrora (v. 20), quando Deus usava de paciência, como nos dias em que Noé construiu a arca. Na arca, poucas pessoas – oito almas – foram salvas por meio da água.
A água (v. 21) corresponde ao batismo que agora nos salva. Esse batismo não consiste em lavar a sujeira do corpo (sarks), mas um compromisso de boa consciência feito para com Deus por meio da ressurreição de Jesus Cristo, que foi para o céu e está sentado à direita de Deus (v. 22), a quem estão submissos os anjos, as autoridades e os poderes.
A perícope de 1 Pedro 3.18-22 tem a função de dar uma fundamentação cristológica para a argumentação da unidade anterior (3.13-17), em que o apóstolo exorta os perseguidos, as vítimas, a sofrer por causa da justiça. Cristo, em quem se tem parte pelo Batismo, é exemplo de paciência no sofrimento.
4. Meditação
A perícope aponta para duas direções. Por um lado, fala do sofrimento de Cristo. Descreve todo o caminho percorrido por Jesus até alcançar a destra de Deus. Em 1 Pedro 2.21, a carta já havia mencionado o sofrimento de Cristo: “o próprio Cristo sofreu por vocês e deixou o exemplo, para que sigam os seus passos”.
As palavras da carta tratam de reforçar dois aspectos relacionados com o sofrimento de Cristo. Uma vez, que Jesus não resistiu ao sofrimento. A exemplo do servo, Jesus cumpriu sua sina por conta do compromisso assumido. Por outro lado, não há realidade que Jesus não tenha alcançado com sua trajetória, nem na vida tampouco na morte. Toda a realidade agora está sob seu governo.
Em outra direção, essa passagem de Pedro também fala do testemunho cristão. Inspirado no exemplo de Jesus, é preciso resistir e manter a consciência limpa. Aliás, a “consciência limpa” aparece duas vezes (3.16 e 3.21) nesse contexto. Se há alguma justificativa para o sofrimento de um cristão, esse consiste no sofrimento de Cristo (3.19). O único sofrimento digno de ser sofrido é aquele que se sofre em nome da justiça, da verdade e de Deus. Batismo é banhar-se no sangue de Jesus. Esse é o compromisso selado pela ressurreição.
Entre as muitas possibilidade de abordagem para as quais o texto aponta, destaco duas. Primeiro, a questão do testemunho em meio ao “mundo pagão”. De fato, não é essa a realidade em que vivemos. Pelo contrário, vivemos numa cultura cristianizada. Tudo ao nosso redor lembra as raízes judaico-cristãs da tradição ocidental. Ainda assim, há espaço para o assunto proposto. Afinal, é cada vez maior o número de pessoas que, mesmo vivendo nesta sociedade cristã, declaram-se praticantes de outras religiões. A pergunta fundamental diz respeito à diferença que nós, enquanto cristãos, podemos fazer nesta sociedade. Ainda é assim que não temos sido impedidos, muito menos cerceados, em nosso testemunho seja pela lei ou por outra razão? Diferente do passado, hoje podemos nos reunir, celebrar etc. Porém como tem sido o comportamento ético dos cristãos? Nesse quesito, talvez devamos assumir nossa culpa no cartório. Pois é justamente nesse aspecto que o testemunho das comunidades da Ásia quer inspirar nosso próprio testemunho. Assumir o evangelho, testemunhar Cristo tem implicações concretas para a vida pessoal, familiar, comunitária e social. Exige rupturas. Tem um preço a ser pago. Estamos dispostos?
Em outra direção, a abordagem do texto permite tematizar o sofrimento. Não é de hoje que se afirma que nossa sociedade tem dificuldade para lidar com a realidade do sofrimento em suas múltiplas e infinitas formas de manifestação. De fato, nós mesmos temos dificuldades para lidar com essa realidade em nossas vidas, a começar pela dificuldade em discernir o que efetivamente é sofrimento. Embora o sofrimento no mundo não pare de crescer e constantemente novas formas de sofrimento estejam sendo criadas e inventadas, o sofrimento de Jesus continua sendo um paradigma, tanto para dizer o que é sofrimento como para dizer o que vale a pena sofrer.
De modo geral, vivemos uma situação contraditória em relação ao sofrimento. Por um lado, ouvimos o discurso, especialmente do mundo religioso, que simplesmente nega o sofrimento (Seicho-no-iê), ou vemos o sofrimento transformado em espetáculo. Do outro lado, deparamo-nos a cada dia com um número maior de pessoas que “sofrem” em vão, à toa. São sofrimentos inúteis, sem sentido nenhum. Alguém, por exemplo, que entra em “deprê” por não conseguir a sonhada BMW. Ou então aquela pessoa que sofre por não alcançar o ideal estético exigido pela sociedade. Trata-se, nos dois casos, de um sofrimento inútil, absurdo. Em meio a esses dois extremos, a fé cristã tem muito a dizer.
A partir de Jesus há, sim, um sofrimento que deve e pode ser assumido. Em nome de Deus, pela justiça, por amor ao irmão ou em nome de Jesus, o sofrimento torna-se vicário, tem poder salvífico, é escalado para tornar-se eterno. Não se trata de correr contra o punhal, mas assumir as consequências e desdobramentos do compromisso com o reino de Deus. A partir do momento em que pessoas e comunidades puderem assumir o sofrimento por causa do evangelho com outra consciência, certamente o testemunho cristão será mais confiável e mais pessoas haverão de lamentar os sofrimentos inúteis que alimentaram em suas próprias vidas.
5. Subsídios litúrgicos
No kyrie e na confissão de pecados, destacar os sofrimentos, dores e lamentos deste mundo. Dar nome e endereço aos sofredores. Colocar sua causa no altar. Lembrar a fragilidade de nosso testemunho, que não convence. Agradecer pelo exemplo de Jesus e lamentar pelos sofrimentos inúteis.
Na oração geral da igreja, interceder pelos sofredores, lembrar quem sofre na comunidade, motivar para a resistência em meio às dores deste mundo. Pedir pelo comprometimento das igrejas com os que sofrem.
Atividade prática: Nesta Quaresma, envolver pessoas e comunidades na identificação e solução das situações de sofrimento mais próximas.
Bibliografia
BROWN, Raymond . Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Paulinas, 2004.
LOHSE, Eduard. Introdução ao Novo Testamento. São Leopoldo: Sinodal, 1974. 269 p.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).