Boa consciência diante de Deus
Proclamar Libertação – Volume 42
Prédica: 1 Pedro 3.18-22
Leituras: Gênesis 9.8-17 e Marcos 1.9-15
Autoria: Humberto Maiztegui Gonçalves
Data Litúrgica: 1º Domingo na Quaresma
Data da Pregação: 18/02/2018
1. Introdução
Estamos iniciando o tempo da Quaresma. Esse evoca a “quarentena”, isto é, os quarenta dias de Jesus no deserto, mencionados na leitura do evangelho segundo a comunidade de Marcos (1.13), e que, por sua vez, evocam quarenta dias e quarenta noites do dilúvio purificador da terra e da arca de Noé, cujo final aparece na leitura de Gênesis para este domingo (cf. 7.4 e 9.11). Também evoca os quarenta anos de peregrinação pelo deserto do povo libertado do Egito rumo à terra prometida (cf. Êx 16.35) e – dentro desse mesmo relato – o jejum de Moisés no monte santo, ao receber os dez mandamentos (Êx 34.28). São quarenta dias antes de celebrar a ressurreição, tendo a vitória de Cristo crucificado sobre a morte como seu horizonte teológico, como nos lembra também o texto de pregação (1Pe 3.21).
A Quaresma nos remete para os desertos de nossa vida (solidão, angústias, dúvidas, desesperos, tristezas etc.), de nossa sociedade e de nosso mundo (violência, preconceitos, discriminações, exclusões, impunidades, opressões…). São essas coisas que não queremos ver e das quais preferimos nos afastar, que com a graça de Deus temos – como nos tempos de Noé, Moisés e nosso Senhor – que enfrentar e colocar dentro do projeto maior do seu reinado.
O texto da pregação resume esses propósitos, convidando-nos a assumir “uma boa consciência diante de Deus” a partir dos exemplos do passado e do sentido de nosso batismo e confirmação na fé.
2. Exegese
A Primeira Carta de Pedro foi escrita a partir do martírio do apóstolo, que se deu no contexto da primeira perseguição promovida pelo Império Romano contra as comunidades cristãs (por volta de 64 d.C.). Esse contexto foi atualizado diante de uma perseguição, ainda maior, sob o imperador Domiciano (94 d.C.). Portanto a motivação da carta foi fortalecer as comunidades de fé que estavam sendo perseguidas. Vemos que o foco são as pessoas refugiadas ou peregrinas, isto é, comunidades e famílias que se viam obrigadas a fugir de um lado para outro, sem casa. Daí vem o termo “para-oikos” e depois o termo “paraoikia” ou “paróquia” como o lugar que abriga as pessoas em peregrinação (cf. 1Pe 1.17; 2.11).
2.1 O lugar do texto no plano geral da carta
Dentro do plano geral do livro, o texto de 3.18-22 encontra-se no final da primeira parte (1.3 a 4.11), que pode ser chamada de “sermão batismal”. Ali se resgata o sentido redentor e inclusivo do batismo cristão que, nesse texto, é comparado com a salvação promovida pela arca de Noé (1Pe 3.20-21). O batismo proclama a inclusão para as pessoas perseguidas, refugiadas e peregrinas e o compromisso que temos com elas!
Por sua vez, a delimitação da perícope carrega algumas controvérsias, já que para alguns estudos o texto iniciaria em 3.14 (Trimaille, 1987, p. 285); outros, ainda, indicam o começo em 3.13. Lohse, no entanto, delimita a perícope entre os versículos 18 e 22, como exemplo de “formulações querigmáticas de confissões e hinos cristãos primitivos, de maneira que o padecimento dos cristãos é colocado em relação ao sofrimento de Cristo (1.18s; 2.21-15; 3.18-22)” (Lohse, 1985, p. 229). Sendo assim, o autor convida a buscar alguns desses elementos na sua composição.
2.2 Análise do texto
O primeiro versículo dessa perícope oferece desafios em relação à sua tradução. Na tradução segundo Almeida (Revista e Atualizada, Edição Missionária, 1993), lemos: Pois também Cristo morreu uma única vez, pelos pecados, o justo pelos injustos, para conduzir-vos a Deus; morto, sim, na carne, mas vivificado no espírito. Na Bíblia Sagrada da Editora Vozes, lemos: Pois também Cristo morreu uma única vez pelos pecados, o Justo pelos injustos, para vos conduzir a Deus. Sofreu morte em sua carne, mas voltou à vida pelo Espírito. As diferenças parecem sutis, mas outorgam a alguns termos valor hermenêutico diferente.
A primeira parte do versículo (3.18a) não oferece diferenças. Porém, na segunda parte, o texto grego diz tanatotheis men sarki, o que literalmente seria “foi morto verdadeiramente em carne”. A pequena partícula men é que faz toda a diferença, resgatada sutilmente por Almeida no “sim”. Parece haver aqui uma contestação à visão gnóstica da morte de Cristo só em aparência, não na carne. Depois se afirma zoopoeiteis de to pneumati, isto é, “foi vivificado”, só que a conjunção de pode ser adversativa (mas, porém) ou continuativa (e, então), continuado pelo artigo definido to (este, o). Portanto a interpretação que nos parece correta é que foi vivificado pela ação do Espírito, com maiúscula, ou, do Espírito de Deus, e não que teria voltado à vida apenas “em espírito”, o que seria contraditório em relação à afirmação de que morreu verdadeiramente em carne.
Esse versículo vai como que se “derramando” nos versículos seguintes, sendo que ali o pronome ho (o qual, a qual), desempenha um papel claramente estruturante, iniciando o v. 19 en ho (no qual), o v. 21 (o qual), e o v. 22 (hos / quem). Como em uma confissão de fé!
Outra questão que chama a atenção encontra-se no v. 20, que parece iniciar com a interrogação: Rebeldes (apeitesasin)? Ao que lhe segue a expressão pote hote, que Almeida traduz “noutro tempo” e a Bíblia Sagrada da Vozes como “outrora”, referindo-se aos tempos de Noé. A pergunta, omitida em ambas as versões, é também importante, pois exclui um sentido meramente afirmativo ou confessional e coloca um sentido reflexivo. Também a palavra hapax (único), presente no v. 18, aparece aqui novamente – mesmo que sem ser considerada pelas traduções aqui consultadas – para se referir ao evento de Noé que, como a morte de Cristo foi único, ligando-o a um único batismo de salvação.
Sendo assim, propomos a seguinte estrutura para a perícope:
3.18: A afirmação da verdadeira morte e verdadeira vida em Cristo, o Justo, pelas pessoas injustas.
3.19: o qual, isto é, no Espírito, foi resgatar os espíritos prisioneiros.
3.20-21: Reflexão sobre rebeldia/desobediência passada e salvação pela água do único batismo na ressurreição de Cristo, na busca da “boa consciência para com Deus”.
3.22a: Afirmação da ascensão de Cristo, e seu reinado à destra de Deus.
3:22b: Subordinação a Cristo de anjos, potestades e poderes.
Enfim, a perícope assume a configuração de uma confissão de fé que, por sua vez, é usada para provocar uma reflexão introduzida no meio dela pelo uso da interrogação e pelo exemplo da salvação pela águas no relato de Noé, e no batismo de Cristo morto e ressuscitado em favor das pessoas injustas.
3. Mensagem: uma boa consciência para com Deus: como?
Tenhamos em mente aquelas pessoas escravizadas pelo domínio romano, desvalorizadas pela sociedade preconceituosa grega (especialmente contra os seres chamados “físicos” ou “carnais” em oposição a pessoas consideradas “psíquicas” ou “espirituais”), que abraçaram a fé em Cristo e receberam um batismo que as tornava iguais em dignidade, através do qual sentiram o sentido de ser justificadas e redimidas.
Então, acontece outra grande perseguição, da mesma origem da que antes promoveu o assassínio do apóstolo Pedro (de quem receberam a fé), que ataca impiedosamente. Essas pessoas, refugiadas, são forçadas a abandonar suas casas e buscar abrigo em outras comunidades, também amedrontadas, gerando uma situação dramática tanto para as refugiadas como para comunidades desafiadas a acolhê-las.
Diante de um quadro de angústia e desespero houve dúvidas sobre o sentido da fé. Além de afirmar ou reafirmar a fé, havia que ir mais fundo e refletir radicalmente, isto é, desde as raízes, sobre o sentido profundo da morte de Cristo, sua ressurreição e sobre o batismo que expressava essa fé.
A confissão de fé começa afirmando que Cristo é o único justo! A justiça de Cristo se revelou no fato de ser morto para salvar todas as pessoas injustas. Isso coloca toda a humanidade em igual dignidade diante do justo e injusto. Não há discriminação possível! Ninguém pode ser “superior” ou “mais justo”, havendo, portanto, uma única justificação em Cristo. Ele se fez carne. Morreu de forma verdadeiramente carnal. Isto é, como aquelas pessoas mais discriminadas e desvalorizadas. Essa vitória se deu pelo mesmo Espírito que lhe vivifica e salva os “espíritos encarcerados” na morte (3.18).
A confissão de fé se completa, em um segundo momento, no versículo 22, dizendo que não há poder maior do que Cristo que ascendeu, que está a direita de Deus, e tudo a ele é submetido nos céus. Não há império perseguidor e assassino de apóstolos e comunidades que possa derrotá-lo.
No meio da confissão de fé, encontramos o convite à reflexão sobre a vida concreta, sobre a realidade da perseguição, medo e angústia. Uma reflexão quer gerar uma nova consciência para com Deus, a consciência de Noé. Essa consciência leva a nos ajudar solidariamente e a fazer de nossas comunidades arcas que proclamem a vida no meio da morte. Essa consciência não se acanha porque somos “pouca gente”, nem mesmo as “oito pessoas”, que é a comunidade pequena de Noé. A consciência de que o batismo que nos inclui, nos iguala em dignidade e nos une a Cristo e a toda a humanidade em sofrimento e esperança, pode resistir e vencer.
Temos essa fé? A fé da rebeldia redimida pelo justo que vence a morte através da água do batismo? Temos a fé que acredita que pouca gente pode fazer a diferença através da fé? Acreditamos que nada mais precisamos? Da resposta que, em Cristo, pela sua graça, damos a essas perguntas dependerá se temos ou não “uma boa consciência para com Deus”.
Hoje, vivemos em um mundo em guerra. Mais de 60 milhões de pessoas foram obrigadas a se refugiar, na maior onda migratória da história da humanidade. Diante disso há governantes e pessoas que defendem posicionamentos políticos, querendo construir muros cada vez mais altos, querendo expulsar, expondo seres à morte e ao sofrimento; veem-nos como ameaça terrorista, e assim por diante. Essa é a boa consciência que recebemos pelo batismo?
Há um genocídio da juventude, especialmente da juventude negra, e os poucos direitos recuperados pelas comunidades indígenas e quilombolas voltam a ser ameaçados. Será que isso tem a ver com a boa consciência diante de Deus vivenciada em nossas comunidades de fé como arcas de Noé? Podemos ter uma boa consciência em Cristo e nos omitir diante desses genocídios? Qual é a boa consciência para com Deus diante de tudo isso?
4. Imagens para a prédica
O texto nos convida a partir do batismo. Batismo é uma imagem forte para nós: a água, a família reunida, a afirmação da fé, o sentido da nossa identidade na igreja de Cristo e do compromisso com sua missão. Lembremos desses momentos tão felizes, tão significativos, até mostrando as lembranças ou certidões que atestam que fomos uma vez batizados(as), onde e quem em nome de Cristo nos acolheu, quem foram nossas madrinhas e nossos padrinhos.
Ao lado disso, coloquemos as imagens das migrações forçadas, das pessoas que se afogam no Mediterrâneo tentando chegar à Europa, dos campos de refugiados na Turquia, dos discursos contrários ao acolhimento dessas pessoas, de quem tem assumido sua defesa e coloquemos um grande sinal de interrogação.
Coloquemos também imagens das pessoas refugiadas vendendo coisas pelas ruas de nossas cidades, dos povos indígenas, das comunidades quilombolas e do genocídio promovido por todo tipo de violência. Aqui segue outro sinal de interrogação.
No meio de tudo coloquemos nossa afirmação de fé e uma grande arca de Noé que vá navegando em meio de tudo. Essa arca somos nós, a igreja de Cristo, formada pelas pessoas batizadas e comprometidas com sua missão.
5. Subsídios litúrgicos
Na confirmação, outro momento importantíssimo da vida cristã, é que reafirmamos os votos do batismo. Dado o sentido deste texto, podemos propor que no momento do Credo respondamos às perguntas da confirmação, ou façamos uma fórmula alternativa que reafirme a nossa boa consciência diante de Deus e da vida do mundo.
A confissão pode ser feita em silêncio, apenas afirmando as situações de morte e perseguição vividas na nossa realidade e dizendo (ou cantando) após cada uma delas o Kyrie Eleison. A absolvição também pode seguir uma fórmula alternativa, usando o próprio texto de 1 Pedro: Cristo, que sendo justo, morreu uma única vez, pelos pecados das pessoas injustas, nos conceda o perdão de nossos pecados e, pela sua graça, uma boa consciência para com Deus, no compromisso com a sua missão através da fé a nós dada pelo batismo.
Da mesma forma, podemos colocar, no momento das intercessões, as situações de morte que encontramos no mundo e na nossa realidade local, usando como resposta: “Cristo, tu que estás à destra de Deus, ouve nossas orações”.
Bibliografia
LOHSE, Eduard. Introdução ao Novo Testamento. São Leopoldo: Sinodal, 1985.
TRIMAILLE, Michel. As Epístolas Católicas. In: As Cartas de Paulo, Tiago, Pedro e Judas. São Paulo: Paulinas, 1987.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).