Prédica: 1 Reis 19.1-13a
Autor: Clemente J. Freitag
Data Litúrgica: Domingo Oculi
Data da Pregação: 26/02/1989
Proclamar Libertação – Volume: XIV
l – Preparando a perícope
Estes fizeram o mal aos olhos do Senhor e foram piores que os seus predecessores. Esta é a perspectiva teológica oferecida pelo autor deuteronomista acerca da monarquia em Israel, a partir do exílio babilônico. Na perspectiva deuteronomista, o ciclo de Elias, que engloba l Rs 17-19; 21-2 Rs 1-2, é uma retomada da questão do poder sob o prisma da antimonarquia presente em Samuel e Nata. O relato não quer somente informar o povo sobre o que os reis fizeram, mas, princi-palmente, ensinar o povo a ler a história dos reis com os olhos de um profeta de Javé. Além disso, ele quer oferecer subsídios teológicos para a leitura e compreensão da própria história do povo de Israel dentro do remado. Para realizar a leitura da história, o relato parte da prática do culto a Javé e de suas implicações sócio-políticas na vida israelita.
A perícope indicada para o Domingo Oculi (l Rs 19.l-13a) participa da postura radical do deuteronomista sobre a monarquia de Israel. Para tanto, o autor-redator insere os feitos de Elias no dia-a-dia do reinado e da vida cúltica de Israel, como um todo, desmantelando uma prática religiosa que considerava Javé igual aos outros deuses, e ainda, como deus exclusivo da monarquia. Um deus que não percebia o sofrimento do povo e não interferia nas decisões reais. Apenas ia abençoando o que estava sendo feito. Assim, Elias passa a atuar na época da primeira dinastia real de Israel, em 860 a. C. Foi um tempo de entreguismo, tempo de imposição dos modelos estrangeiros de convivência social em Israel. No campo cultual, que é o determinante para o deuteronomista, a monarquia foi submetendo os sacerdotes e o culto a seu serviço, desvirtuando a liberdade da fé javista, aprisionando as revelações divinas e confundindo a crença dos mais humildes. Segundo o deuteronomista, isto resultou na manipulação da imagem de Javé, enfim, em idolatria.
Na ânsia de sua expansão, a monarquia em Israel não relutou em fazer alianças político-militares com outros povos. Tal postura resultou em novas formas de idolatria, que conduziram a nação à dependência e à instabilidade religiosa e social. Sem a unicidade cultual javista, não havia critérios para a convivência sócio-política em Israel. O culto javista não permitia a volta ao Egito. Esta primeira dinastia de Israel fez, entre outras, uma aliança com os fenícios, sacramentando-a por casamento. Daí brotou uma total liberdade para a prática da religião fenícia em Israel, liberdade esta que se expressou na construção do templo a Baal em Samaria (l Rs 16.32s) e a vinda de 450 profetas de Baal (l Rs 18.19) para a corte real. Não contando os outros 400 profetas já integrados aos serviços religiosos da realeza. Por outro lado, ocorreu uma perseguição aos profetas do javismo. A corte, a classe real, estava completamente paganizada. Neste embalo real é que a figura de Elias, como profeta, entra em ação. Com Baal como deus, a monarquia não se dedica precisamente a instaurar justiça no país; antes concede poderes absolutos ao rei, ferindo o relacionamento social em Israel. Esta troca de culto alterou os valores a tal ponto que, durante a seca, o rei Acabe não se ocupa com a fome do povo. Os seus cavalos (poder) e burros (riqueza) é que precisam de alimentação e proteção (l Rs 18,5). Baal não via problema nisto. O deuteronomista, no entanto, percebia, nesta prática, uma volta ao Egito.
Após estas rápidas escavações dentro do ciclo de Elias, estamos chegando mais perto do texto indicado. Antes de descansar sob a mensagem de perícope, vale ainda lembrar que, a partir de Elias, os profetas tomam o rumo da defesa da aliança e da vida do povo, contra a prepotência e a idolatria do poder monárquico exercido em Israel. Assim, o profeta do deuteronomista trava diferentes lutas entrelaçadas, que marcarão o profetismo todo. Uma das primeiras lutas desvendadas é o conflito em torno ao poder político, exercido de forma absoluta. Seguindo, reforçando e dando legitimidade ao anterior, Elias desmascara a suposta neutralidade do poder religioso, tão bem montado e orquestrado em Israel. Poucas pessoas percebiam o serviço da religião em camuflar a opressão econômica. E, por último, o profeta javista desce ao fundamento do exercício cultual, desvendando a falsidade e a idolatria acobertada no tocante ao poder sobre a vida. A luta pelo poder religioso e da vida deixa brotar os elementos centrais da perícope indicada. Esta luta aparentemente religiosa, sou aos ouvidos da monarquia como uma afronta política. A interpretação teológica do mistério da seca, a morte consequente dos profetas de Baal, mostram a falsidade e a idolatria reinante na monarquia. Igualmente identificam que lave não está ligado a um sistema econômico opressor, como este da dinastia de Omri. Baal, divindade com poderes sobre a natureza e a fertilidade, fracassa. Javé não fracassa. Baal é mudo. Javé dialoga com o seu profeta e age na natureza. Elias desvenda o falso poder absoluto do reinado, alicerçado na fé baalista.
A luta desenrolada no palco da área cultual e do poder sobre a vida leva o deuteronomista a perceber que o pecado da realeza atrai o povo por caminhos que o levam a desrespeitar a lei de Deus. Como tal, a monarquia passa a ser um entrave ao culto a Javé. Neste sentido, o profeta Elias entra em conflito com todo o mundo. Precisa anunciar, de forma positiva, a vontade de Deus em detrimento de qualquer outra vontade. Precisa denunciar, de forma negativa, tudo aquilo que a ela se opor, exercitando, assim, o juízo e discernindo a vontade de Deus na história humana. O confronto que Elias tem na área do poder político-religioso e da vida levam-no a entrar em conflito consigo mesmo, com os outros dirigentes, sábios, religiosos e até profetas, e até com Deus e com o povo.
II – Comentários
O concurso cultual e, em especial, a morte dos 450 profetas de Baal chegam aos ouvidos da rainha. Uma cena religiosa passa a ser usada como um trampolim político. A conotação política resvala no pano de fundo da cena, que é a economia exercitada no reinado. Cavalo abastecido e povo com fome. A ação de Elias cheira a golpe do poder real constituído (v. 1). Jezabel não aceita as conclusões e o veredito do concurso religioso e manda matar Elias (v.2). Com medo, o profeta de Javé foge e parte em direção ao Sul (v. 3). Não permanece, contudo, aí. Segue adiante, rumo ao deserto. Após longa caminhada pára e pede a morte para si. Primeiro foge da morte, depois a chama para si (v. 4). Cansado, faminto, com sede, desanimado com o povo, sem conforto divino, entrega-se ao sono. Necessidade de descanso e de refúgio mostram a limitação e a fraqueza dos servos de Deus (vv.5-8). A peregrinação denota uma volta às origens do javismo (cf. Êx 3; Êx 19 e Dt 8) e um reencontro com Deus. Apesar de sua caminhada em direção às origens da fé javista, a fraqueza humana do profeta quase que impossibilita perceber a nova revelação de Deus (vv.10,12). O profeta tenta enquadrar Deus nas revelações conhecidas (Êx 3), contudo Deus não aparece. Deus foge do esquema conhecido (v.12) e aparece na brisa suave. É preciso ter tempo para perceber a revelação de Deus, e para saber que a conjuntura era outra daquela do tempo de Moisés. A monarquia conseguiu complicar tanto a fé javista, que a imagem de Deus quase estava apagada. Somente na suavidade da vida é que Deus fluía. Mais, a luta interior do profeta, sua visão do problema e o fato de ser o único defensor vivo da causa (v. 10) quase impediram o caminho da libertação. Ignorou a existência de muitos adeptos de Javé (l Rs 17.3-15; 18.13; 19.18; 21.3; 2 Rs 2.3-5): sete mil ao todo.
Com esta inserção teológica na monarquia exercida na dinastia de Omri, o deuteronomista mostra que urge buscar, na fonte da fé javista, o fortalecimento e o reconhecimento real de Javé nesta época de transição e de crise profunda. Até mesmo o profeta precisa ir ao deserto. Ou melhor dito, ele é obrigado, forçado à reciclagem. Pois é necessário superar a concepção de Deus que o povo teve no deserto. É necessário atualizar o passado da aliança e obter uma nova visão de Deus. Visão esta que fizesse frente ao afastamento de Deus e a aproximação dos ídolos, dentro de uma estabilidade económica momentânea, propiciada pela monarquia, para a classe dominante e seus defensores. Para redescobrir e fortalecer a imagem divina do javismo, nada melhor do que a peregrinação ao e no deserto. A cidade cheira a idolatria e morte concentrada. Enquanto que o deserto quer simbolizar a negação da civilização estática e opressora. Na cidade apenas a opressão era dinâmica. Ainda mais que, nesta civilização, impera o poder da manipulação religiosa que transforma Javé em um ídolo, substituindo-o e, ao mesmo tempo, escondendo o rosto de Javé ao povo. Mesmo sendo o deserto um dos locais prediletos da revelação de Javé, conforme o deuteronomista, também não cabe ao profeta tentar aprisiona-lo nas manifestações até ali conhecidas. Isto limita as fontes da revelação e da libertação divina. Vale igualmente lembrar que o deserto é local de fortalecer e clarear os propósitos de Deus, na vida do profeta e para o seu trabalho. Já a atuação, a luta pública do profeta não ocorre no deserto, mas sim na cidade, na civilização.
III – Meditação
Segundo a Bíblia, a manifestação de Deus através da história humana ocorre das mais diferentes formas e maneiras. Ela está, em especial, ligada às transformações globais da história humana. Em Cristo chegou ao ápice, vencendo a morte e dando nova perspectiva ao mundo. Em cada época da história universal a presença de Deus se fez de forma diferente. E cada manifestação ou revelação inicia e determina uma nova perspectiva de vida, um novo começo de Deus conosco, visando a busca, a aproximação da criatura com seu Criador. Assim, Deus não observa e nem obedece fórmulas rijas e prontas para se revelar. De acordo com a conjuntura global da vida, de acordo com o sistema de governo e o regime, Deus se revela. Facilitando, desta forma, para cada geração a descoberta, o reconhecimento e o discernimento de sua revelação. Pois, em cada momento histórico a presença de Deus é venerada ou afastada de forma inconstante, atendendo principalmente a interesses alheios. Aí entra a ação da profecia. Em Israel, no tempo da monarquia, o país coxeava entre dois pensamentos, Javé e Baal. Elias anunciou, discerniu e profetizou a vontade divina. Lutou com a monarquia, com os profetas de Baal e com o povo desorientado. Animou o povo a parar de coxear entre dois pensamentos. Ficou só. Propôs concursos, desafios e milagres aos seus opositores, fiéis e autoridades.
Cada milagre, cada desafio e concurso propiciava uma visão, uma leitura da situação em que o país, o povo de Deus se encontrava. Diante da perseguição ao javismo, Elias incentivava e mostrava ao povo a situação de pecado em que viviam sob o reinado, através de diferentes métodos pedagógicos (holocausto-seca-ressurreição-distribuição da comida e adoração).
A limitação da força, da vida do profeta, a força do pecado crescente na monarquia, a desorientação do povo em relação à fé javista, a perseguição e o não mais perceber da revelação de Deus resultam em peregrinação. Um rebuscar da orientação na fé em Javé. Esta busca e peregrinação é determinante para o olhar, enxergar e atuar futuro do profeta. Domingo Oculi significa ir às origens e buscar, olhar o Deus que se manifesta hoje. Elias peregrinou, foi ao deserto, entrou na caverna, foi alimentado e ouviu Deus. Não ficou na caverna do individualismo. Saindo, pôs-se à entrada da caverna e recebeu sua nova missão. Assim o deuteronomista nos leva a refletir acerca da revelação, manifestação de Deus no tempo da crise brasileira e sob a nova Constituição. O profeta esperou a revelação de Deus no vento forte.no terremoto e num fogo forte. Contudo Deus não apareceu. Surgiu na brisa suave.
IV — Dicas para a prédica
1. Nível geral: Conhecer a realidade que nos cerca e identificar a quantas anda a paganização do atual sistema brasileiro na direção da idolatria do capital, em detrimento do ser humano, que é imagem e figura de Deus. (O reinado tinha 400 mais 450 profetas a seu serviço.) Como ver Deus na atual conjuntura brasileira, regida pela nova Constituição? Quais os concursos, milagres e desafios que nós lançamos aos profetas e seguidores do capital?
2. Nível comunitário: Nós, como comunidade, também coxeamos entre dois pensamentos: ser cristão e apoiar o sistema opressivo (Deus e dinheiro-poder). Deus nos convida para parar, pensar, ouvir e ver sua revelação na atualidade e agir. Agir no sentido de planejar a vida da comunidade, sua missão.
3. Nível de liderança: Nós, como obreiros(as) e presbíteros(as), que pistas e critérios teológicos oferecemos à comunidade com nossos concursos, milagres, ofícios e outras realizações a nível de comunidade? Precisamos, com nossas atividades, encaminhar o revelar de Deus e facilitar o ver a Deus por parte dos fiéis. Hoje é dia de olhar e ver a Deus. Para isto é preciso peregrinar e parar para clarear a visão de Deus, a compreensão da sociedade e a ação que Deus propõe para a salvação da humanidade.
4. Que tal entender o templo como sendo o deserto que nos prepara para a revelação de Deus? A ação acontecerá fora. Saindo na porta do templo estamos a ver Deus.
V — Subsídios litúrgicos
1. Confissão de pecados: Senhor, nesta época que antecede Pentecostes, lembramos e olhamos a vida de teu profeta de forma atualizada. Isto nos faz reconhecer que, como Igreja, achamos que somos os únicos comprometidos com a tua causa. Com isto escondemos tua face da vida de tuas criaturas. Vivemos cansados, com medo, abatidos e cheios de atividades. Como Igreja não paramos para abastecer nosso compromisso de lutar pela justiça na fonte que é Cristo. Seguimos orientações, sacrifícios, penitências e outras práticas que negam a purificação batismal. Corremos e lutamos sem mexer com uma série de acontecimentos que dizem respeito à vida dos marginalizados, doentes, velhos e crianças. Como Igreja não discernimos os fatos históricos, os acontecimentos locais à luz da tua vontade. Perdoa-nos quando ajudamos a esconder e camuflar a presença do pecado na economia, na política, no social e na religião. Perdoa-nos quando o discernimento entre falsos e verdadeiros profetas é acobertado pelos cristãos no atual regime. Perdoa-nos quando achamos que somos tão puros e perfeitos que não mais precisamos de tua revelação. Em nossa fraqueza, anima-nos a clamar por piedade, dizendo: Tem piedade de nós, Senhor!
2. Oração de coleta: Senhor, eterno e santo Deus. Preserva a tua Igreja e todos os teus seguidores da idolatria e dos falsos profetas. Vivifica em nós o teu Verbo, mediante a ação de teu Santo Espírito. Conduze nosso viver ao culto teu, nesta época que antecede Pentecostes. Concede-nos olhos para visualizarmos a lavoura da tua sementeira. E que a semente depositada em nossos corações possa ser da tua cruz e ressurreição. Amém!
3. Oração final: Senhor e Deus, teu mundo está repleto de falsos profetas. Repleto de guias que desviam o teu povo, enchendo-lhe os olhos com imagens que não falam de tua salvação, com sacrifícios e promessas que escondem tua face da vida do povo. Senhor, em humildade te pedimos: prepara-nos para sermos teus profetas dentro desta situação de morte que nos cerca; envia-nos e permite que saiamos daqui como tuas testemunhas; anima-nos a agirmos em favor dos que sofrem, dos marginalizados, dos alcoólatras, dos menores e demais brasileiros sem casa, sem terra e sem saúde. Concede aos fiéis aqui reunidos a coragem de peregrinar até a tua presença, para ali renovar o compromisso assumido no Batismo e na Confirmação. Aos que estão com medo de serem profeta convida para presenciar tua revelação também no dia de hoje, na vida dos que sofrem. Não nos deixes cair no abismo da omissão, mas renova e purifica nosso agir para honra e glória tua. Amém!
VI — Bibliografia
– HOMBURG, K. Introdução ao Antigo Testamento. São Leopoldo, 1975.
– VELOSO DA SILVA, M. A. Profetas: ontem e hoje. In: Estudos Bíblicos. Petrópolis, 1984 V. 4.
– RIVERA, F. L. Os Profetas e o conflito. In: Subsídios da Documentação. Centro de Estudos Bíblicos. (S. 1.) 1987.
– MESTERS, C. O Profeta Elias. In: Centro de Estudos Bíblicos. (S. 1.) 1987.