Sobre crises purificadoras
Proclamar Libertação – Volume 44
Prédica: 1 Reis 19.9-18
Leituras: Mateus 14.22-33 e Romanos 10.5-15
Autoria: Nilton Giese
Data Litúrgica: 10° Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 09/08/2020
1. Exegese
Um profeta exitoso, mas desmotivado
O pastor e professor Carlos A. Dreher fez excelente trabalho exegético sobre esse texto no Proclamar Libertação, v. 18, de 1992. Menciono aqui alguns aspectos de sua reflexão:
“Ao lado de Moisés, Elias é a maior figura profética do passado. Elias sempre se apresentou como uma pessoa forte e vigorosa. Foi capaz de determinar a suspensão de chuva e orvalho (17.1). Fez milagres assombrosos, até mesmo o de ressuscitar uma pessoa morta (17.8-24). Enfrentou o rei com destemor (18.17s; 21.17ss). Foi capaz de evocar fogo do céu, tanto para consumir o holocausto (18.38) quanto para eliminar os que o afrontaram (2Rs 1.9ss). Mas, agora, em 1Rs 19, é tudo ao contrário. Elias apresenta-se como um fracassado, angustiado, cheio de dúvidas e frustrações com relação à eficácia da fé que anuncia.”
Como era a vida no lugar onde Elias vivia?
autônomo. Seu primeiro rei, Jeroboão I (926-907), foi sucedido por seu filho Nadabe. Mas o reino de Nadabe não durou dois anos. Ele foi assassinado por Baasa, que assumiu o trono (906-883). O filho de Baasa, chamado Ela, chegou a suceder o pai, mas, igualmente, não ultrapassou o período de dois anos. Dinastias não logravam configurar-se no reino de Israel. Isso não precisa ser avaliado negativamente. Certamente quer mostrar que no reino de Israel havia forças populares capazes de interferir no poder.
Mas tudo muda a partir de 882 a.C. Naquele ano aconteceu uma disputa sucessória muito sangrenta que envolveu diversos pretendentes ao trono. O relato de 1 Reis 16.8-22 nos dá os detalhes. O general Zinri assassina o rei Ela, assumindo o poder em seu lugar. Mas Zinri ficou apenas sete dias no poder. Tempo suficiente para exterminar toda a família real. No entanto, uma nova revolta militar leva Zinri a cometer suicídio, incendiando o castelo real, no qual se encontrava. A partir de então, dois generais (Tibni e Omri) passam a disputar o poder, contando cada qual com apoio de parte do exército. Tibni é derrotado e Omri é o vencedor. Omri é elevado ao trono, que passa a ocupar com mão de ferro. Será o primeiro rei a conseguir instaurar uma dinastia em Israel, que durou 46 anos.
Um período de estabilidade política e prosperidade econômica
De Omri (882-871) sabemos que ele procurou dar sustentação a seu governo com uma série de alianças externas e internas, no que foi seguido por seu filho Acabe. Externamente, abriu caminho para a Transjordânia, subjugando os moabitas. Por meio do casamento de seu filho Acabe com a princesa Jezabel, conseguiu fortalecer as relações com as cidades costeiras da Fenícia, o que lhe propiciava abertura comercial para o Mediterrâneo. O filho Acabe (871-852) conseguiu, posteriormente, abrir o caminho para o sul, ao reatar relações com o Reino de Judá por meio do casamento de sua filha Atália com o príncipe herdeiro Jeorão, filho do davidida Josafá. Para o nordeste, os arameus ainda representavam problemas. Guerras constantes contra eles marcaram o período (1Rs 20; 22).
A política dos reis omridas consistiu em buscar sustentação junto a todas as camadas e tendências da população. Isso incluía os cananeus, isto é, a população não javista do país. Os reis omridas defendiam a tolerância e até mesmo a assimilação do culto agrário a Baal. Isso não significou eliminação ou marginalização do javismo. Acabe continua adorador de Javé.
O problema que se cria, porém, é o sincretismo. A população passa a ver Javé e Baal em pé de igualdade e, muitas vezes, chega a confundi-los. A pergunta de Elias no monte Carmelo é que melhor o evidencia: Até quando mancareis para os dois lados? (1Rs 18.21). O povo não vê mais diferença entre Javé e Baal.
Do ponto de vista ideológico, Baal também vai ganhando espaço. Seu culto representa melhor o esquema hierárquico da realeza e justifica mais claramente uma monarquia com características absolutistas (1Rs 21). Por outro lado, o culto a Javé vai perdendo lugar. No Êxodo, o essencial era que Javé ouve os clamores do povo, que vai adiante deles na luta pela libertação. Esse Javé queria uma sociedade solidária e fraterna. Esse referencial utópico foi ficando para trás. O culto a Baal oferecia um horizonte imediatista, que oferece o pão de cada dia.
O culto a Baal, tipicamente agrário, celebra o ciclo da natureza. Nesse culto, a fecundidade, tanto da terra como da vida animal e humana, tem papel central. A fertilidade promove a economia. Quanto mais produtos, tanto mais tributos, base para o comércio promovido pela corte. Por isso o rei defende o culto a Baal, o que lhe garante o direito ao tributo. É nesse contexto que Elias proclama a seca (1Rs 17.1). Agora a eficácia dos deuses está em discussão. Quem garante a natureza? Javé ou Baal?
Contudo, o rei não está preocupado com as disputas religiosas. Isso parece ser coisa para Elias e para a mulher do rei, chamada Jezabel. Enquanto ambos brigam entre si, o rei persegue seus reais interesses. Em meio à seca, o rei Acabe não está preocupado com Deus nem com o povo. Ele quer garantir seus cavalos e seus mulos (1Rs 18.5), ou seja, a base do exército e do comércio. Cavalos são fundamentais para o exército; mulos transportam cargas nas caravanas.
Mas Elias proclama que Javé não admite reis que não pensam no bem-estar dos mais pobres. Javé é o Deus que continua ouvindo o clamor do seu povo. A dinastia de Omri havia trazido prosperidade econômica a Israel. Mas ao mesmo tempo fez com que as pessoas abandonassem a utopia de uma sociedade justa e fraterna. A utopia de uma sociedade campesina solidária foi substituída por práticas cultuais devassas, que reduziam mulheres e homens, animais e a terra a meros objetos de reprodução. Mesmo que Elias tivesse feito várias demonstrações que poder de Javé é superior ao de Baal, mesmo assim, o povo não queria saber. O culto a Baal era mais sedutor. A camada majoritária da população, inclusive os mais empobrecidos, se renderam às graças de Baal. Depois de muitos conflitos, Elias joga a toalha. Decide largar tudo com a justificativa: Só eu sobrei!
A volta às origens
Elias se retira, vai para Horebe/Sinai, local da revelação de Javé. O texto fundamental é Êxodo 3, no qual se dá a revelação de Javé por excelência, mas além dele, Juízes 5, Êxodo 19; 33; Deuteronômio 33. Todos eles identificam o monte santo como o local revelador da presença de Deus. Foi ali que Moisés conheceu o Deus que vê, que ouve, que conhece o clamor e a aflição de seu povo e que desce para livrá-lo (Êx 3.7s). Foi ali que se estabeleceu a aliança entre Javé e seu povo (Êx 19.1ss), dando-lhes a sua lei, reveladora de sua vontade (cf. Êx 24; 33). Não é, pois, à toa que Elias vai ao Horebe. Ele vai em busca de seu Deus, no momento de sua maior frustração.
Estando em Horebe, Elias ouve a palavra de Javé: Que fazes aqui, Elias? Deus bem sabe por que Elias estava ali. Mas é necessário que ele mesmo expresse a razão de sua busca por Deus. E aí Elias conta sua história. Elias espera que Deus tome as dores de seu profeta e castigue o povo que virou as costas para Javé.
Mas a resposta de Javé a Elias é outra. Deus deixa claro que ele não quer castigar o povo rebelde. Esses fenômenos da natureza (ventania, terremoto, fogo) são relatados em outros trechos da Bíblia como instrumentos do juízo de Deus. Ventania é um instrumento ameno do juízo de Deus (Jó 1.19; Jr 4.11-13; Ez 13.11-13; Jn 1.4; Êx 10.13; Sl 11.6). Terremoto é um instrumento mais forte do juízo de Deus (Ez 38.18-23; Mt 27.52). O fogo é um instrumento por excelência do juízo de Deus (Gn 19.24; Ml 3.19; Is 66.15s; Ez 38.22 e 39.6). No entanto, a ausência de Deus nesses fenômenos deixa bem claro que Deus não deseja a morte de seu povo, ainda que seja um povo incrédulo e desobediente.
Elias deve ter ficado decepcionado. Ele esperava uma atitude de vingança de Javé. O que Deus vai fazer para castigar esse povo que trocou de utopia, que trocou de horizontes, que abandonou o compromisso de construir uma sociedade fraterna e justa por rituais de fertilidade? O que Javé vai fazer?
Ouve-se apenas o som de uma calmaria silenciosa. Um silêncio audível. Só depois de ouvir esse silêncio é que Elias ouve a voz de Javé. Quando nada mais parece audível, então a voz de Javé se faz ouvir. E Javé pergunta outra vez: Que fazes aqui, Elias?
Elias conta outra vez sua história. Mas ele já sabe que Deus não vai castigar o povo desobediente. Elias já entendeu que a presença de Deus não está no juízo. Mas Elias quer saber se Deus vai deixar tudo isso assim mesmo.
E Deus responde dizendo que o povo precisa aprender com suas escolhas. Um povo que abandona a liberdade pela segurança, que trocou a liberdade pela segurança é um povo que reduziu seus horizontes de vida. Por isso, ao invés de anunciar o juízo, Deus envia Elias para “ungir” Hazael, Jeú e Eliseu. São lideranças que prometem segurança, mas a incumbência deles é nitidamente de juízo (quem escapar da espada de Hazael, Jeú o matará. Quem escapar da espada de Jeú, Eliseu o matará). Parece a mesma progressão dos instrumentos naturais (ventania, terremoto, fogo). No entanto, Deus volta a dizer que a destruição e a matança não são obras de Deus. São consequência das escolhas das pessoas.
Deus não quer a destruição seu povo. Ele espera que seu povo se arrependa e volte para ele. Não apenas uma parte do povo. Mas todo o povo. O número sete mil é simbólico. O número sete simboliza a plenitude e mil a multidão. A salvação da plenitude da multidão, esse é o desejo de Deus.
2. Meditação
As crises são purificadoras
Martim Lutero ensinava que devemos ler os textos bíblicos com a seguinte pergunta: De que maneira esse texto promove a Cristo? Jesus está de acordo com o que esse texto ensina? Jesus chamava as pessoas a amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo. Façam aos outros o que querem que eles façam a vocês, pois é isso que quer dizer a Lei de Moisés e os ensinamentos dos profetas (Mt 7.12). A predestinação na igreja luterana é que a salvação é para todas as pessoas. No entanto, quem decide se afastar do Pai, Jesus simplesmente o deixa ir. Assim foi com o jovem rico, foi assim com o filho pródigo (Mt 19.16-30 e Lc 15.11-32). Jesus convida, mas não obriga. Quando as pessoas se afastam da vontade de Deus, Jesus deixa simplesmente que elas experimentem o amargo de suas escolhas. Deus não castiga. Deus apenas fica para trás e deixa que a pessoa siga o caminho que escolheu.
Em Mateus 12.22-33, a comunidade de discípulos no barco representa bem a imagem de uma igreja que deixa Jesus fora do barco. O barco é ameaçado pelas ondas. Nesse momento, o desespero dos discípulos é que Jesus não está com eles no barco. E de tão apavorados os discípulos não conseguem ver Jesus se aproximando. O medo os aterroriza. Para eles, real é apenas aquela forte tempestade.
Por isso as crises não representam o castigo de Deus. Crises são oportunidades de purificação, por meio das quais Deus quer nos fazer ver que andamos por caminhos equivocados e que necessitamos libertar-nos de interesses pessoais, das falsas teologias, de convicções políticas enganosas e dos horizontes imediatistas.
O apóstolo Paulo enfatiza que todas as pessoas são pecadoras e necessitam da justificação por graça da parte de Deus. Mas o apóstolo Paulo externa sua preocupação e tristeza com o fato de que justamente o povo de Israel, ao qual foram conferidas as promessas de Deus e do qual partiu a salvação de Deus para o mundo, não entendeu/aceitou o propósito de Deus de salvar a todos por meio de sua graça anifestada em Jesus Cristo. Até mesmo o povo de Israel foi envolvido por caminhos próprios de salvação/justificação, rejeitando o caminho proposto por Deus.
Os caminhos próprios de salvação, a navegação da comunidade de discípulos sem a presença de Jesus, tudo isso ainda representa ainda hoje uma tentação para a igreja. Isso acontece quando a igreja decide fazer um planejamento olhando apenas para si mesma, preocupada apenas com situações imediatas de falta de dinheiro ou de baixa participação dos membros.
3. A caminho da prédica
Antes de definir ações e atividades para resolver problemas imediatos, precisamos revisitar o sentido de nossa utopia. A que Deus queremos servir? Aquele que garante apenas o pão de cada dia? Ou um Deus que, além do pão, quer que construamos um mundo com paz, fraternidade e justiça?
Javé – o Deus de Elias – deseja um mundo de liberdade e de justiça, onde as pessoas sejam solidárias e vivam como irmãos e irmãs. Uma realidade assim talvez seja impossível de alcançar. Mas a utopia é mais necessária que o pão. Já dizia o poeta Mario Quintana: “Se as coisas são inatingíveis… ora! Não é motivo para não querê-las… Que tristes os caminhos, se não fosse a presença distante das estrelas!”.
A utopia não é o oposto da realidade. A utopia pertence à realidade. Sem ela seria impossível falar de esperança. Ficaríamos apenas com o que nos pode oferecer o deus Baal. Um conformismo e uma apatia diante da boa sorte – ou má sorte – da vida. No entanto, a utopia sempre fará que digamos NÃO a qualquer situação opressora.
Por isso os grupos portadores de sentido como as igrejas cristãs, nos momentos de crise pessoal e institucional, devem manter viva a utopia do reino de Deus. Como comunidade cristã, nós devemos resolver nossas crises, não apenas com atitudes imediatistas, mas com a reflexão sobre nossos horizontes utópicos.
4. Subsídios litúrgicos
Oração
Senhor, nosso Deus e Pai, que cuidas de nós com amor de mãe. Ensina-nos o silêncio da humildade, o silêncio da sabedoria, o silêncio que fala sem palavras. Amar em vez de odiar, conquistar amigos, responsabilizar-se pelo bem-estar dos outros, começar de novo, enxergar-se a si mesmo nos outros, perdoar a culpa. Essa é a utopia que alimenta nossa fé em ti. Nos momentos de crise, dá que tenhamos ouvidos abertos para ouvir o sopro do teu Espírito Santo. Em nome de Jesus. Amém.
Bênção
Trilha o teu caminho e não deixes a dúvida tomar conta de ti. Lembra-te: o Senhor te acompanhará quando procurares fazer o que for correto. Nos momentos de escuridão, ele será a tua luz. Sê confiante e perceberás tal verdade. Que assim Deus te abençoe. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).