Prédica: 1 Reis 8.22-24,26-28
Autor: Heimberto Kunkel
Data Litúrgica: Ascensão
Data da Pregação: 28/05/1981
Proclamar Libertação – Volume: VI
I – Tradução
V.22:A seguir, perante toda a comunidade de Israel, Salomão pôs-se em frente ao altar, estendeu suas mãos para o céu.
V.23:e falou: Ó Senhor, Deus de Israel, nenhum Deus — seja em cima no céu seja embaixo na terra — se compara a ti, que preservas a aliança e a graça aos teus servos, que de todo coração andam diante de ti;
V. 24: que cumpriste o que prometeste ao teu servo, meu pai Davi; sim, aquilo que prometeste pela tua boca, isto realizaste por meio de tua mão, co¬mo hoje se vê.
V.26:E agora, Senhor, Deus de Israel, torna em verdade a tua palavra que falaste ao teu servo, meu pai Davi.
V.27:Mas habitará Deus realmente na terra? Pois o céu, e os céus de todos os céus não conseguem abranger-te, quanto menos esta casa que cons¬truí.
V.28: Atenta, porém, para a oração e para a súplica do teu servo, ô meu Senhor e meu Deus, para que ouças a alta súplica com a qual o teu servo hoje se aproxima de ti.
II – Considerações exegéticas
A perícope faz parte do Obra Historiográfíca Deuteronomística e foi inserida do contexto da inauguração do templo em Jerusalém, cuja descrição inicia no começo do cap.8. Esta, por sua vez, é uma parcela da biografia de Salomão que abrange os caps.3-11.41.
O império salomônico tinha como uma de suas partes centrais este templo, que foi inaugurado com toda pomposidade. Em 2 Cr deparamos mais uma vez com um relato sobre os festejos da inauguração. A partir de então – do momento da inauguração – o templo passa a substituir o tabernáculo que servia de sinal para a presença de Deus no meio de Israel, desde a época da migração pelo deserto. Com a edificação do templo, se concretizou a promessa feita a Davi, que culminava na certeza de que Deus passaria a morar neste templo, e que dali passaria a reger o seu povo.
Neste templo, Deus queria ser encontrado. Esta constatação, porém, encontra no v.30 uma contestação. Ali se afirma que o céu é o lugar de habitação de Deus. O fato revela um paradoxo, pois uma vez é dito que Deus habita no templo (cf.vv.13 e 16), depois se afirma que o céu é o local de sua habitação. Aliás, uma contradição semelhante se espelha nos vv.10-12. No momento em que os sacerdotes tinham concluído o santuário e colocado nele a arca da aliança, uma nuvem encheu a casa do Senhor de maneira tal que não tinham mais condições de permanecer ali. Desde a época do deserto, a nuvem é o símbolo da luz, da presença de Deus.
A seguir, então, vem a declaração do v. 12, de que Deus habitaria apenas nas trevas. As trevas, neste contexto, devem ser entendidas como sinal da inacessibilidade de Deus, isto é, de que nenhum ser humano tem condições de desvendar os seus mistério. Do lugar de sua inacessibilidade (trevas) Deus se manifesta, como indicam as seguintes passagens: Ex 20.21; Dt 4.1 Is. O Deus que se revela é ao mesmo tempo o Deus oculto (Deus absconditus et Deus revelatus).
Outra constatação paradoxal aparece, como já foi apontado antes, no v.30, mais especificamente no trecho dos vv.27-30. De acordo com o v.30, Deus habita no céu. Esta afirmação, porém, é neutralizada no v.27. O céu, e os céus de todos os céus é uma expressão que quer descrever a distância insondável entre Deus e o templo. Não existe lugar nem espaço que possa acolhê-lo. Também o universo é criação de Deus e é pequeno e limitado demais para abrangê-lo. No entanto, este Deus infinito escolheu o templo de Jerusalém como local onde pretendia ser encontrado. Este Senhor, a quem o universo inteiro e todas as criaturas adoram, cujo trono está nas alturas, inclina-se para o humilde SI 113.5-7). Nossa perícope evidencia, pois, um pensamento teológico profundo, conhecido pelo Antigo Testamento: Deus, o Senhor do mundo, não habita em santuário feito por mãos humanas. (At 17.24)
III — Relação do texto com a Ascensão
A maioria dos comentários não trata da perícope na subdivisão como nos é proposta, ou seja, 1Rs 8.22-24,26-28, mas baseia-se nos vv.12-13,27-30. Este fato permite concluir que a passagem dos vv.22-24,26-28 raramente serve de base para a prédica, e que não é muito comum sugeri-la para o Dia da Ascensão. O trecho 12-13,27-28, porém, seguidamente serve de texto para cultos de inauguração de igrejas e para o Domingo Rogate. No entanto, a nossa passagem contém valiosos subsídios para uma prédica no Dia da Ascensão, especialmente o v.27. O mesmo revela que, de uma maneira surpreendente, em meio à sua oração, Salomão levanta a pergunta: Mas habitará Deus na terra? Pois o céu, e os céus de todos os céus, não conseguem abranger-te, quanto menos esta casa que construí! Ele edificara uma casa para Deus e confia que Deus passaria a morar ali, e que ali seria encontrado. Mas também está ciente de que os céus de todos os céus são incapazes de abrigar a Deus. Constatações semelhantes encontramos, também, em outras partes da Bíblia, tanto no Antigo quanto no Novo Testamento, por exemplo: Is 66.1; At 7.49; 17.24. Todas estas passagens querem elucidar que Deus não está preso nem às instituições humanas nem a qualquer outra coisa. Se é dito que ele está no céu, esta afirmação procura expressar algo sobre a onipotência, a onipresença e o domínio absoluto de Deus (Dt 4.39). O Novo Testamento pensa da mesma maneira. A expressão os céus dos céus tenta descrever todos os espaços do universo, que para a mente humana são inconcebíveis e inimagináveis (Dt 10.14; Sl 148.4).
A afirmação do v.27 expõe um pensamento teológico profundo que é difundido por toda a Sagrada Escritura. É uma afirmação que procura descrever a natureza e a índole de Deus – um Deus que não reside no tabernáculo, nem no templo, nem nos céus. Não é um Deus abstrato out there, mas um Deus que vem ao nosso encontro, que se inclina ao pecador com toda a sua misericórdia, graça, bondade, perdão e amor. É um Deus que se revela em toda a sua plenitude na pessoa de Jesus Cristo. Nenhum Deus se compara a ele (l Rs 8.23). Para os homens da época de Salomão, este Deus podia ser encon-trado no templo de Jerusalém, que tinha sido erigido justamente para esta finalidade, a pedido do próprio Deus (l Rs 8.15-16,21). Para nós, Deus não está mais ligado a um lugar, mas à sua palavra, que se tornou carne em Jesus Cristo, o qual recebeu de Deus todo o poder sobre céus e terra.
IV – Significado da Ascensão
O substantivo ascensão é derivado do verbo ascender: subir, elevar-se (é muito conhecida no português a expressão: ascender ao poder). A Ascensão de Jesus Cristo não é, portanto, uma mudança de lugar da parte de Cristo, dentro do universo, mas é a assunção do poder sobre o mundo. Cristo assume o poder e passa assim a participar do senhorio de Deus sobre o mundo e, com isto, também da glória e da majestade de Deus (At 5.31; 7.55; 1 Pe 3.22;Hb 1.3; 8.1; 10.12; 12.2). A ascensão de Jesus Cristo significa boa nova, pois o regente do mundo, a quem estão sujeitos todos os poderes da terra, e que está acima dos céus dos céus é Cristo, a quem interessa antes de tudo a nossa salvação. O fato de ele ser o Senhor absoluto, proporciona-nos a possibilidade de vivermos uma vida que se baseia em confiança, esperança e fé, pois o mundo, onde tanto acontece e onde vivemos, está sob os seus cuidados. Nossa atuação em seu nome dará testemunho do seu poder e da sua presença, perante todas as criaturas. Tudo e todos são convocados pela sua palavra a viverem sob o seu reino, o reino que um dia será revelado em toda a sua glória. Esta é a mensagem da Ascensão.
V – Meditação e pensamentos para a prédica
Aplicar a perícope 1 Rs 8.22-24, 26-28 ao fato da Ascensão de Jesus Cristo e à nossa situação parece uma tarefa tanto importante quanto difícil. Difícil, porque à primeira vista não tem nenhuma ligação direta com o senhorio de Jesus Cristo, tal como a mensagem do Novo Testamento o apresenta. Apenas por meio de auxílios exegéticos se torna possível tirar do nosso texto uma mensagem que se relacione com a mensagem da Ascensão.
Aplicar a perícope à nossa situação, é uma tarefa importante, pois os nosso dias e o nosso mundo, no final do século XX, falam muito pouco deste Deus que está acima dos céus de todos os céus. Falam, isto sim, de outros deuses e adoram-nos! Este Jesus que subiu ao céu, isso é, sua Ascensão que a Bíblia testemunha como um fato teológico muito relevante, tem para a sociedade brasileira — e não só para ele — menos importância do que um feriado qualquer, pois até deixou de figurar na lista do calendário de dias santos e feriados! Se uma data tão marcante tem valor mínimo, será que o próprio Cristo não ocupa o mesmo lugar na escala de valores — e não apenas no ambiente secular, mas também no religioso? Até que ponto os evangélicos de confissão luterana no Brasil são um exceção neste sentido? Pode-se falar numa exceção? Ter Jesus Cristo como senhor significa permitir que ele esteja presente na minha vida, dirigindo as minhas atividades, tanto religiosas quanto profissionais e sócio-políticas. Até que ponto acontece isto na realidade?
Falar do poder e do senhorio de Jesus, neste fim de século, tem para a larga maioria um sabor arcaico demais! Nosso mundo tem uma cosmovisão apurada, aperfeiçoada cada vez mais pela ciência e pela técnica, por isso não consegue aceitar afirmações como estas: o céus dos céus não conseguem abranger-te — a ele foi dado todo o poder sobre o céu e a terra. Céu e poder já não têm mais o mesmo sentido como na era bíblica. Céu não é nada mais do que o espaço sideral. Poder pode ser muita coisa; em todos os casos, sempre é entendido como poder do homem!
Não obstante tais constatações, devemos atentar para a mensagem da Bíblia, pois para isto fomos escolhidos; e enviados por Cristo. E a mensagem que a Bíblia proclama é a verdade, a boa nova, de que Jesus Cristo assumiu o poder e é o senhor que transforma o mundo. Como Igreja de Jesus Cristo não devemos permitir que os nossos olhos sejam ofuscados pela glória — ou então pela miséria – do homem. Nossa tarefa é a proclamação do poder de Cristo que faz novas todas as coisas. As grandes conquistas da humanidade em milhares de campos e setores da vida e do universo devem ser usadas para o bem-estar de cada qual, mas não devem adquirir o poder de apagar ou neutralizar o senhorio de Jesus Cristo. Nossos dons, nossas descobertas devem ser colocadas a seu serviço.
A Bíblia continua proclamando por através de todos os séculos e milênios a mesma e firme mensagem: Cristo é o senhor sobre o mundo, sobre todos os poderes e sobre todas as potestades. Tudo está sujeito a ele — tudo o que nós conhecemos no nosso planeta e também no espaço sideral, e que um dia chegaremos a conhecer e a desvendar, não importa onde, seja na terra ou em qualquer outro lugar do universo, onde um dia pisarmos. Também as mais sofisticadas descobertas e invenções do porvir, e os outros possíveis seres vivos de outras galáxias estarão sob o seu raio de ação para todo o sempre. Cristo está presente em toda a parte, seja no nosso sistema nervoso, seja nas espirais ou nebulosas cósmicas. As majestades e os tronos da nossa época que se servem de tudo e de todos, tanto da riqueza quanto da miséria da humanidade, não poderão subsistir ou persistir por milênios afora. A opressão que acontece em todos os quadrantes do nosso planeta é motivada por ambições políticas, ideológicas ou económicas que geram a corrida louca pelo dinheiro e pelo consumo, e que, por outro lado, geram o fantasma da fome, da pobreza e da morte, e dominam os nosso dias e, aparentemente, tornam-se cada vez mais poderosas. Tais ambições não podem sobrepujar o poder de Jesus Cristo. O mundo se assusta cada vez mais, e o pânico é cada vez maior, quando se ouve das desgraças e injustiças que acontecem em toda parte. Num mundo assim, confuso pelo medo, a Igreja de Jesus Cristo tem uma tarefa importantíssima: a proclamação do evangelho — da boa nova — do senhorio de Jesus Cristo. Nós fomos enviados com uma mensagem confortante, cheia de esperança e vida, que traz consigo a glória, o poder e a salvação de Jesus Cristo: o reino de Deus.
VI – Bibliografia
– JANSEN, J. The Ascension, The Church, and Theology. In: Theology today. Vol.16. Princeton, 1960.
– LOHFINK, G. Die Himmelfahrt Jesu. München, 1971.
– STAHLIN, W. Meditação sobre l Reis 8.12-13,27-30. In: Predigthilfen. Vol.3. 2.e d Kassel, 1963.
– VOIGT, G. Meditação sobre l Reis 8.12-13,27-30. In: Das verheissene Erbe. Göttingen, 1965.
– WILSON, S. G. The Ascension: A critique and an interpretation. In: Zeitschrift für die neutestamentliche Wissenschaft. Vol. 59. Berlin, 1968.