Existe futuro apesar da morte?
Proclamar Libertação – Volume 42
Prédica: 1 Tessalonicenses 4.13-18
Leituras: Deuteronômio 12.1-3 e Marcos 5.21-24,35-43
Autoria: Gottfried Brakemeier
Data Litúrgica: Dia de Finados
Data da Pregação: 02/11/2018
1. Preliminares
O Dia de Finados é de luto. Em sinal de carinho aos que partiram desta vida, as pessoas costumam visitar os cemitérios, enfeitar as sepulturas, cultivar a memória dos falecidos. O que prevalece é a tristeza. Assim também no caso de Jairo (Mc 5.21s;35s). Ele acaba de perder a filha. Isso é terrível. A morte causa uma ferida que custa para sarar, se é que um dia isso acontece. Toda vida tem inata em si a inconformidade com a morte. Ela quer durar. Sofre sob a brutal desapropriação a que a vida é submetida compulsoriamente em dado momento.
Então, não vai restar senão o desespero? O evangelista Marcos diz que não. Seu texto é importante complemento ao da Primeira Carta aos Tessalonicenses. Enquanto isso, é difícil descobrir relação positiva com a instrução do livro de Deuteronômio. Por estimular a violência, merece reflexão crítica à parte. Ela não acrescenta nada ao tema em pauta, podendo ser tranquilamente desconsiderada por essa razão. Permanece a pergunta se diante da morte é possível sustentar esperança. Jesus diz a Jairo: Não temas, crê somente! (Mc 5.36). Como interpretar essas palavras? E o apóstolo Paulo, como ele trata essa questão? Também em Tessalônica a comunidade se debatia com o problema. Estava preocupada com a sorte dos falecidos. Vejamos em que termos isso acontece.
2. Observações exegéticas
Pelo que tudo indica, a Primeira Carta aos Tessalonicenses é a mais antiga do apóstolo Paulo. Há amplo consenso entre os especialistas nesse tocante. Vindo de Filipos, Paulo conseguiu criar um primeiro núcleo cristão em Tessalônica, importante cidade da Grécia, hoje Saloniki. Isso pelo ano de 49/50 da nossa era (cf. At 17.1s). Houve quem acolhesse a mensagem cristã com entusiasmo e gratidão. Simultaneamente, porém, ela provocou inveja, agitação e hostilidade. Diante das agressões, Paulo e seu colaborador Silas preferiram abandonar a cidade e seguir viagem a Atenas.
A carta deve ter sido escrita não muito tempo depois da partida. Ela expressa a preocupação do apóstolo com a jovem comunidade, ainda insegura com relação à vida na fé cristã. No início, porém, está o retrospecto que agradece a Deus e aos próprios membros pela recepção do evangelho. Esses cristãos se tornaram exemplos a serem seguidos por outros. Isso não impede o apóstolo Paulo de acrescentar exortações no sentido de permanecerem firmes numa conduta agradável a Deus. Entre elas, Paulo faz referência especial a questões da ética sexual (4.3s), bem como à de trabalho. Importa evitar tanto a prostituição, como também a preguiça que se esquiva de ganhar o pão de cada dia com as próprias mãos (4.11s). Aparentemente houve gente que se considerava dispensada de trabalhar sob alegação de o fim do mundo estar próximo. Para que plantar se já não resta tempo para colher os frutos? Também de outras fontes sabe-se do fervor nas primeiras comunidades que julgava iminente o retorno glorioso de Jesus Cristo e a chegada de um novo céu e de uma nova terra (Ap 21.1s). Supunha-se que o mundo dentro de breve iria acabar para ceder espaço ao reino de Deus.
O apóstolo Paulo se vê obrigado a acalmar os ânimos. O entusiasmo necessita de sobriedade. Certamente a esperança não deve ser abandonada. Ela é parte constitutiva do credo cristão. Deus há de vencer os poderes do mal e submeter a criação à radical “reforma”. Então, as promessas das bem-aventuranças irão cumprir-se e as preces do “Pai-Nosso” serão atendidas. No entanto, é preciso dar tempo a Deus. Quem quiser forçar a vinda do perfeito se compara a um agricultor que não tem paciência para ver o fruto amadurecer. O resultado será a destruição da lavoura. É inútil especular sobre a data da consumação de todas as coisas. Ninguém a conhece. O “dia do Senhor” virá como ladrão à noite (5.2). Por isso mesmo perde tempo quem se entregar a cálculos sobre probabilidades e procurar identificar sinais precursores do fim. Mais importante é saber que Deus não nos destinou para a ira, mas para alcançar a salvação mediante nosso Senhor Jesus Cristo (5.9). O resto podemos confiar à providência divina.
Essa certeza resolve também a angústia específi ca dos tessalonicenses. A comunidade deplora alguns casos de óbito entre seus membros. Estariam esses em desvantagem em comparação com aqueles que sobrevivem até a chegada do Senhor? A resposta é um categórico “não”. Paulo afirma: […] nós, os que ficarmos até a vinda do Senhor, de modo algum precederemos os que dormem (4.15). Portanto é indiferente se falecemos antes da parúsia ou não. Ao falar sobre o assunto, Paulo faz uso de linguagem apocalíptica. Refere-se à trombeta, cujo som inaugura o drama do retorno de Cristo e o arrebatamento dos fiéis. Mas já para ele tais imagens são secundárias. A esperança pode articular-se também como simples desejo de partir e estar com Cristo imediatamente após a morte (Fp 1.23).
A moldura apocalíptica, pois, é prescindível, assim como ela o é na promessa que Jesus faz ao ladrão crucificado a seu lado, quando diz: Hoje estarás comigo no paraíso (Lc 23.43). Imagens apocalípticas fazem parte do material ilustrativo do evangelho, mas não são parte integrante do mesmo. Se cremos que Jesus morreu e ressuscitou, não há motivos para a apreensão com relação à sorte dos falecidos. A morte certamente continua a apavorar, mas já não provoca pânico. Não somos como os demais que não têm esperança (4.13). Morte e ressurreição de Cristo abrem a perspectiva de vida para além da morte. Revelam-se como poderoso consolo.
3. Ouvindo o texto hoje
No século 21 as angústias das pessoas são outras do que aquelas em Tessalônica. Certamente ainda há quem se preconize como “atalaia do arrebatamento”. As ideias apocalípticas não sumiram por completo. Mas o que prevalece é antes o ceticismo. As imagens bíblicas perderam plausibilidade. Não assim o temor, que está em sua origem. As gerações de hoje vivem atormentadas por cruéis incertezas. Quais as chances de sobrevida num planeta progressivamente devastado, inóspito, superpovoado? Haverá emprego para todos? Será que consigo assegurar um salário suficiente para atender as necessidades básicas? Enfim, como escapar da violência que passou a ser flagelo endêmico e ameaça mortal à paz na sociedade? O futuro parece estar bloqueado. Em comparação com essas questões cruciais, os “finados” já não preocupam. As prioridades são outras.
E, no entanto, engana-se quem julga ser capaz de aí separar. Pois a sorte dos falecidos e a de minha pessoa estão estreitamente vinculadas. Se os mortos sucumbiram, eu vou sucumbir com eles. Da mesma forma vale que, se para eles existe esperança, então para mim também. Justamente no cemitério cabe perguntar pela estação final da vida humana. Será suficiente dizer que levamos os defuntos a seu último repouso? Por mais correto que isso seja, tal resposta por si só não basta. Jamais a humanidade com ela se conformou. E, com efeito, a perspectiva da aniquilação total é incompatível com a dignidade do ser humano. Ela conflita com a afi rmação de um sentido inerente à vida, enfim, com a própria fé em Deus. Por isso mesmo proclamamos esperança também no Dia de Finados. A fé cristã tem o privilégio de não permanecer afônica frente ao enigma da morte. Ela tem evangelho a anunciar.
Enquanto a inibição é uma das grandes tentações de um lado, a fantasia solta o é de outro. É curioso observar o pretenso grau de conhecimento de certas pessoas sobre as condições no além. Trata-se de projeções humanas que já seduziram os saduceus à tentativa de ridicularizar a fé na ressurreição (cf. Mc 12.18s). Propõe a Jesus um caso melindroso: como resolver, no mundo vindouro, o problema dos casamentos múltiplos? De quem será cônjuge quem aqui na terra contraiu matrimônio várias vezes? Ora, quem imagina o céu à maneira humana constrói tolas ficções e cai no ridículo. Jesus, ele mesmo alertou para o perigo. Há que se tomar distância, pois tanto do silêncio característico da perplexidade quanto da curiosidade indisposta a respeitar o mistério. O que deve permanecer é a fé convicta de o poder de Deus ser superior ao da morte. Não temas, crê somente – assim diz Jesus. Com isso ele colocou um parâmetro seguro contra todas as distorções de discurso escatológico, inclusive aquele no Dia de Finados.
A perspectiva da morte mistura fel às alegrias da vida. Tudo é provisório, nada definitivo. Isto é revoltante, capaz de produzir raiva, cinismo, niilismo. A fé cristã permanece realista. Não esconde a dureza da morte nem nega as dolorosas despedidas a que nos obriga. Não se resolve o impacto da morte com falácias e mentiras. A honestidade detesta ser ludibriada com recompensas paradisíacas no além. É charlatão quem procura motivar pessoas para o martírio com promessas enganosas. A única maneira de resistir ao poder arrasador da morte é a resiliência da fé que aposta no Deus que vivifica os mortos e chama à existência as coisas que não existem (Rm 4.17). Ou Deus é todo poderoso, ou a morte. Essa é a alternativa. Outra não há. A fé cristã crê na Páscoa, razão pela qual proclama esperança também no cemitério.
4. Imagens para a prédica
O Dia de Finados cultiva a memória dos antepassados. Não permite que simplesmente mergulhem no anonimato. Isso é bom. Seres humanos não se igualam a peças descartáveis, facilmente substituíveis. Possuem até mesmo uma “dignidade pós-mortal”. Permanecem sendo pessoas com nome e identidade inconfundível também depois do óbito. Nós nos lembramos de fulano tal e tal, de sua história, de sua biografia. E essa é singular. Marca presença também depois de decorridos muitos anos. De certa forma poderíamos dizer que a memória mantém as pessoas vivas. Daí porque é importante guardar fotos, cartas e outros objetos pessoais. Possibilitam reviver o passado. Verdade é que cedo ou tarde, todas as lembranças se apagam. Não há nada que resista ao desgaste do tempo. Mesmo assim, preservar a memória dos falecidos é um efi ciente meio de se opor ao poder aniquilador da morte. Será uma demonstração de inconformidade com a transitoriedade da vida, bem como de respeito aos que nos antecederam. Permanece verdade que nenhuma investida humana consegue de fato romper o cativeiro da finitude.
Por isso mesmo a esperança necessita do recurso à memória de Deus, da qual é símbolo a imagem do “livro da vida”. A ele a Bíblia se refere em várias passagens (Fp 4.3; Ap 20.15 e outros). Bem-aventurados os que nele se encontram inscritos. Têm a sua memória preservada para todo o sempre. Estão isentos da ameaça de simplesmente ser “deletados” do arquivo histórico, jogados na lixeira, condenados à inexistência. Não há coisa pior do que ter negado seu valor de pessoa, respectivamente ser reduzido a um “João ninguém” ou a uma “Maria ninguém”. Insignificância é castigo que ninguém aguenta. Pessoas rebaixadas, excluídas, feridas em sua dignidade costumam reagir com agressão e violência. Serão candidatas a “terroristas”. Todos necessitam da confirmação de sua razão de ser. Por isso lutam por reconhecimento. Querem ser aplaudidas, prezadas, amadas. A negação da “certidão de nascimento” e com ele do “atestado de existência” cria seríssimas patologias e está na raiz de crimes hediondos. A paz social exige o cuidado com o outro e sua integração numa comunhão. Eu devo saber a que grupo eu pertenço, onde estou em casa, quem são os meus pais, meus amigos, respectivamente, para quem valho alguma coisa. Sem pertença social e sem nenhuma acolhida as pessoas adoecem. Sua vida murcha e se apaga.
A memória de Deus previne contra a ameaça da extinção do ser humano, já agora e para todo o sempre. Ela é a mais poderosa afirmação de esperança. Para tanto serve a metáfora do livro da vida. Quem tiver seu nome registrado nesse “arquivo” ainda que morra viverá (Jo 5.25). Ninguém será esquecido ou vai sucumbir na solidão da morte. Sugiro concentrar a prédica nessa imagem e explorar seus aspectos. Ela pode trazer ânimo ao luto típico do Dia de Finados, articulando a esperança a que a fé dá motivo. Mais do que qualquer outro, o Dia de Finados é um dia de afirmação da vida.
5. Subsídios litúrgicos
Oração do dia: Senhor Deus, nosso Pai e Criador, antes de falar das nossas dores, queremos expressar a nossa gratidão. Somos devedores das pessoas cuja memória está no centro de nossa atenção hoje. Por elas temos recebido amparo, carinho, orientação. Ninguém deu a vida a si mesmo. Percebemos nas pessoas que acompanharam nossa trajetória algo da tua bondade e providência. Certamente também elas tinham falhas e ficaram em débito conosco. Mas isso não desincumbe da necessidade de lhes dizer o nosso sincero obrigado. Sentimos dolorosamente o vazio que deixaram. Ao mesmo tempo, sabemos que nesta vida nenhuma despedida é definitiva. Celebramos a tua vitória impedindo que sejamos tristes como os sem esperança. A fé não se dobra diante das evidências da morte. Mesmo em meio a escombros, destruição e cadáveres ela aposta no teu poder, que faz renascer vida e possibilita um novo início. Por isso rogamos: Pai que estás no céu, fortalece em nós tal fé e concede-nos imunidade frente aos poderes da destruição. Amém.
Confissão dos pecados: Senhor Jesus Cristo, nosso Salvador, o que nos oprime não deixa de ser entre outros o nosso pecado. Acumulamos culpa em nossa vida. Ficamos devendo uns aos outros a palavra de conforto, pela qual todos ansiamos. Não raro trata-se de culpa que não gostamos de confessar ou que até mesmo escapa de nossa percepção. Nós magoamos pessoas, causando-lhes feridas, prejuízos, traumas. Somos injustos em nossos juízos, xingamos onde deveríamos mostrar compreensão, queremos ver o nosso próximo derrotado. Em vez de trabalhar pela paz, atiçamos o ódio na sociedade. Senhor, só tu conheces todo o nosso pecado. Nós imploramos teu perdão por nossas falhas, omissões, maldades. Tem compaixão de nós. Amém!
Intercessão: Senhor Espírito Santo, consolador, ajuda a combater o desânimo que se multiplica em nossa sociedade em razão de estupidez, safadeza e ganância. Estamos cansados dos escândalos, da corrupção, dos crimes trazidos à luz pela operação “lava jato” e outras ações semelhantes. Inquieta-nos a proliferação de uma cultura da violência. Já não mais podemos viver sem medo de assaltos, assassinato, arrombamentos. Sumiram os princípios éticos constitutivos para a saúde social. Que mundo é este em que o medo se torna normalidade e já não mais podemos nos sentir seguros? Não menos angustiante é a situação internacional. Os horrores de guerras intermináveis com pavoroso saldo de fugitivos, feridos e mortos causam indizível sofrimento. Todo mundo fala em paz. Mas essa se encontra mais distante do que nunca. Nós denunciamos um mundo em que a luta por poder pisa os direitos humanos, desrespeitando as liberdades democráticas e ceifa a vida de vítimas inocentes. Senhor, nosso Deus, é longa a lista de nossas queixas. Nós te pedimos: reorienta a humanidade. Dá-lhe um novo espírito para que reconheça o que lhe serve para a paz. Faze-nos cooperadores de tua salvação, para que a alegria volte a reinar na sociedade. Vem socorrer-nos com o teu poder. Amém!
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).