Prefácio
Os dez sermões constantes neste livro foram selecionados do tomo VIII das obras de Lutero editadas por Kurt Aland (Stuttgart 1965). Este editor, por sua vez, serviu-se do sermonário (Hauspostille) editado por Poach em 1559, baseado em anotações feitas por Rörer, contemporâneo e amigo de Lutero, que, numa espécie de taquigrafia improvisada, misturando o alemão com o latim, fixou considerável número de prédicas do Reformador fazendo anotações, enquanto o ouvia pregar. (Há, ao todo, mais de 2000 versões de prédicas de Lutero, baseadas em anotações de Rörer e de outros ouvintes). O próprio Rörer ainda chegou a revisar e a autorizar a edição de Poach, na qual algumas lacunas foram preenchidas criteriosamente, em consonância com outros escritos de Lutero. Assim temos a razoável certeza de que os dez sermões que apresentamos ao leitor brasileiro refletem tanto no conteúdo como no estilo, a prática viva da pregação de Marfim Lutem, mesmo que se trate de resumos, não totalmente idênticos às prédicas que o Reformador fazia de viva voz, das quais se sabe que normalmente se estendiam por cerca de uma hora. Os dez sermões foram pregados em Wittenberg, nos anos de 1531-1534.
Preparamos a presente seleção com o propósito de fazermos ouvir a voz do pregador Lutero sobre os conteúdos centrais da fé cristã. Orientamo-nos, para este fim, nos tópicos do Credo Apostólico. Embora conscientes das limitações de tal coletânea de sermões, que historicamente não foram pregados nesta sequência, julgamos ser de grande proveito, tanto para pregadores como para leigos cristãos, lerem e meditarem estas prédicas na perspectiva sistemática oferecida pelo Credo Apostólico, base comum de todas as igrejas cristãs. Numa época em que os conteúdos da fé cristã vão sendo contestados, mutilados e aguados de mil maneiras, poderá ser de importância decisiva ouvirmos a voz profética de um intérprete autorizado da Sagrada Escritura do quilate de Lutero.
Os sermões constantes neste livrinho não se destinam só a leitores individuais. Pensamos em grupos de leigos cristãos que queiram conhecer mais de perto a mensagem do Reformador, em benefício de sua própria fé e de sua própria vivência cristã. Já que Martim Lutero não pertence só aos cristãos ¨luteranos¨, mas a toda a cristandade, achamos que os sermões poderão ser lidos com proveito também por membros de outras igrejas cristãs (e, por que não, também por descrentes).
Lutero, em seus sermões, se atém à Escritura, seguindo sempre a pista que leva a Cristo. Neste seu intento é um verdadeiro doutor e mestre da igreja, cuja autoridade se revela através do conteúdo da própria pregação, que cativa também o leitor moderno e surpreende por sua originalidade, vigor e atualidade.
Na tradução nos ativemos ao estilo peculiar de Lutero, na medida em que o português falado em nosso meio o permitia. Em casos de dúvida sempre demos preferência ao sentido intencionado pelo pregador, não à simples sequência das palavras. Assim traduzimos o ¨tu¨ usado pelo Reformador pelo ¨você¨ brasileiro, de um lado porque aproxima o pregador de seus leitores atuais, e, de outro, por julgarmos que o nosso ¨você¨ familiar (exceção feita de algumas áreas do Rio Grande do Sul) realmente corresponde ao tu usado no alemão do tempo de Lutero. Façamos votos de que o leitor se sinta atingido pessoalmente — atingido por Cristo, como deveremos enfatizar, seguindo a linha de Lutero.
A seguir queremos apontar algumas características importantes da pregação de Lutero, citando outras prédicas suas e fazendo várias colocações que deverão auxiliar o leitor disposto a aprofundar-se um pouco mais no conteúdo dos sermões constantes neste livro.
1. Já ao lermos as primeiras frases de um sermão de Lutero nos damos conta de que o pregador se identifica com o texto, de forma irrestrita. Ele não parte da situação presumida do ¨homem moderno¨, cavando no chão à procura de água, identificando-se com todas as dúvidas e ressalvas potenciais de seus ouvintes — para depois demonstrar que o texto ¨apesar de tudo ainda tem a dizer alguma coisa ao ouvinte contemporâneo. Em contraste com muitos pregadores de nosso tempo, Lutero jamais perde tempo preparando o terreno para a pregação. Ele não se sente chamado a defender o evangelho perante seus ouvintes riem a ser o advogado de Deus perante os homens. Em vez de recorrer a engenhosa introdução psicológica, ele entra na matéria de forma bem seca, começando desde logo a interpretar o texto escolhido. Tem-se a sensação de que o pregador mal consegue conter sua impaciência, no intuito de fazer o texto falar, de revelar sua mensagem central. Assim, por exemplo, inicia um sermão sobre Isaías 9.16(presente no mencionado tomo, editado por Aland, como também os demais sermões que vamos citando): Este é um capítulo áureo, no qual o profeta retrata a Cristo com palavras belas e gloriosas¨.
De modo geral, Lutero gosta de exaltar o texto bíblico. Sua visão não é ofuscada por nenhum preconceito racionalista, já que, no seu entender, ¨os olhos da razão devem ser vazados¨, quando se quer ver a realidade do reino de Deus. Ele aceita o texto assim como vem escrito, com coração símplice, sem questioná-lo. Mas esta mesma simplicidade lhe permite descobrir as pegadas de Deus na história, sem achar o menino Jesus em meio às fraldas humildes. Deste modo, inicia um sermão sobre João 3.16 com as seguintes palavras: ¨Este evangelho representa uma das mais gloriosas pregações que se encontram em todo o Novo Testamento, assim que seria justo, se possível fosse, que viesse a ser escrito em nossos corações, com letras douradas¨. Ou, no sermão sobre Mateus 13.24-30: ¨Este evangelho é uma mensagem excelente e bela para os que com seriedade desejam ser cristãos. Assim também na primeira prédica constante em nossa coleção, Lutero inicia exaltando o texto: Este é um evangelho rico e uma extensa pregação contra a avidez¨.
Após tal início fica claro que o pregador se porá totalmente a serviço de tal evangelho ¨glorioso e belo¨, e que o evangelho tomará conta do pregador, que nada mais quer ser do que uma simples testemunha de Cristo. Com isso fica evidente que Lutero não quer ser nenhum orador sacro que com habilidades e artimanhas retóricas tente abrir caminho ao evangelho. Pelo contrário, é o próprio evangelho que abre caminho para si mesmo; o pregador não passa de moço de recados de Deus.
2. Mesmo que totalmente identificado com o texto, Lutero não procede de forma ¨fundamentalista¨ (no sentido de ver a Bíblia como sendo uma área plana onde todas as coisas têm a mesma relevância). Se bem que costume sacudir ¨todas as fruteiras do pomar¨ da Escritura, como certa vez disse, em última instância não está interessado na multiplicidade e na diversidade dos frutos. Ele-descobriu uma coisa elementar, que passou a nortear sua pesquisa na Escritura Sagrada. Descobriu que ela possui um centro, um coração latejante, a partir do qual tudo mais se entende e se interpreta. Este centro é Cristo, o Senhor, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, que deu sua vida na cruz para salvar os pecadores e que ressuscitou no terceiro dia e subiu à direita de Deus para abrir o caminho do céu a todos os que nele crêem.
Assim, para Lutero, a palavra de Deus jamais representa uma grandeza independente, que possa ser separada de Deus, que possa ser entendida fora do âmbito de Jesus Cristo, no qual Deus se revelou em sua plenitude. A Bíblia é palavra de Deus, porque é palavra do Senhor vivo que se acha presente em qualquer lugar onde ela vai sendo anunciada. E o espírito de Deus, portanto, que precisa esclarecer a palavra do Senhor ¨externamente pela pregação, internamente pela iluminação dos corações¨ (de uma prédica sobre os discípulos de Emaús, Lucas 24). A atuação dos discípulos de Emaús, aos quais o Senhor ¨abre as Escrituras¨ para Lutero de certo modo representa a condição elementar, a situação primária na qual acontece a prédica cristã. O Senhor presente, não reconhecido de início, se vai revelando através de sua palavra e chega a estabelecer a comunhão dos crentes. Neste sentido, Lutero chega a dizer: ¨Nada a não ser Cristo deve ser pregado¨ (Edição Weimareana 16:113). Já que, na visão do Reformador, toda a Escritura tem uma queda em direção a Cristo, não será indicado nem necessário fazer uso de qualquer artifício (por exemplo, da interpretação alegórica) para pregar Cristo como conteúdo e Senhor da palavra de Deus.
3. Ao constatar que o pregador é a boca do Cristo presente, Lutero chega a duas conclusões, que definem o conteúdo e o método de sua pregação:
a. Cristo está presente como vencedor do diabo, do mundo e do pecado. Cada pregação é, portanto, uma ação combativa de Cristo contra todos os seus inimigos. ¨Onde se prega, vai haver barulho.¨
b. Cristo está presente para fortalecer a fé dos que lhe pertencem, para consolar as consciências feridas e para lhes assistir em suas lutas e tentações. Por isso a prédica necessariamente deverá chamar à fé, testemunhando a Cristo como Salvador e como refúgio.
A luta de Cristo contra Satanás para Lutero representa uma realidade concreta, que permeia tanto a vida da comunidade como a do cristão individual. Por isso haverá resistência e ¨barulho¨ onde quer que se pregue o nome de Cristo. O cristão precisa enfrentar o mau inimigo com o poder de seu Senhor, porque nesta luta o poder do homem nada faz. Nesta luta, antes de tudo, ele precisa arrancar a máscara do diabo: ¨Se o diabo viesse em sua aparência real, aí era tudo fácil… mas ele é um caloteiro, ele se enfeita, aparentando ser mais belo que os anjos, sim, que o próprio Cristo… Portanto, cale-se, doce boca de mel — você vem por aí vestido de pele de ovelha, mas em realidade é o maléfico diabo¨ (prédica sobre Mateus 7.15-23).
Uma vez que Lutero entende a pregação como sendo uma luta travada entre Cristo e o diabo, o ouvinte não conseguirá refugiar-se em qualquer suposto terreno neutro. A palavra exige definição e decisão. Trata-se de aceitar a graça de Deus ou, então, de rejeitá-la: ¨Se você não quiser aceitar o grande amor que demonstrei por você, buscando-o paternalmente e graciosamente, dando meu Filho amado e fazendo-o sofrer por você, ei-a — aí também eu não quero você. Se você não perguntar pelo que fiz, eu também não perguntarei por você. Se você não quiser o meu Filho, Jesus Cristo, vá e tome Barrabás, sim, torre o próprio diabo¨ (prédica sobre João 19.13-30).
Mas a verdadeira e última intenção da prédica não é a de apontar rumo ao inferno. Ela quer abrir o céu, apontando para o Cristo que aceita o pecador, que chama à fé, que perdoa, que conforta as consciências angustiadas, que regenera a vida das pessoas. Lutero não prega nenhuma graça ¨barata¨. O pecado do ouvinte, bem como o próprio pecado do pregador, não vão sendo calados nem minimizados: ¨Amado Deus, se quiseres ajustar contas comigo, em mim não se vão achar pecados pintados, mas sim, pecados reais e grandes. Não são moedinhas pintadas, mas são moedas reais, pequenas e grandes. Vai mesmo dar dez mil talentos. Mas sob a palavra da reconciliação, não é o coração acusador do homem que representa a instância, mas sim, o que Deus diz: Por isso não deveremos ouvir o que nosso coração vacilante e descrente diz, mas deveremos ouvir o que Deus diz — ele, que é maior do que o nosso coração¨ (prédica sobre Mateus 18.21-25).
Para Lutero, tanto o consolo de Cristo como a tentação do diabo são realidades que, partindo do mundo invisível, se manifestam concretamente em nossa vida terrena: ¨O diabo é um espírito apavorador e caloteiro. Mas o Espírito Santo é Consolador¨ (prédica sobre João 15.26-16.4). Em última análise, o próprio Deus é o consolo do homem. Dando-se a si mesmo em seu Filho, Deus consegue arquitetar o coração angustiado do pecador. Todas as demais dádivas de Deus se reduzem em importância frente à dádiva de Cristo: ¨O que é que o grande doador nos dá, movido por seu grande e divino coração? E o seu próprio Filho. Isto é que se chama dar. Não é moeda de cobre ou de ouro, não é vaca nem cavalo, não é olho nem pé nem mão, não é nenhum reino, não é nem céu nem sol nem estrelas: ele dá o seu próprio Filho¨ (de uma prédica sobre João 3.16-21).
Lutero descreve o milagre da graça que Deus nos oferta no evangelho, através de incontáveis figuras, comparáveis a certas parábolas de Jesus: ¨Assim e evangelho é chamado de ensino gracioso e de mensagem confortante. É como se um homem rico dissesse a um pobre mendigo: Amanhã você vai receber cem mil moedas de ouro¨ (de urna prédica sobre Mateus 11.2-10).
4. Cristo, nas prédicas de Lutero, fala a homens reais, dentro de suas condições de vida nada fictícias. Numa única prédica, por exemplo, não só aparecem patriarcas, profetas e apóstolos, mas também príncipes, reis, imperador, papa, conselheiros, juristas, burgueses, camponeses, criados, monges. Onde as pessoas concretas vão sendo envolvidas desta maneira com o evangelho, o pregador não malhará ferro frio. Quem não for atingido por tal mensagem, dificilmente poderá alegar que não tenha aparecido nela.
Uma observação peculiar quando Lutero fala do imperador e das autoridades seculares em geral (como por exemplo na prédica de Natal da presente coletânea), ele distingue claramente a função das autoridades deste mundo da função de Cristo e de seus pregadores. Chega a dizer que ¨Cristo nada tem a ver com tais assuntos mundanos¨. Esta palavra não deverá ser entendida como se o pregador cristão não tivesse nenhuma mensagem para as autoridades deste mundo. Pelo contrário: ele lhes anuncia a salvação em Cristo, e ao aceitarem tal oferta, se tornarão autoridades autênticas. Também o imperador precisa prestar contas a Deus, e o pregador o deve lembrar disso. O que ele não deverá fazer é imiscuir-se nas atribuições do imperador no nível mundano, abstraindo a fé em Cristo. Ao castigar a injustiça e a podridão do mundo e dos poderosos deste século, o pregador falará como profeta e como evangelista, não como concorrente que contesta.
5. Um característico dos sermões de Lutero é sua simplicidade. Ela não será só fruto do seu carisma, que desenvolveu ¨olhando para a boca do povo¨. Sua simplicidade tem raízes teológicas. O próprio evangelho é simples. A própria Escritura é ¨perspícua¨, clara e transparente. O pregador tem de fazer jus àquela clareza e àquela transparência. Ele não tem nenhum direito de obscurecer o que Deus disse de maneira clara, usando palavras difíceis que os símplices não entendem — ou fazendo uso de lendas (que ele costumava chamar de ¨Luegenden¨ — ¨mentiradas¨…) que encobrem o que Deus quer dizer. Este sentido da palavra, a intenção que Deus teve ao fazê-la pronunciar, precisa aparecer. Assim também as explicações, as ilustrações e as figuras usadas pelo pregador jamais deverão ocultar o sentido simples da palavra; devem ser postos a serviço da mesma.
Julgamos que nós todos, pregadores e leigos cristãos, temos muito a aprender deste servo autorizado de Deus, que nos fala através de seus sermões. Que o próprio leitor o julgue e avalie, aprofundando-se em Dez Sermões Sobre o Credo que lhe apresentamos no presente livrinho.
Brusque, dezembro de 1985
Lindolfo Weingärtner
10 Sermões sobre o Credo – Martim Lutero
Prefácio de Lindolfo Weingärtner
O Primeiro Artigo do Credo Apostólico
Mateus 6.24-30
O Segundo Artigo do Credo Apostólico
Lucas 2.1-14
Lucas 22.7-20
João 19.13-30
Marcos 16.1-8
Lucas 24.13-35
Marcos 16.14-20
Mateus 25.1-13
O Terceiro Artigo do Credo Apostólico
Atos 2.1-13
João 10.12-16