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Prédica: 1 Pedro 2.1-10
Autor: Gottfried Brakemeier
Data Litúrgica: 2º. Domingo após Trindade
Proclamar Libertação – Volume: I

I – Preliminares

A primeira carta de Pedro se dirige a cristãos e comunidades de várias províncias romanas situadas na Ásia Menor (1.1). Estas comunidades enfrentavam dificuldades. Sofriam difamação e hostilidade e existia a perspectiva de uma perseguição em grande escala (cf 2.21ss; 3.14; 4.13; 5.9; etc) . A finalidade da carta consiste em fortalecer, consolar e exortar os leitores, a fim de que permaneçam firmes e aprovem a sua fé num mundo hostil. Para tanto o autor lembra os sofrimentos de Cristo, conscientiza as comunidades da graça recebida e da esperança que lhes é própria, e recorre ao batismo para elucidar o que o cristão a partir dele é. Aliás, comentaristas acreditaram ser a primeira carta de Pedro, em grande parte, o protocolo de uma alocução batismal. Nesta tese ë correto que a carta se dirige a comunidades jovens, no entanto, é difícil concebê-la como depoimento de uma prédica a recém-batizados. Esta tese, ultimamente, não é aceita sem fortes ressalvas.

Pelo que tudo indica, l Pedro foi redigida em Roma (cf 5.13 – Babilônia é um pseudônimo para a capital do Império Romano). Devido ao forte parentesco da teologia desta carta com a teologia de Paulo, quase se exclui a possibilidade de ela ser da autoria do apóstolo Pedro. Ainda assim não admite dúvidas que a carta pertence aos documentos teologicamente mais importantes de todo o NT, o que já M. Lutero constatou. Apesar do sofrimento que sobreveio às comunidades, forte alegria permeia esta carta. E já pode ser adiantado: Uma prédica sobre um texto de l Pedro será boa na medida em que ela conseguir transmitir esta alegria, vencedora das adversidades e provinda da verdadeira fé.

II – Observações exegéticas

O trecho 2.1-10 dá continuidade a uma série de exortações gerais. Estas, porém, jamais se resumem em simples imperativos. O autor da carta faz questão de sempre de novo ressaltar que o cristão pode o que deve, pois a palavra viva de Deus deu aos leitores a possibilidade e a força para uma nova conduta no mundo. Também em 2.1-10 isto fica inequivocamente claro.

Os V 1-3 formam a primeira subunidade e estão em estreita ligação com a exortação anterior que conclamara para a prática do amor (1.22-25). Despojando-vos, portanto, de toda maldade e dolo, de hipocrisias e invejas, e de toda sorte de maledicências… (V 1). Os vícios, aos quais os cristãos devem abdicar, são antes de mais nada as obras, resultantes da falta de amor fraternal. Mas a exortação principal deste trecho e outra: Desejai ardentemente como crianças recém-nascidas, o genuíno leite espiritual para que, por ele, vos seja dado crescimento para salvação (V 2). As palavras crianças recém-nascidas são uma figura, lembram o renascimento, do qual em 1,23 tinha sido falado, e qualificam os leitores de novatos na fé. Também o termo leite deve ser entendido em sentido figurativo. Já o adjetivo “espiritual demonstra isso. Os leitores são exortados a buscarem o alimento indispensável para a sua maturação na fé. Este alimento e a palavra de Deus que tem em Jesus Cristo o seu conteúdo. Em evidente alusão ao batismo segue, no V 3, a fundamentação da exortação: Os leitores já conhecem aquele alimento, eles já experimentaram a bondade de Jesus Cristo que, no batismo, neles se manifestou visivelmente .

O batismo, porém, não é algo semelhante a uma formatura na fé; ele é, muito antes, um início a ser aprovado no dia-a-dia do cristão. Por isto os leitores são chamados ao uso contínuo da palavra do evangelho, sem o qual a sua existência cristã iria morrer à míngua. É importante, porém, que o anseio pela palavra e o uso da mesma andam de mãos dadas com o despojar-se de toda majestade (V 1). Não existe vida cristã sem reflexos concretos na conduta. Mas é a palavra de Deus que habilita para isto. A bondade do Senhor é o poder renovador, e os cristãos podem ser exortados a renunciarem a toda maldade, porque este poder é uma realidade. Vivendo-se dela, haverá um crescimento para salvação, isto é, haverá crescimento em que a salvação já concedida por Deus se torna sempre mais visível e firme.

Nos V 4-8 a figura muda. Aliás, é muito provável que tenhamos de corrigir a tradução de Almeida e entender os v. 4 e 5 igualmente como exortação: ''Chegai-vos para ele, a pedra que vive, rejeitada, sim, pelos homens, mas para Deus eleita e preciosa, e permiti que vós, como pedras que vivem, sejais edificados casa espiritual para serdes sacerdócio santo, a fim de oferecerdes sacrifícios espirituais, agradáveis a Deus por intermédio de Jesus Cristo. A exortação diz: Sede comunidade! Justamente porque nova vida se exterioriza na prática do amor (V l), não há existência cristã fora da comunidade. Desta é falado na figura da casa espiritual, sendo Cristo a pedra angular (v. 6 – cf Is 28.16) e cada cristão individualmente uma pedra viva, construída sobre ele.

Novamente chamo atenção que tudo depende da obra de Deus. Ele colocou em Sião aquela pedra que possibilita a construção da casa. É pedra viva – Cristo vive, porque ressuscitou. Se também os cristãos são chamados pedras vivas, é porque Cristo lhes deu a sua vida. O autor, porém, não deixa de lembrar que a pedra angular é também aquela que os homens rejeitaram (V 4 e 7 – cf Salmo 118,22) e ainda rejeitam. A hostilidade, da qual a comunidade é objeto, e o sofrimento que ela suporta, estão em conformidade com a sorte de Cristo. Deus, porém, transformou a pedra rejeitada em pedra angular de sua casa, tornando-se ela assim motivo de tropeço para os que a rejeitaram (V 8 – cf Is 8.14.15). Para a comunidade isto significa que ela participa do sofrimento de Deus no mundo. Ao mesmo tempo, porém, ela participa do poder de Deus que constrói mesmo onde homens rejeitam, odeiam e matam. A comunidade só pode descobrir tropeço e perdição onde Cristo é rejeitado.

A figura da casa (ou seja também do templo de Deus) se associa outra: a do povo de Deus. Já no V 5 este aspecto aparece, mas nos V 9 e 10 ele se torna predominante. A comunidade é sacerdócio real e santo Isto significa que ela tem acesso a Deus, dispensando todos os mediadores humanos, pois em Cristo Deus mesmo veio aos homens. Os sacrifícios espirituais desta comunidade consistem nas orações, no louvor a Deus, no anúncio das suas virtudes (melhor: dos seus feitos maravilhosos) . Ela realiza o seu culto não no secreto, mas publicamente, desafiando assim o mundo. A rigor, ela só pode testemunhar o que nela foi feito: Ela foi conduzida das trevas para a luz, foi escolhida para ser povo da propriedade de Deus, e ela experimentou a grandiosa misericórdia divina.

Resumo: l Pedro 2.1-10 chama o cristão ao crescimento através do alimento da palavra do Evangelho, crescimento este que se realiza essencialmente na construção da comunidade de Deus. As exortações são fundamentais naquilo que Deus fez, de modo que o trecho não glorifica nem o cristão nem a comunidade, mas Deus, do qual a comunidade recebe a sua vida e por quem é capacitada para desafiar o mundo através do seu culto.

III – Considerações para a prédica

A prédica dificilmente poderá esgotar a riqueza deste texto tão carregado, razão pela qual o pregador devera concentrar-se no importante e principal. O texto quer encorajar e chamar para sermos comunidade. Também os V 1-3 se incluem nesta temática, pois a exortação para procurar o alimento da palavra tem em vista a comunidade que se congrega em torno do evangelho.

No entanto, existe um problema neste texto, do qual o pregador deve conscientizar-se: O que é afirmado sobre a comunidade, via de regra não é coberto pela nossa realidade. É verdade que as comunidades da IECLB (ou outras) são o templo de Deus no mundo, um sacerdócio real, povo de Deus, etc? O desequilíbrio entre o que as nossas comunidades deveriam ser e o que elas realmente são pode seduzir o pregador a queixar-se amargamente sobre o status quo da IECLB e a confrontar os ouvintes unilateralmente com o imperativo: Devemos ser mais comunidade! Desta forma, porém, ele ficara devendo o evangelho aos participantes do culto, produzindo uma atmosfera de depressão, que conflita com a alegria tão em evidência neste texto. Por outro lado, a desconsideração da nossa realidade pode levar a perda de crédito do pregador. Se ele preconiza a comunidade como povo de Deus e sacerdócio real, prepare-se para responder a pergunta, onde na prática isto se verifica. A prédica deve permanecer autêntica. Ambos os perigos indicados poderão ser evitados unicamente através de rígida observação da intenção do texto: Ele não fala daquilo que nas comunidades da Ásia Menor acontece, seja em sentido positivo ou negativo, mas daquilo que produz comunidade. Ele fala daquela realidade, a partir da qual comunidade pode viver e que lhe é dada na medida em que se estribar no evangelho. Certamente também naquelas jovens comunidades do primeiro século nem tudo ia de bem a melhor (vejamos os problemas com os quais o apóstolo Paulo se debate nas suas comunidades!). Entretanto, comunidade, em ultima análise, não vive do que ela por si mesma ela vive do seu Senhor – e isto significa também: Ela vive do perdão dos seus pecados. Não há razão para se iludir sobre a realidade precária de muitas das nossas comunidades, mas também não há razão para resignar; pois, embora sintamos dolorosamente a nossa imperfeição, sabemos que o esteio da comunidade está em Cristo, não em nós.

Por isto não e aconselhável começar na prédica com o imperativo. O pregador mostre, muito antes, o que a comunidade pode e é capaz de ser.

Para tanto alguns exemplos:

a) Ela tem as condições de ser o lugar onde se renúncia a toda maldade. Qual é a necessidade que temos de maledicências, hipocrisias, etc? Por que destruímos comunhão? Deus assim não procedeu para conosco. Maldade não precisa ser.

b) Ela possui uma fonte de vida sem igual. Ela pode ter um alimento que sacia e proporciona vida mais rica. Se este alimento existe, não é loucura desprezá-lo?

c) Ela pode constituir-se em casa espiritual. Ela pode ser lar, onde é possível sentir-se em casa neste mundo pela comunhão de irmãos. Esta comunhão surge onde a maldade é extinta e onde se sabe que vivemos de cada palavra que procede da boca de Deus (Mt 4.4). Na sua qualidade de casa espiritual ela será o lugar da presença de Deus. Ela pode ser isto, pois a pedra angular, Jesus Cristo, está lançada.

d) Ela tem a chance de ser comunidade viva. Pois se Cristo vive (se ele é a pedra viva), não há razão para sermos mortos.

e) Ela pode ser sacerdócio santo e real. Isto significa que ela é encarregada de render culto a Deus no mundo através de palavra e ação, não só aos domingos, mas também nos dias úteis da semana. Deus destinou a comunidade a ser sacerdócio. Cada qual realizará este sacerdócio modo diferente e, não obstante, todos com a mesma finalidade e todos na mesma solidariedade. Qual é o obstáculo que impede a realização deste sacerdócio?

f) A comunidade tem o privilégio de louvar a Deus no mundo, de anunciar o poder de Deus do qual ela vive. Ela tem a honra de transmitir o chamado de Deus que transfere das trevas para a luz, e de proclamar os direitos de Deus neste mundo.

Tudo isto, porém, nem sempre é tarefa fácil, pois Deus encontra resistência neste mundo. A pedra angular da comunidade é também a pedra de tropeço. Não esqueçamos isto para não cair em ilusões. Deus encontra resistência – inclusive na comunidade, em cada um dos membros, em cada um de nós (também na pessoa do pregador). No entanto, esta é uma realidade. A outra é a realidade criada por Deus em Cristo, a saber, aquelas possibilidades muito reais, das quais falamos e as quais a comunidade, sem dúvida, já experimentou. E agora é o momento de introduzir o imperativo: Se estas chances existem, agarrai-as! Pois estas chances são a nossa salvação. Tende o desejo do alimento espiritual e permiti que sejais edificados casa espiritual. Vós sois povo de Deus; vivei, pois, como tal.

A prédica não tem a tarefa de iludir nem de destruir. Ela deverá fazer o ouvinte alegre sobre o fato de existir o poder de Deus que nos dá a chance de sermos diferentes – de sermos comunidade. Esta é a melhor maneira de conduzir ao arrependimento e de construir comunidade hoje.

Proclamar Libertação 1
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia