Prédica: 2 Coríntios 1.3-7
Autor: Ervino Schmidt
Data Litúrgica: 16º. Domingo após Trindade
Proclamar Libertação – Volume: I
I
A doxologia, no início de nossa perícope, lembra Ef 1.3 e 1 Pe 1.3. Se, porém, compararmos as passagens, notaremos que a formulação de Paulo difere das outras. Ele especifica Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, acrescentando: O Pai de misericórdias e Deus de toda consolação (v 3). Paulo deve ter tido motivos para essa especificação. Podemos perceber, por entre as linhas da doxologia, um tom polêmico, mesmo tratando-se da carta de reconciliação 1.
Talvez o apóstolo tenha em mira os espiritualistas na comunidade aos quais se uniram adversários, vindos de fora. Ele não prega um Deus abstrato e distante, um Deus que aliena. Não permite uma desvinculação da realidade. O Deus do evangelho e soberano, mas ao mesmo tempo humilde. Soberano exatamente na sua humildade!
Ele é sempre o Emanuel (o Deus conosco)! Ele se compadece de nós, sem, no entanto, arrancar-nos da nossa realidade. Paulo bendiz o Deus que, em sua misericórdia (pater tõon oiktirmõon – pai das misericórdias), penetra até as profundezas do nosso sofrimento, o Deus de toda consolação. Deus consola como uma mãe consola (Is 66.13)- Mais ainda, ele pode consolar, porque se tornou homem.
Paulo escreve aos coríntios, apontando para os seus próprios sofrimentos(Cf 11.16-12,10). Mas não o faz para gloriar-se a si mesmo como herói que soube enfrentar todas as dificuldades. Não! Aponta, pelo contrário, para a sua fraqueza. Paulo sabe o que é tribulação (thlípsis)! Em 11.23ss enumera os seus sofrimentos. Interessante é que, apesar dos mesmos, fala do Deus bendito. Agradece pela salvação em todas as dificuldades. Menciona, inclusive, uma situação de extremo perigo de vida (1.8-10). No início de suas outras cartas, o apóstolo dos gentios costuma agradecer pelo bem-estar espiritual e material das comunidades. Aqui, porém, ele agradece pelo consolo que ele próprio tem recebido nos múltiplos sofrimentos pelos quais tivera que passar. Com isso, a carta em questão assume caráter bastante pessoal. Paulo retorna à concepção vétero-testamentária do sofrimento em favor da bondade e da verdade de Deus, mas sem deixar margem para uma especulação em torno de méritos. Em sua tribulação volta-se para Deus.O sofrimento é um sinal da tensão escatológica da existência cristã. Esta tensão conhecemos como o já agora e o ainda não. Os adversários em Corinto julgavam-na superada e se vangloriavam das suas obras realizadas. Glória e não cruz! Quão profunda é a concepção paulina em vista disso! No sofrimento são arrasadas as ilusões de se poder contar com a grandiosidade das próprias obras e de fazer dos sucessos impulsos para o trabalho. Não se pode descobrir motivo de consolo em si mesmo ou por si mesmo.
Os coríntios gostariam de eliminar a miséria de uma existência sobre a qual ainda cai a sombra da morte. Gostariam de deixar totalmente de lado este ainda não da nossa salvação. Gostariam de transformar o que ainda está por vir em algo já presente de forma absoluta e definitiva. Não sabem o que inventar com a nekroosis tõu leesou (4.10). A negação, a cruz poderiam deixar valer, em último caso, como uma passagem para a glória. Mas não passaria disso. Para Paulo, pelo contrário, exatamente a negação é constitutiva para a fé que vive da graça e do consolo de Deus.
H. J. Iwand diz, acertadamente, ser toda a segunda carta aos coríntios um ajuste de contas com um cristianismo positivo que se tenta estabelecer além da cruz, da misericórdia e da thlipsis. O apóstolo dos gentios jamais será encontrado do lado deste cristianismo positivo. Sirva-nos isto de advertência! Onde não se quer deixar valer o Deus das misericórdias, não será ouvido o testemunho de um servo humilde como o era Paulo.
II
Os sofrimentos do apóstolo estão numa correlação com os sofrimentos de Cristo (v 5). Evidentemente não são uma simples analogia ou uma continuação dos sofrimentos de Cristo. A partir daí, não se pode falar de uma mística da paixão em Paulo (Cf Rm 8.17 e Fp 3.10). Temos, antes, o reconhecimento que ainda vivemos num mundo cheio de sombras ameaçadoras. Os discípulos não podem esperar um caminho de glória se o próprio Senhor Jesus foi perseguido e morto. Os discípulos precisam tomar a sua cruz, negar-se a si mesmos e arriscar a vida por causa de Cristo e do evangelho (Mc 8,34ss). Os sofrimentos do apóstolo são os sofrimentos de Cristo, pois acontecem na era messiânica e por causa de Cristo. Assim está estabelecida uma comunhão no sofrimento.
Nessa comunhão há esperança, pois nela se compartilha dos sofrimentos daquele que ressuscitou. Essa esperança é também o alvo da consolação (paráklesis) recebida de Deus. Gostaria de chamar a atenção para como Paulo joga com os termos consolo e consolação até chegar a falar na esperança (elpís). Vemos, diante de nós, um homem abandonado por sua autoconfiança, por seu káucheema, reencontrar a esperança.
Deus vive! Esta certeza nunca se pode tornar rotina, nunca algo natural! Diariamente precisamos experimentá-lo, como se fosse pela primeira vez. Entregar-se incondicionalmente nas mãos de Deus, deixando de lado toda falsa segurança, isso é contar com o Deus vivo. Podemos contar com Deus, cujo poder, manifesto na ressurreição de Jesus, penetra na escuridão da morte e na noite das nossas tentações.
Essa consolação, Paulo não a tem para si mesmo somente. Acentua que os sofrimentos pelos quais tivera que passar, e o consolo que recebera, fizeram-no capaz de consolar outros. Mas, se somos atribulados, é para o vosso conforto e salvação; se somos confortados, é também para o vosso conforto (v 6).
Tudo está entrelaçado. Os sofrimentos de Cristo e o consolo que deles resulta: Deus vive!; os sofrimentos do apóstolo que é preparado para ser o portador da palavra da consolação e, finalmente, a edificação da comunidade.
III
a) O sofrimento caracteriza a igreja de Cristo
O que significa tudo o que acabamos de analisar para a nossa situação? Em todo caso, na prédica, deveria ser ressaltado o aspecto do sofrimento.
Poderíamos iniciar com a pergunta pelo que mais chama a atenção na igreja. O que, por exemplo, um estranho percebe na igreja? Que é que mais lhe cai na vista? Não seriam as construções suntuosas, tanto dos templos como das casas pastorais, e os dispendiosos aparatos organizatórios? Talvez o impressionem também o movimento e as programações sociais. Dificilmente será mencionada a disposição para o sofrimento.
M. Lutero considerou o sofrimento como uma característica (nota) da verdadeira igreja. A igreja verdadeira está sempre sob a cruz. Sabemos como nos primeiros anos do cristianismo os homens que decidiam ser cristãos tiveram que enfrentar sérios problemas. Sofreram pressão dos vizinhos pagãos e das autoridades. Temos muitos documentos sobre condenações e execuções de homens e mulheres por causa da sua fé em Cristo. Ser verdadeiro cristão sempr foi algo arriscado. Não existe cristianismo sem cruz.
Este estado de coisas vale também para hoje. Não se precisa pensar logo em perseguições políticas, se bem que elas existam. O sofrimento pode apresentar-se de muitas maneiras. Sempre, porém, se trata de um sofrimento por amor de Cristo. Facilmente se entende que existem certos problemas, dos quais não se pode fugir. Isso até mesmo um ateu poderia admitir. Mas que se sofra por amor de Cristo, isso não é tão natural. Os coríntios, por exemplo, achavam que uma vida com seu Senhor deveria ser uma vida marcada somente pela glória. Tanto mais difícil se torna a questão, se considerarmos que o sofrer por amor de Cristo pode ser evitado. Cessa no momento em que se nega o nome de Cristo. Esse negar não precisa necessariamente ser um claro rompimento. Penso mais em termos de traição. Poderia ser um acomodar-se em determinada situação, um calar onde deveríamos erguer a voz, com o objetivo de conseguirmos, em troca, paz e tranquilidade para nos, individualmente, ou para a Igreja toda. Fechar os olhos diante de injustiças, não se envolver quando corajosamente teríamos que nos engajar com palavras e ações, pode evitar que soframos. O preço, porém, que pagamos é alto. Dá-se aí nada menos que a negação de Cristo. A tentação de querer fugir do sofrimento é grande.
Mas o sofrimento não é somente sofrimento. Ele é também alegria. Somente se reconhecermos que se trata de um padecer na comunhão com Cristo, encontraremos a riqueza nele contida. O cristão, como justo na fé, toma sobre si o julgamento. Isso lhe traz dores enquanto a realização total do reino ainda não se deu. A disposição para sofrer injustamente é uma declaração de guerra, em nome de Cristo, contra o pecado. Isso torna o nosso sofrimento alegre, pois é aí que está a comunhão com os sofrimentos do nosso Senhor. Em meio ao padecimento, temos consolo. Assim os cristãos, juntamente com Paulo, podem louvar a Deus mesmo in extremis.
b) Consolo e esperança para todos!
Paulo acentua que os sofrimentos, pelos quais tivera que passar, por amor de Cristo, e o consolo recebido, fizeram-no capaz de consolar outros (v 4). Isso vale também para a igreja de hoje e para todos os seus membros, individualmente. Quem uma vez experimentou toda a profundidade do sofrer injusto e o consolo que Deus dá, esse saberá consolar outros em situações de conflito. E elas não são poucas! O que vemos ao nosso redor, muitas vezes é desanimador, mesmo dentro da própria igreja. Humanamente falando, teríamos que desesperar.
Para finalizar: Olhando para nós, só nos resta o kyrie eleison, mas, olhando para o Deus de toda a consolação, somos conduzidos ao glória in excelsis Deo.
Notas:
1. Para podermos situar melhor o assunto, é necessário referirmo-nos,m breves traços, ao problema literário da 2a epístola aos Coríntios. Há muito fala-se de ser a nossa epístola uma composição de diversas cartas. Conforme a teoria de G. Bornkamm, que hoje é amplamente aceita, trata-se de três cartas distintas. Após ter escrito l Co, Paulo recebeu a notícia de uma invasão de adversários em Corinto. Pretensos apóstolos judaico-cristãos uniram-se as tendências entusiastas que havia na comunidade. Apresentaram-se com cartas de recomendação. Sua mensagem diferia da que Paulo trouxera (euangélion heteron, 11,14), a quem negavam a autoridade do seu apostolado.— A estas alturas Paulo escreve uma apologia do seu apostolado. Argumenta de maneira calma e objetiva. Esta é a primeira carta (2,14-7 ,4) das atualmente reunidas na 2 Co. Os adversários ganharam terreno. A teologia dos intrusos parece mesmo ter agradado aos coríntios. Paulo f az uma visita a comunidade. – Deve ter havido um sério contratempo (2,5.7). De volta a Éfeso, escreve a carta intermediária(a carta das lágrimas, cap. 10-13). A comunidade se corrige. Paulo recebe notícias surpreendentemente boas (7 , 5 ss) , o que o leva a escrever uma carta de reconciliação(l, 1-2,13 e 7,5-16). – Um problema à parte são os cap. 8 e 9.
Bibliografia
– LOHSE, E. Introdução ao Novo Testamento. Editora Sinodal, 1974.
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– VOIGT, M. Meditação sobre 2 Co 1.3-7. In: Göttinger Predigt-Meditationen. Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1970, ano 59.
Proclamar Libertação 1
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia