Prédica: Apocalipse 4.1-11
Autor: Baldur van Kaick
Data Litúrgica:Último Domingo após Trindade
Proclamar Libertação – Volume: I
I – Exegese
A estrutura do texto é clara. 1-2a: Ordem para o vidente subir e ver o que haverá de acontecer; 2b-8a: A visão do trono; 8b-1 l: A proclamação dos quatro seres viventes e a reação dos anciãos. Será bom entrar em detalhes.
1. A ordem para subir e ver o que haverá de acontecer.
Depois disso não designa um espaço de tempo determinado. A expressão tem a função de relacionar a visão que segue com os acontecimentos anteriores. Depois disso olhei introduz sempre uma visão (7.1,9;15.5). A imagem da porta celestial é frequente em visões apocalípticas (cf Lohmeyer, pág 44). A voz que fala é a mesma mencionada em 1,10. Sobe aqui aponta para o fato de que o vidente ainda se encontra na terra: é convidado a subir ao céu, que é imaginado como templo ou palácio. E mostrar-te-ei indica que agora iniciarão as visões. Em Ap 2-3 o vidente anotou as coisas que são. Em 4-20 escreveu as coisas que hão de acontecer, aquilo que agora testemunhará. A tarefa de escrever ambas as coisas fora recebida em 1.19. 2a parece ser uma observação retardante: por que repetir que o vidente se achou em espírito, se já em 1a ele está em êxtase? A observação quer dizer que é agora que inicia propriamente a visão.
2. A visão do trono.
O trono se encontra no centro da sala celeste. Ele não é descrito. E nesse trono estava sentado (alguém) revela a decisão de não citar o nome de Deus, o que nenhum judeu podia fazer. Mas a ênfase está no sentado. Estar sentado é característica de divindades. Representa poder. Quem governa, quem é rei ou juiz está sempre sentado. Reis e juizes exercem a sua função sentados. Aquele que está no céu sentado no trono só pode ser por isso o Rei dos reis, aquele que tem poder sobre todo o mundo e o julga (Lohse, Die Offenbarung, pág 36). O brilho de pedras preciosas serve para descrever o aspecto de Deus. O jaspe tem coloração vermelha. Em Ap 21.11 designa, no entanto, uma pedra cristalina e transparente como o vidro. Talvez também o nosso texto se refira ao brilho de um cristal branco. O sárdio (e não sardônio) tem cor vermelha. Ao cintilar branco/vermelho juntam-se os raios de luz verde-esmeralda, em feixe, do arco-íris ao redor do trono. Semelhante (homoios) indica que esta descrição é só aproximativa. O olhar recai em seguida (v 4) sobre o espaço em torno do trono. Sobre 24 tronos estão sentados 24 anciãos (presbyteroi). Também esses tronos representam poder, mas não poder independente do poder de Deus. Isto se torna claro no v 10: Os anciãos se prostram diante de Deus e depositam as coroas diante do trono de Deus. Os anciãos representam um conselho celestial (cf Is 24.23). Trata-se, na opinião do vidente, provavelmente de anjos. Não são quiçá homens transfigurados e então talvez eclesiásticos transfigurados e nem cardeais romanos, portanto, nem pastores luteranos, nem presbíteros reformados, – mas, de acordo com o lugar, falar e fazer que lhes é atribuído, indubitavelmente anjos, sendo que o vidente chamara em 7,14 um deles expressamente de kyrios (Senhor) (Karl Barth, KD 111/3, pág 542). Não entrarei na discussão da origem e do significado do numero 24. O v 5 descreve o espaço entre o trono e os 24 anciãos. Relâmpagos e trovões sempre acompanham a revelação de Deus. As 7 tochas de fogo são identificadas com os 7 espíritos que servem a Deus. Talvez se trate de anjos. O v 6 descreve o espaço diante do trono. A ideia original de que o trono de Deus flutuava sobre as ondas do oceano celeste (cf Lohmeyer, pág 48) é anterior ao vidente, sendo que ele não a conhece mais. Aqui só restou ainda a ideia de algo como um mar defronte do trono. Com relação aos 4 seres viventes pode-se conferir Ez 1. Eles representam servos de Deus que tudo vêem. No v 7 eles são descritos. Em 8a assumem o aspecto de serafins (cf Is 6).
Os v 2b-8a são o centro da visão apocalíptica de nossa perícope. Deus é descrito como aquele que está sentado em um trono. Tudo o mais gira em torno do seu trono. A descrição tem durante todo o tempo o trono como único ponto de referencia. Esse trono simboliza de maneira ímpar a majestade e o poder absoluto de Deus. O seu poder não tem limites, e todos os outros poderes do céu estão a ele subordinados.
3. A proclamação dos quatro seres viventes e a reação dos anciãos.
A expressão dizem incessantemente de dia e de noite (v 8b) lembra que a proclamação que agora é ouvida pelo vidente é incessante. Lohmeyer, pág. 49, comprova que a ideia de uma proclamação constante e generalizada na época. Observemos o triságio. Sem dúvida Is 6,3 serviu de modelo, mas há modificações: O Santo, santo, santo permanece. Senhor do Exércitos foi substituído pela tripla designação de Deus Senhor Deus, o Todo-poderoso (kyríos ho theos ho pantokrator). Toda a terra está cheia de sua glória foi substituído pois o louvor acontece no céu. Em compensação temos aquele que era, que e é que há de vir. Verifiquemos os detalhes: O Todo-poderoso (pantokrator) aparece 9 vezes em Ap como designação de Deus, somente uma vez no restante do NT. Em comparação o termo Pai, que no NT aparece muitas vezes, em Ap só se encontra 5 vezes como designação de Deus. Parece que somos testemunhas de uma transformação na maneira de ver Deus na comunidade primitiva. Deus em Ap não é visto mais tanto como o Pai dos crentes, mas como o Senhor soberano que tem poder sobre tudo e todos. Como tal ele e proclamado pelos quatro seres viventes. Aquele que era, que é e que há de vir indica que Deus não está preso às limitações da vida humana. Ele viveu e agiu no passado: criou o mundo (v 11); ele vive no presente e determina o curso da história da humanidade; ele virá: ho erchomenos indica que Deus não será no futuro, mas que ele virá. Então será o fim dos tempos. Aqui transparece o que e característico para o Ap, que o fim dos tempos se aproxima. Quando (hoten) no v 9 lembra que a doxologia que segue não é constante, mas uma reação à proclamação dos quatro seres viventes. A doxologia dos anciãos só sucede nos pontos altos do louvor a Deus (5.8,14;11.16;19.4) Vejamos a doxologia: os termos glória, honra e poder designam predicados de Deus. Tu és digno … de receber não é, portanto, uma expressão que afirma que Deus é digno de receber algo que ainda não possui, mas é expressão que reconhece o que Deus já tem. Poder (dynamis) é a força de Deus que destrói os poderes inimigos e conduz o mundo de encontro a sua redenção. No AT é a força de Deus que molda e faz a história (cf Grundmann, pág 293.308). Os anciãos reconhecem que Deus é digno de ter esse poder. A expressão Senhor é Deus nosso (ho kyrios kai ho theos hemon) merece ser observada com atenção. Normalmente, quando aplicados a Deus, os termos Senhor e Deus não são ligados através da partícula e. Exceção: Jo 20.28. O e liga os dois termos, porém, quando a expressão é aplicada ao imperador que desde Domiciano era intitulado Dominus et deus noster. A presente doxologia está aplicando o título do imperador a Deus. Aclamando Deus com o título que normalmente é atribuído ao imperador, fica claro que se nega ao imperador, em nome de Deus, o que o seu título expressa: que ele é Senhor e Deus. A doxologia deixa, em continuação, claro que também se nega ao imperador tudo o mais o que é reconhecido como inerente a Deus, ou seja, a glória, a honra e o poder. Isto combina claramente com o cap 13, onde Roma e considerada a besta do abismo. A doxologia cita no fim o motivo porque Deus merece louvor: por que Deus tudo criou.
Se na parte central da visão o poder se tornou visual através da descrição do trono, então na parte final o poder de Deus é manifestado através do triságio e da doxologia. Ao mesmo tempo é negado de maneira indireta todo o poder e toda a glória e divindade aos líderes políticos romanos da época. Deus é o Senhor Todo–poderoso, nem um outro homem na terra tem poder ao seu lado.
II – Meditação
O texto proposto para a prédica abrange os v 1-8. A perícope tem, no entanto, uma cadência natural que vai até o v 11. Eu me decido pelo texto todo como texto de prédica. Para a prédica será importante observar o seguinte: No v l a voz promete introduzir o vidente em acontecimentos futuros. Em lugar de fazê-lo de imediato, o vidente é confrontado primeiro com a visão do Deus entronizado. A prédica poderá aproveitar esta visão inesperada e fazer da pergunta Quem é Deus? Por que nós falamos de Deus o tema da prédica. A visão fornecerá bons subsídios neste sentido.
A atualidade do texto, com relação à pergunta feita, esta em dois pontos:
1. A visão nos confronta com um Deus majestoso e poderoso, que determina o curso da história da humanidade (v 8). Ele tudo criou (v 11) e é digno do seu poder. Deus hoje, em comparação, é visto mais como um pai bondoso, que se preocupa com a vida de cada um. Ele é visto pelo prisma das preocupações pessoais. O texto nos confronta com uma outra maneira de ver Deus. Talvez tenhamos que soletrá-la de novo: Deus não só determina o curso de uma vida pessoal, mas o caminho de toda a humanidade. Ele estabelece o seu caminho e o seu fim. Para nós talvez seja difícil aceitar esta concepção de Deus. Vemos guerras e a fome mundial, e tudo indica que não é Deus quem determina o caminho dos povos, mas os poderes econômicos, as grandes empresas, os poderes políticos e militares. Na prédica teremos que transmitir a confiança de que não é assim, de que todo o governo está nas mãos de Deus. Teremos que convidar a louvar este Deus. Os cap 2-3 fornecem material para mais um aspecto: Deus conduz também a sua igreja. Nós temos muitas perguntas em relação à igreja: Ela ainda é igreja? Ela vive a partir da Palavra? Ela tem um futuro? Ela não só fala corretamente, mas também vive o que diz? Ela não se acomoda demais a sociedade? Ela não é determinada demais por razões humanas? Existem mil motivos para abandonar a igreja, tanto para um pastor como para membros de comunidades, motivos para vacilar e duvidar dela. Por que, apesar disso, permanecemos nela? O texto fornece um argumento teológico que é na verdade uma nova perspectiva: Porque ela e guiada por Deus. Deus a conhece, a chama ao arrependimento e lhe promete futuro (cf cap 2-3)! Esta é a perspectiva do Ap com relação à igreja, representada em Ap pelas 7 igrejas da Ásia Menor. Por isso faz sentido trabalhar nela, convidar outras pessoas a participarem de sua vida. Para ter nela e com ela futuro, um futuro aberto por Deus. Em uma época em que há acentuada tendência de se perder a noção do todo e de viver só em grupinhos pequenos, seja na família ou em círculos cristãos isolados, o Ap diz claramente que Deus tem em vista a IGREJA e a ela promete futuro, não indivíduos ou grupinhos. Talvez não vejamos Deus assim. Talvez não falemos dele desta maneira. Mas, por isso é possível falar de Deus: porque ele se interessa pelo caminho da humanidade e da igreja. O texto e o contexto contêm um convite para aproximar esta maneira de ver Deus do ouvinte e lhe abrir assim as portas para uma caminhada – no mundo – com a igreja – esperançosa.
2. A visão do vidente nos confronta com uma consequência da maneira acima esboçada de ver Deus. A doxologia deixa transparecer que em oposição à reivindicação do imperador, Deus é o único que é digno de honra e glória e poder. Deus é aquele nome que não legitima, mas nega honra e glória e poder a qualquer outro nome que reclama honra glória e poder para si. Deste modo cada louvor a Deus, cada afirmação de que à Deus competem a glória e o poder, é ao mesmo tempo um protesto contra todos os poderes políticos que reclamam para si o que é de Deus.
Na igreja uma outra tese tem tradicionalmente mais peso: a de que Deus legitima os poderes políticos e o exercício de poder de homens sobre homens, a ponto de submissão aos poderes instituídos ser considerada em círculos cristãos a única atitude compatível com a fé cristã. A posição do Ap, que vê em Roma a besta do abismo (cap 13) nos é totalmente estranha. Talvez também isso tenha que ser soletrado de novo por nós: que Deus não legitima o exercício de poder absoluto de homens sobre homens, mas lhe tira toda a legitimação. Cf Cullmann, pág 65, após a interpretação de Ap 13: Ao mesmo tempo o Apocalipse condena todo o império terrestre, de qualquer época, no momento de assumir o papel de poder totalitário. É claro: As situações não se repetem simplesmente. Nós não vivemos mais a situação que viveram as comunidades da Ásia Menor. Os governantes de hoje não reivindicam mais para si o título Senhor e Deus nosso e a consequente adoração como Deus. Em lugar de imperadores autocráticos temos democracias com maior ou menor grau de liberdade e participação do povo. A crítica que o hino dos anciãos deixa transparecer não se restringe, porém, a formas de governo passadas que expressis verbis assumiram a posição de Deus. O nome Deus e aquele nome que coloca também no presente em xeque todo e qualquer exercício de poder absoluto e arbitrário de homens sobre homens. Onde o nome de Deus é mencionado, onde ele é no presente objeto de louvor e adoração, ali é negado a qualquer outro nome honra e glória e poder.
A prédica de hoje terá que aprender a exprimir isto de uma maneira nova e evangélica; terá que dizê-lo de uma maneira tal, que o ouvinte seja – a longo prazo – envolvido em um processo de aprendizagem. Concretamente isto, porém, também significa: A prédica não só mostrará que a partir de Deus não é legitimado o uso de poder e de pressão de homens sobre homens, mas também, sempre de novo, apontará para as vítimas do poder absoluto e para as classes sociais que vivem em miséria. Ela não fará de conta que tudo está bom como está e que o mundo não é reformável. Ela mostrará que a cada um compete – com amor, com dedicação, com esperança, com imaginação e sem medo – trabalhar para que a vida no país em que cada um vive seja uma vida tão boa quanto possível para todos. O evangelho se preocupa com a relação Deus-homem. Negando, porém, em nome de Deus, o exercício de poder absoluto de homens sobre homens, ativa para uma participação responsável na vida política. A prédica encorajará para isso.
Quem é Deus? Por que falamos de Deus? Deus é aquele que determina o curso da história da humanidade e nos deixa participar dela com esperança. É aquele que dá futuro à igreja. Deus é aquele em quem somos convocados a ver que todos os poderes absolutos são limitados através do próprio Deus. Deus é aquele em cujo nome podemos fazer o possível para criar um mundo mais justo. Talvez a visão de Deus do vidente seja bastante autoritária e medieval. Mas ela nos abre novas perspectivas para a nossa missão de anunciar o nome de Deus.
III- Bibliografia
– BARTH, Karl. Die kirchliche Dogmatik. V III/3, Zürich, EVZ-Verlag, 1961.
– CULLMANN, Oscar. Cristo e Política. Rio, Paz e Terra, 1968.
– GRUNDMANN, W. Artigo dynamis. In: Theologisches Wörterbuch zum NT. V II, pág. 318s.
– KÄSEMANN , Ernst. Der Ruf der Freiheit. 4a. ed, Tübingen, J.C.B. Mohr (Paul Siebeck), 1968, pág 174s
– LOHMEYER, Ernst. Die Offenbarung des Johannes. In: Handbuch zum NT. 2a. ed, Tübingen, J.C.B. Mohr (Paul Siebeck), 1953.
– LOHSE, Eduard. Die Offenbarung des Johannes. In: Das Neue Testament Deutsch. 2a. ed, Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1966.
– LOHSE, Eduard. Introdução ao NT. São Leopoldo, Editora Sinodal, 1974.
Proclamar Libertação 1
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia