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Prédica: Lucas 2.1-14
Autor: Nelson Kilpp
Data Litúrgica: Natal
Data da Pregação:25/12/1976
Proclamar Libertação – Volume: I
Tema: Natal

I

Lc 2.1-14 está previsto para cada dois anos. Este texto pode ser pregado também na véspera de Natal e no 2º. dia de Natal. A perícope está mal delimitada, pois, pelo conteúdo, o trecho vai até v 20: O anúncio dos anjos nos pastores e a indicação do sinal requerem a verificação deste sinal e a comprovação do anúncio por parte dos pastores (vs 16s) .

Quanto à critica textual, existem duas variantes importantes, que alteram o sentido do texto. No v 5 a maioria dos textos querem ressaltar que Maria era noiva de José (Sinaítico, B, C, D, L, al, sa, bo, sypesh), enquanto que outros (a, b, c, sys) afirmam ser ela esposa de José, e ainda outros combinam estas duas formas em esposa comprometida (Koiné, lat). Talvez haja, por parte dos textos que apresentam noiva, uma preocupação em resguardar o dogma da virgindade de Maria. No v 14 A deve ser original a lectio difficilior, ou seja, a leitura que também Nestle traz, apresentada por importantes manuscritos antigos. A tradução literal: entre os homens de boa vontade (Vulgata: bonae voluntatis) deve ser interpretada: entre os homens da benevolência de Deus (cf. liturgia do culto dominical: entre os homens a quem Ele quer bem). Os adeptos da comunidade de Qumran se entendiam como filhos da benevolência de Deus.

Lc 2.1-14 está dividido em duas partes: a primeira parte (vs 1-7) é um relato histórico, humano, terreno. Está escrito em estilo seco e pretende transmitir fatos históricos. É, por assim dizer, um prólogo para a segunda parte (vs 8-14), que a mais importante. O anúncio do anjo aos pastores interpreta cristologicamente o evento. O fato histórico do nascimento, por si só mudo, é interpretado e anunciado aos pastores: veio o Messias.

Lucas pretende colocar o acontecimento decisivo de Deus dentro da grande história do Império Romano. José foi a Belém em obediência a uma ordem do imperador. Deus age dentro da história humana. A pesquisa histórica, atualmente, está mais inclinada do que antes a aceitar o relato de Lc 2 como fato histórico verdadeiro.

Lucas denomina o imperador Caius Julius Caesar Octavianus pelo seu cognome, Augusto. O cognome Augusto (em grego Sebastos) o imperador recebeu em 27 a. C. do Senado Romano e significa: digno de ser adorado. O imperador Augusto era conhecido também como o que trouxe a paz ao Império Romano, sufocando cruelmente todas as guerras civis e abafando com mão de ferro todas as revoltas populares – era a afamada e cruel pax Romana. Talvez Lucas tivesse a intenção de contrapor Augusto a Jesus, que verdadeiramente é digno de ser adorado e traz uma paz totalmente diferente.

Muitos historiadores negam a possibilidade de ter havido um censo na época do nascimento de Jesus. Não temos provas concretas, mas é bem provável que tenha iniciado em 7 a. C. um recenseamento romano também na Palestina. Mais ou menos em 27 a. C., dentro do processo de reforma global do Império, Augusto inicia um recenseamento na Gália, que durou mais que 40 anos. No mesmo tempo, provável mente, houve também um recenseamento no Egito. É possível, então, que também na Palestina começasse, ainda antes do nascimento de Jesus, um recenseamento de toda a população. O historiador Flávio Josefo parece indicar que o censo somente teria sido realizado nos anos 7/8 d. C. Mas ele se refere somente ao ato final de todo o processo de recenseamento. O termo usado por Lucas para censo é apografé, que deve ser entendido como o registro de todas as pessoas que possuíam propriedades e de todos os bens imóveis tributáveis. Já que era o primeiro recenseamento romano realizado na região, esta apografé incluía também a árdua e complicada tarefa de medir as propriedades territoriais. Esta era somente a primeira etapa do recenseamento, uma etapa muito penosa e demorada. É esta a etapa que Lucas menciona. A etapa final, que consistia na tributação em si, chamava-se apotímesis. O censo cabe bem dentro da reforma do sistema tributário romano da época.

O encarregado de fazer o recenseamento em todo o Oriente provavelmente foi Publius Sulpicius Quirinius, que era, além de governador da Síria, incumbido pelo Senado Romano de supervisionar e colaborar com os governadores e procuradores das cidades e províncias menores de todo o setor do Oriente. Como tal ele estava capacitado a realizar o censo também na Palestina. O recenseamento romano teria iniciado ainda no tempo do rei Herodes, o Grande, na Judéia (falecido 4 a. C.).

Neste contexto é bem possível que José tenha se locomovido desde a cidade onde residia, Nazaré, na Galiléia, até Belém, na Judéia. Muitos afirmam que Belém está no relato de Lucas por ser um postulado dogmático: o Messias tinha que nascer em Belém (Mq 5.1, na versão do Almeida Mq 5.2). Havia, no entanto, também outras expectativas messiânicas que não mencionavam Belém. Se José fosse da tribo de Davi – o que é possível, porque os judeus valorizavam a sua procedência; muitos até possuíam listas de seus antecessores – e também possível que José tivesse que se registrar na cidade dos davididas, Belém. A lei romana rezava que os donos de propriedades tinham que registrá-las na mesma cívitas (Estado ou cidade) em que estas se encontravam. E o davidida José provavelmente tinha direito as propriedades tribais coletivas de sua tribo. Ainda era assim que as propriedades de uma tribo eram coletivas, de modo que também não podiam ser vendidas por ocasião de uma mudança de residência.

Estas questões históricas, no entanto, são multo controvertidas. Provavelmente nunca teremos plena certeza se o relato de Lc 2 confere totalmente com a realidade histórica. É conhecida a expressão Jesus, o Nazareno, da qual muitos deduzem que Jesus tenha nascido em Nazaré e não em Belém. Não possuímos, até agora, argumentos suficientes para decidir definitivamente por uma ou por outra versão. Na prédica de Natal, no entanto, não devem ser abordadas estas questões históricas, porque a situação exige que o acento seja colocado em outro ponto.

II

Os motivos, as expressões e o estilo de Lc 2 provêm de Mq 4 e 5, na versão da Septuaginta. Mq 4.8 fala da torre do rebanho e em Mq 5.4 (Mq 5.5 no Almeida) aparecem sete pastores. A base destes textos Lucas provavelmente compilou a cena dos pastores no campo (v 8). Mq 5.1 (2) fala da cidade de Belém; Mq 5.2 (3), do tempo do parto; em Mq 5.3 (4) é mencionada a força do Senhor e a sua majestade (doxa)5 e finalmente em Mq 5.4 (5) está o termo-chave schalom, paz. Lucas está bastante influenciado pela expectativa messiânica de Miquéias. E por estar baseado em Mq 5.2 (3), Lc 2 não se interessa tanto pelo tema da virgindade de Maria, baseado em Is 7.14.

Lc 2 provavelmente era uma tradição isolada no início. Ela deve ter surgido no seio de uma comunidade helenista. Alguns comentadores afirmam que a tradição de Lc 2 tem suas raízes em uma antiga lenda judaica que conta a história de alguns pastores que encontram, dentro de uma manjedoura, no campo, uma criança recém-nascida, perdida e abandonada, mas que, por milagre de Deus, está enfaixada. Através de uma epifania os pastores foram incumbidos de adotar esta criança divina. Não temos, no entanto, certeza de que esta lenda, de fato, existiu e se ela pôde ter de terminado o relato de Lc 2.

Os pastores eram pessoas desprezadas pelo povo e considerados trapaceiros e impostores. Estavam no mesmo nível moral dos ladrões. Não podiam servir de testemunhas em um julgamento. E estes desprezados, que não esperam que Deus esteja a seu favor, são escolhidos por Deus para receberem, como representantes de todo o povo (v 10), o anúncio da boa nova do nascimento do Messias esperado. Com isto, os socialmente marginalizados foram reintegrados, por Deus, na sociedade: os que não eram dignos de servirem como testemunhas em julgamentos humanos foram as primeiras testemunhas do acontecimento decisivo de Deus.

Os anjos encontramos, na Bíblia, sempre no limite entre a realidade humana e a realidade divina. Característico é o contraste entre luz e trevas na cena da aparição do anjo: a luz divina (doxa, kabod) penetra na escuridão dos homens. A reação humana normal à manifestação da majestade divina é o medo (v 9). Aqui, no entanto, a manifestação da kabod divina não vem para o castigo dos homens, mas para grande alegria de todo o povo.

Todo o peso dos vs 8 a 14 está colocado no anúncio do anjo. Este anúncio tem por conteúdo uma promissão messiânica: Hoje nasceu o Salvador. E este sotér – título também usado para designar o imperador e governadores romanos – e o esperado por todos, o Messias. O nascimento do Salvador é o primeiro passo dado por Deus para a concretização da salvação dos homens. No centro do anúncio não está tanto o fato do nascimento da criança, mas a sua importância como sinal que indica em direção a salvação futura. A salvação é esperada no futuro, com a instalação do Messias no poder.

O anúncio do anjo aos pastores é a interpretação dos fatos históricos dos vs 1-7. Os fatos históricos, por si somente, não são claros, mas carecem de interpretação. O sinal do Redentor – as faixas e a manjedoura – não é verdadeiramente um sinal que pudesse comprovar aos pastores que este, de fato, é o Salvador. Somente comparado com o anúncio do anjo é que os pastores, através da fé, podem ver neste sinal um sinal de condescendência divina, uma confissão à pobreza e fraqueza humanas. Não é assim que a simples aparição do anjo substituísse qualquer ato de fé dos pastores. Devemos ter em conta de que também o relato natalino foi escrito sob a perspectiva da fé surgida por ocasião do acontecimento de Páscoa. A festa da Páscoa é anterior à festa de Natal, tanto histórica como teologicamente.

A doxologia do v 14 é composta de duas partes ligadas entre si por um kai, ¨e¨. Aos homens Deus manifesta a sua boa vontade, benevolência, agrado, graça. Importante é a conjunção aditiva e: a paz sobre a terra existe lá onde a glória é dada a Deus. A paz entre os homens não foi conquistada por esforços humanos, mas se concretiza pela atuação do Salvador. Em contraposição ao pacificador César Augusto, o relato de Lc 2 afirma: a paz é Cristo (cf. Mq 5,4 (5) ).

III

A comunidade reunida no dia de Natal e muito diversa. Por ocasião do Natal se reúnem muitas pessoas que, em outras ocasiões, até evitam os cultos e as programações eclesiásticas. O Natal é, portanto, uma situação missionária sui generis.

A maioria das pessoas, principalmente estas que somente visitam o culto por ocasião do Natal, perderam o verdadeiro sentido da festa natalina. Em vez de ser uma festa de alegria, o Natal tornou-se vazio e monótono. Isto se torna evidente no próprio seio da família. Estas pessoas esperam por um novo sentido para a tradicional festa natalina. Aquele que procura a igreja no dia do Natal, de certa forma espera encontrar lá satisfação de seus desejos íntimos insatisfeitos; espera por um sentido mais profundo para a sua existência; espera reencontrar-se e pensa encontrar esta chance no culto.

A estas pessoas o pregador não deve dar pedras em vez de pão. Muitos acham que precisam carregar dogmaticamente a pregação natalina, visando recuperar os atrasados daqueles que quase nunca aparecem aos cultos. Creio que, com esta atitude farisaica, o pregador afugenta mais ainda este tipo de ouvintes. A estes deve ser pregada a grande oferta de Deus, que é dada, incondicionalmente, a todos, no Natal.

A história natalina está presente na consciência de uma larga camada popular. Talvez seja a história bíblica mais conhecida de nossos membros. Por esta razão o espinho do inconformismo com as ordens e estruturas deste mundo, sem dúvida presente na mensagem natalina, perdeu seu vigor. A história não causa mais impacto. Por esta razão, creio que surgiram as assim chamadas prédicas sociais e políticas, que protestam contra a sociedade de consumo, contra as diferenças sociais entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos, acusam a contradição entre os presentes de Natal e a pobreza existente no mundo, a contradição entre o luxo da festa e a miséria – o peru de Natal é uma traição aos famintos da Índia e do Paquistão. Este tipo de pregação, no entanto, a meu ver, não consegue dar novo sentido aquelas pessoas vazias que são incapazes de festejar o Natal. Não podemos, simplesmente, pregar a lei sem transmitir a boa nova de Cristo.

O escopo da mensagem do Natal é a encarnação: o Verbo se tornou carne. A realidade de Deus torna-se profana. O Deus todo-poderoso se mescla com a miséria da existência humana. Deus entra na aflição do mundo, para que o mundo veja a sua glória. Mas Deus se revela contra toda a expectativa humana. Contra a expectativa dos zelotes, ele se enquadra dentro de uma ordem existente: até aquele que ainda não nasceu já esta dentro de uma ordem imperial, Enquanto que toda humanidade é colocada em movimento por um decreto de Roma, o centro do Império e do mundo de então, Deus escolhe a margem deste Império para lá iniciar a sua obra salvadora – contra toda a expectativa dos grandes e poderosos da época. Deus se dirige inicialmente aos desprezados pela sociedade e não aos considerados bons deste mundo – contra toda a expectativa dos sacerdotes e religiosos. Deus se manifesta não como Deus onipotente, mas como um Deus que se identifica com os humildes, como um Deus aparentemente fraco: é o Deus absconditus. A miséria do Filho até impede um reconhecimento de Deus. Este é o milagre da humanidade de Deus.

A mensagem da encarnação é capaz de dar um novo sentido ao Natal. A pregação deve, portanto, tentar abrir os olhos da fé para este Deus que se tornou homem. É importante que se veja o relato natalino a partir da fé pascal, como também Lucas o faz. Somente a fé pode afirmar: Hoje vos nasceu o Salvador, que é Cristo, o Senhor. Sem a fé pascal a história de Natal não passaria de uma bonita lenda. Os termos-chave que Lucas utiliza – Belém, cidade do Davi, mulher grávida – deixam transparecer claramente a todo judeu que aqui se trata do Messias esperado. E isto é uma confissão de fé.

O Messias vai trazer a salvação. O conteúdo desta salvação podemos deduzir do v 14: schalom, paz. A paz é uma nova criação do mundo por parte de Deus: do mundo novo, completo, inteiro, ileso, são, justo, salvo Esta nova criação já é confessada agora pela fé. Em contraposição a pax Romana e à concepção de paz dos zelotes, a paz de Cristo aparenta fraqueza. A paz de Cristo é, em primeiro lugar, paz com Deus: Deus se reconcilia com os homens. Deus não revela a sua ira, mas a sua benevolência e graça. Mas a paz de Cristo também inclui política e a paz social, baseada na justiça entre os homens. A paz política entre os homens deve ser vista em estreita relação com a paz com Deus. A reconciliação possibilita e espera por uma paz política e social entre os homens. Creio que só podemos louvar a Deus (v 14) quando no mundo estamos preparando o caminho da paz, iniciado por Deus através de seu Filho.

 

Proclamar Libertação 1
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia