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Na análise dos evangelhos (= ev.) sinóticos, a hipótese das duas fontes é básica. Conforme esta, os evangelistas Mt e Lc usaram duas fontes literárias comuns: o ev. de Mc e um outro documento, reunindo mormente pronunciamentos de Jesus (=fonte Q.). Daí se explicam as grandes semelhanças entre os três ev. sinóticos (ex. : Mc 1,1-6; Mt 3.1-6; Lc 3, l -6) bem como uma porção de convergências entre Mt e Lc em material excedente a Mc (ex. : Mt 3,7-10; Lc 3.7-9). Mas também as divergências entre os sinóticos acham solução. Elas têm as suas causas em dois fatores: Mt e Lc ampliaram as suas obras mediante material coletado por eles individualmente e certamente proveniente da tradição oral (= material exclusivo). Não menos importante é o segundo fator: Nenhum dos evangelistas se deu por satisfeito com a simples cópia das suas ontes. Querendo anunciar o Evangelho, eles recontaram (!) a história de Jesus, atualizando o material das suas fontes e imprimindo-lhe o cunho de seu próprio testemunho. Por isto a redação dos ev. não se resume num processo de reprodução mecânica da tradição, ela é, muito antes, um processo de proclamação, no qual a tradição é reinterpretada . Além de coletores de material, os evangelistas eram teólogos que refletiram sobre o Evangelho e que se empenharam em dizê-lo de maneira nova dentro de sua época e dentro de seu mundo específico.

1) Conteúdo e Estrutura

De um modo geral, Mt se atém à estrutura do ev. de Mc, na qual ele incorpora tanto o material da fonte Q. como também o seu material exclusivo. Essas inclusões, por vezes, rompem a estrutura de Mc. Ainda assim, esta é nitidamente visível. Podemos distinguir quatro blocos:

O primeiro é constituído pela assim chamada pré-história (cap. 1,1-4,11), que fala dos antecedentes ao ministério publico de Jesus. Em comparação com Mc (1,1-13), este bloco sofreu considerável ampliação pela história do nascimento e da paixão do menino Jesus (cap. l e 2). Segue, então, a apresentação de João Batista e de sua proclamação, o batismo de Jesus e, finalmente, a história da tentação (3, l-4,11). Também nesta parte temos algumas ampliações, mas elas são bem mais expressivas no segundo bloco, que tem por tema o ministério de Jesus na Galiléia (Mt 4,12-20,34; cf Mc. l,14-10,52). Este bloco, aliás, pode ser subdividido em duas partes: Os cap. 4,12-l3,58 tratam propriamente da atuação de Jesus na Galiléia, enquanto que nos cap. 14,1-20,34 vemos Jesus em diversas viagens pela Galiléia e circunvizinhanças e para Jerusalém. Mt intercalou a maior parte do seu material exclusivo (e da fonte Q) na primeira destas partes (cap. 5,1-11,30). A partir do cap. 12 (= Mc 3), o evangelista começa a seguir com maior rigor a estrutura de Mc, ainda que não faltem grandes inclusões. O terceiro bloco (cap. 21,1-25,46) relata sobre o agir de Jesus am Jerusalém (cf. Mc 11-13) e os conflitos com os grupos líderes do povo judaico. Estes levam à prisão, paixão e crucificação de Jesus, acontecimentos estes que, juntamente com a história da páscoa, perfazem o conteúdo do quarto bloco (cap. 26,1-28,20; cf. Mc 1/4,1-16,20). Mt encerra o seu ev. com a grande comissão e a promessa do ressuscitado de estar com os seus discípulos até a consumação dos séculos (28,16-20).

Uma das particularidades do ev. de Mateus consiste nos amplos sermões, nos quais o evangelista concentrou boa parte do ensino de Jesus. São eles o sermão do monte (cap. 5-7). o sermão missionário (cap. 10), o sermão parabólico (cap. 13), o sermão sobre a conduta da comunidade (cap. 18), o sermão polêmico (cap. 23) em conexão com o sermão escatológico (cap. 24 e 25). Estes sermões são concluídos estereotipadamente com uma fórmula em mais ou menos os seguintes termos: Quando Jesus acabou de proferir estas palavras… (7,28s; 11,1; 13,53; 19,1; ?6,1). Trata-se evidentemente de composições de Mt, para as quais apenas em parte existiam modelos nas suas fontes. No caso do sermão parabólico, Mt ampliou a coleção de parábolas já encontrada em Mc 4. O mes¬mo vale com referência ao sermão escatológico (cf. Mc 13) e, finalmente, ambém o sermão do monte estava de certo modo prefigurado na fonte Q como o demonstram as passagens paralelas em Lc 6 e 11.

Ainda assim, os sermões permanecem sendo uma característica do evangelho de Mt, pois o volume dos mesmos ultrapassa em muito o dos seus modelos. Eles são uma maneira de sistematizar e ordenar o material da tradição, princípio este que pode ser verificado também em outros casos. Nos cap. 8 e 9 Mt reuniu preferencialmente histórias de milagres, e, seguindo o evangelho de Mc, o evangelista apresenta um ciclo de controvérsias no cap. 22 (cf. Mc 12). Outros exemplos poderiam ser acrescentados. E, não obstante, em tais agrupamentos se expressa mais do que a vontade de sistematizar o material, pois a estruturação do mesmo, bem como as ampliações, revertem em maneiras de colocar ên-fases teológicas. Nos cap. 5-7 Mt apresenta Jesus como o Messias da palavra, nos cap. 8 e 9 como Messias da ação, e ambos os complexos preparam a resposta dada por Jesus aos discípulos de João Batista, que o interrogam acerca da sua messianidade (cap. 11,2ss). Em especial, porém, os numerosos sermões no primeiro ev. denunciam claramente o interesse de Mt: O ensino de Jesus é de importância fundamental. Com isto condiz que o Jesus ressurreto encarrega os seus discípulos expressamente da tarefa de ensinar os povos a guardarem todas as coisas que lhes ordenou (28,20). Por estas razões, as grandes inclusões de Mt no plano de Mc e as alterações na estrutura não são apenas uma questão formal. Elas não deixam de ser uma expressão da teologia de Mt e de sua compreensão do Evangelho.

2) O autor

Não existem informações seguras sobre o autor do primeiro evangelho que , na sua obra, não revela a sua identidade. A Igreja antiga transmitiu este ev. sob o nome de Mateus e via nele o discípulo de Jesus, pertencente ao grupo dos doze. Fato é que todas as listas dos nomes daquele grupo mais achegado a Jesus mencionam um certo Mateus (cf. Mc 3,l8ss e par.; Atos 1,13). No entanto, é difícil admitir ser o ev. de Mt a obra de uma testemunha ocular, pois o autor trabalha com fontes e não escreve as suas memórias. Também uma notícia de Pápias, bispo na Ásia Menor por volta de 130/1140 d.C., não nos adianta. Ele diz o seguinte: Mateus pôs em ordem os 'logia' em língua hebraica, e cada um os interpretava como podia. Quais são estes logia (pronunciamentos)? O ev. de Mt, sob hipótese alguma, pode ser considerado como sendo uma simples composição de palavras de Jesus, e também não há indícios de uma versão anterior que tivesse sido redigida em hebraico. A notícia de Pápias é incompatível com a forma do atual ev. de Mt. Por isto devemos confessar: O ev. foi escrito por um teólogo, cuja identidade desconhecemos.

Aliás, uma pergunta deve ser feita com justas razões: O autor do primeiro ev. era um gentílico-cristão ou um judaico-cristão? Trata-se de uma pergunta muito controvertida. Há os que defendem a procedência judaica de Mt com os seguintes argumentos:

a) Mt não explica costumes judaicos e questões rituais onde a estes alude. Ele os pressupõe como sendo conhecidos.

b) Mt acentua fortemente a validade da lei.

c) As profecias do AT são muito importantes para Mt. Ele se esforça por mostrar que em Jesus o AT se cumpre. Para tanto são significativas as assim chamadas citações de reflexão, introduzidas por palavras como: Isto aconteceu para que se cumprisse o que fora dito pelo profeta… O valor dado à concordância com o AT naturalmente se explica bem melhor num ambiente de tradição judaica do que num ambiente gentílico-cristão.

d) Mt transmite palavras que limitam o raio de ação de Jesus expressamente ao povo de Israel (cap. 10,5;15.24).

e) Mt usa a expressão reino dos céus (expressão judaica) em lugar de rei no de Deus, porque os judeus evitavam, na medida do possível, a menção do sagrado nome de Deus.

Mas há também argumentos que apontam antes para um ambiente gentílico-cristão como lugar de origem do ev. de Mt:

a) Mt usa o At grego (a Septuaginta), não o AT hebraico. Ele nem consulta o texto em sua versão original, não se dando conta, portanto, das diferenças que há entre a versão grega e hebraica do AT.

b) Aramaísmos (ou semitismos) não são mais frequentes em Mt do que em Mc. Isto significa que a probabilidade de o aramaico ser a língua materna de Mt é mínima.

c) O ev. de Mt mostra claramente que a comunidade cris¬tã se sabe separada do judaísmo. Mt pode falar dos escribas como sendo os escribas deles (= dos judeus). O reino de Deus passou para outro povo (21,33ss), e a mensagem cristã se destina a todos os povos.

Ambos os tipos de argumentos têm sua validade e parecem conduzir a um impasse. Considerando-se, porém, a forte herança judaica, tão em evidência no ev. de Mt, e o fato de não ser necessário pressupor que um judaico-cristão deve ter tido conhecimentos de hebraico e aramaico, os argumentos a favor da tese que defende a procedência judaico-cristã do autor, são mais fortes. Mt e as comunidades a que se dirige vivem nas tradições do povo judeu. Para estes cristãos tem validade o que os escribas ensinam, embora não se deva seguir o exemplo deles (23,3), e a lei vétero-testamentária continua em vigor ao menos em sua essência (cf.5.l8).

De outro lado, porém, estas comunidades falam o grego, do que se conclui que elas são originais do judaísmo helenístico. Apesar de convictas das prerrogativas do povo judaico, elas estão profundamente atingidas pela crise do povo de Deus, crise esta que se consumou na rejeição de Jesus de Nazaré e no castigo infligido por Deus ao povo na catástrofe da guerra judaica e da destruição de Jerusalém pelos romanos no ano de 70 d.C. (22,lss). Deste Israel as comunidades se sabem separadas. Mas elas se entendem como o novo Israel e mostram, assim, que existe um vínculo entre elas e o antigo povo de Deus. Sob esta perspectiva não é difícil colocar os argumentos acima arrolados sobre um de¬nominador comum: Mateus deve ser membro de uma comunidade judaico-cristã, vivendo num ambiente helenístico.

Aliás, houve quem defendesse a tese dizendo que o ev. de Mt não foi redigido por apenas um autor, mas que ele seria o fruto do trabalho teológico de uma escola, na qual se teria cultivado o tipo de interpretação do AT particular de Mt. No entanto, apesar de a existência de escolas teológicas no cristianismo primitivo ser comprovada pela escola de Paulo e pela escola de João, não há demonstração suficiente para a hipótese de uma escola de Mateus. É possível que o pensamento teológico de Mt tenha sido compartilhado por muitos outros proeminentes teólogos daquela época. Mas faltam os indícios que nos permitissem falar numa escola em sentido preciso. Enquanto estes não existem, atribuímos a redação do primeiro evangelho à autoria de um homem – aliás de considerável capacidade teológica – de nome Mateus.

3) Lugar e data da redação

No que se refere à data e ao lugar da redação, dois fatos são incontestáveis: O ev. de Mt foi escrito num ambiente em que se falava grego, e ele foi escrito depois de Mc. Assim sendo, a Palestina como lugar de origem deve ser excluída. Foi pensado em Pela, na Transjordânia, para onde a comunidade cristã se havia refugiado em vista do perigo de guerra que sobreveio à Judéia a partir dos anos 66 d.C. Mas a maioria dos comentaristas localiza a origem do ev. na Síria. E, com efeito, a presença maciça de tradição judaica no evangelho e o fato de a existência de um cristianismo helenístico com fortes vinculações com a história do povo eleito não poder ser admitida demais distante da Palestina, indicam a Síria como provável pátria do evangelho de Mateus.

Quando Mt escreve , a destruição da cidade de Jerusalém é fato consumado. Portanto, o ev. foi redigido depois de 70 d.C. Por outro lado, Inácio da Antioquia, que sofreu a morte de mártir no ano de 110 d.C., conhece o ev. de Mt. Isto significa: Mt escreveu entre os anos de 70 e 110 d.C. Visto que Mt está baseado em Mc e mostra em relação a este um estágio adiantado de reflexão teológica sobre certos assuntos (como por ex.: sobre o fenômeno da Igreja), indicam-se as duas décadas de 80 até 100 d.C. como data da redação, ou então os anos por volta de 90.

4. Linhas mestras do pensamento teológico de Mateus

Já foi frisado que Mt da máxima importância ao cumprimento dos anúncios do AT na história de Jesus. É digno de nota que não se cumpre apenas a salvação profetizada, mas também uma série de detalhes e episódios de relativa insignificância na vida de Jesus. A fuga para o Egito, por exemplo, sucedeu para que se cumprisse a profecia de Os 11, 1: Do Egito chamei o meu filho (Mt 2,15). As trinta moedas de prata, oferecidas a Judas em troca da traição , bem como o campo do oleiro, comprado pelo dinheiro devolvido (Mt 27,3ss), são preanunciados pelo AT (cf. Zc 11,12 e 13). Tais exemplos poderiam ser multiplicados.

Que significa este freqUente recurso ao AT? Duas coisas devem ser mencionadas: Em discussão direta ou indireta com o judaísmo, Mt faz questão de mostrar que o AT se cumpriu na história de Jesus e que, por esta razão, a Igreja cristã é a herdeira legítima do antigo povo de Israel. Jesus é o Messias de Israel, profetizado pelo AT, enviado as ovelhas perdidas deste povo, mas rejeitado pelos judeus. A Igreja cristã é o novo Israel que obedece ao Filho de Deus e por isto não nega os devidos frutos a Deus (Mt 21,33ss).

Em segundo lugar, porém, o uso refletido do AT significa também uma certa historização. Com isto queremos dizer o seguinte: Mt distingue claramente dois períodos, o período da profecia e o período do cumprimento. O evangelista tem um interesse histórico no AT. Este não é somente a Sagrada Escritura, na qual a vontade de Deus se manifesta, ele é também um livro histórico que anunciou coisas futuras. Isto também significa que Mt enxerga a história de Jesus de uma certa distância. Ele está ciente do tempo que separa a Igreja daqueles eventos tão significativos para o povo judeu colocado na opção de arrepender-se e dar ouvidos a Jesus ou de escolher a sua desgraça. Esta sensibilidade para coisas passadas ainda está ausente em Marcos – ao menos ela não achou forma tão expressiva como em Mt.

O interesse histórico de Mt se revela já no início do ev., na genealogia. Ponto de partida é a figura de Abraão, do qual a salvação passa, através de Jesus, a todos os povos (Mt 28,18ss). A história da salvação inicia com Abraão, acha o seu ponto central na história de Jesus e tem a sua continuação na Igreja cristã, que tem caráter universal e está incumbida de catequizar todos os povos. Do particularismo judaico a história da salvação passa ao universalismo do Evangelho, tendo a história de Jesus por centro. O AT conduz a ele e a Igreja cristã dele se deduz.

A cristologia de Mt está em conformidade com esta concepção. O traço mais marcante é a ênfase dada ao ensino de Jesus. Este ensino é o legado de Jesus aos povos e, em particular, à Igreja. Quem se firma sobre este fundamento é como o homem que construiu a sua casa sobre a rocha (7,24ss). A comunidade de Mt logicamente vive do Cristo presente em seu meio (18,20; 28,20), ela tem a promessa da sua assistência (cf. 8,23ss), mas ela também olha para trás, ao mestre Jesus de Nazaré, recordando e guardando as suas palavras e vivendo de acordo com as mesmas.

Em outros termos, Jesus é para Mt o divino mestre que com autoridade singular interpretou a lei e definiu a vontade de Deus. Entretanto, Jesus não só ensinou a lei, mas ele também a cumpriu (5,17). Para cumprir a lei Jesus se submete ao batismo de João (3,5). Jesus é o justo (27,19), de modo que a messianidade de Jesus, para Mt, não se torna visível tanto nos milagres por ele operados, mas na sua obediência integral a Deus. Naturalmente também os milagres são documentações da dignidade messiânica de Jesus, no entanto, eles estão praticamente subordinados a doutrina de Jesus. Via de regra eles possuem função paradigmática,eles não são contados com o intuito de simplesmente impressionar nem de mostrar o poder excepcional de Jesus. Eles trazem uma mensagem atual, neles a comunidade pode aprender o que significa crer, eles servem de advertência, são sinal da compaixão de Jesus, etc. Em todo caso, os milagres de Jesus não podem ser compreendidos ã parte da sua palavra.

Considerando mais de perto o ensino de Jesus, constatamos que, para Mt, tanto a proclamação do reino por Jesus como também a sua vigorosa reinterpretação da lei de Deus são importantes:

a) A proximidade do reino de Deus exige o arrependimen¬to do homem, isto é, uma volta no rumo de vida. O reino de Deus trará o juízo (cf. 13,47ss; etc.). Mas é graça que este arrependimento é possível. Jesus oferece o perdão e convida para aceitar a chance dada por Deus aos homens pecadores (18,23ss; 21,31 e 32; etc.). É para isto que Jesus veio, a saber, para procurar os perdidos (15,24; etc.) e para prometer o reino de Deus aqueles que nada mais querem ser do que filhos humildes do seu Pai celeste (18,lss). Bem-aventurados são os pobres de espírito, os que têm fome e sede pela justiça, etc. (5,3ss), porque o reino dos céus será deles. No entanto, Mt enfatiza, mais do que os outros evangelistas, que o reino de Deus exige uma nova justiça (= conduta), melhor do que a dos fariseus e escribas (5,20). Sempre de novo Mt insiste no cumprimento da vontade de Deus. Sem dúvida, a missão do Filho de Deus significa uma nova chance, ela é sinal da incrível paciência de Deus para com o seu povo desobediente, ela equivale ao perdão dos pecados, mas a resposta do homem a esta ação de Deus deve ser o arrependimento e o cumprimento da vontade de Deus.

b) Mas qual é esta vontade de Deus? Com esta pergunta abarcamos um dos elementos mais importantes da teologia de Mt: a sua compreensão da lei. Mt luta contra duas frentes. Por um lado, ele combate tendências liberais dentro da própria comunidade cristã. Contra estes elementos ele lança a terrível ameaça: Nem todo o que me diz: Senhor, Senhor! entrará no reino dos céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai que está nos céus. Tendo em vista círculos cristãos que, aparentemente, tinham divorciado o crer e o agir, Mt insiste na validade da lei: Até que o céu e a terra passem, nem um i ou um til jamais passará da lei, até que tudo se cumpra (5,18). A lei do AT, codificação da vontade de Deus, permanece válida. Quem dissolve a lei e deixa de cumpri-la, deverá ouvir a maldição do juiz escatológico: Apartai-vos de mim, os que praticastes a iniquidade (7, 23).

Por outro lado, porém, Mt combate não menos rigoroso a hipocrisia dos fariseus e dos escribas (cf. cap. 23). Ele critica não só a disparidade que há entre o seu falar e agir, mas também a sua cegueira incapaz de descobrir os preceitos mais importantes da lei, a saber, a justiça, a misericórdia e a fé (23,23). Pois também para Mt, a despeito da passagem 5,18, o cumprimento da lei se resume no duplo mandamento do amor, e não na observação da letra. Mt não é legalista.

Existem, aliás, indícios para o fato de a comunidade de Mt ter continuado observando o sábado (24,20), de ter frequentado o culto no templo, ou, pelo menos, de não ter rejeitado este culto (5,23ss), etc. Portanto, a prática da piedade judaica é aceita e acompanhada. Mas o que pesa é a misericórdia e o amor. Este será o critério no juízo final (25,31ss). Implicitamente Mt distingue entre a lei ceremonial (leis rituais, leis de purificação, leis referentes aos alimentos, ao culto, etc) e a lei moral. De importância primária é esta, não aquela, sendo que do duplo mandamento do amor dependem toda a lei e os profetas (22,40). Por estas razões é justo que se afirme: Em Mt a compreensão da lei ou da vontade de Deus é genuinamente cristã, superando o legalismo judaico, e isto apesar da forte insistência no agir e no cumprimento da vontade de Deus em termos da lei. Dos discípulos, isto é, dos cristãos, é exigida a justiça (5,20; 6,33) que excede a dos fariseus e dos escribas, não quantitativamente mas qualitativamente.

Mt compreendeu bem que Jesus não se satisfez com uma obediência formal orientada apenas nos parágrafos da lei. Este é o erro dos fariseus e de seus semelhantes, que exteriormente parecem ser justos, mas interiormente estão cheios de hipocrisia e iniqUidade (23,28). Jesus requer a transformação do coração – nada menos do que isto,pois onde o ódio for substituído pelo amor, ali não mais pode acontecer assassínio (cf. 5,21ss); ritos destinados a protegerem o homem da contaminação com coisas impuras, tornam-se irrelevantes, se a fonte de impureza humana, a saber, o coração, for renovada (15,16ss). Assim como em Paulo, assim também em Mt somente o amor pode cumprir a lei (cf.Rm 13.8ss; etc), e com isto Mt reproduz, sem dúvida alguma, a concepção do Jesus histórico. Todo o rigorismo de Mt deve ser visto a partir deste ponto central e no pano de fundo de sua dupla polêmica contra um cristianismo indiferente à vontade de Deus por um lado, e contra a hipocrisia e o formalismo legal do farisaísmo por outro.

Finalmente deve ser abordado ainda a eclesiologia de Mt. Enquanto em Mc a Igreja ainda não é objeto de reflexão explícita, Mt revela acentuado interesse naquele fenômeno que é a Igreja. Ele é o único entre os evangelistas a usar o termo Igreja (16,18; l 8 , l 7) . De especial importância é a reação de Jesus à confissão de Pedro, que não tem paralelos nos outros ev.: Mt 16,17-19. Conforme estes versículos, a Igreja é uma instituição prevista e intencionada pelo Jesus terrestre, fundada pelo Jesus ressurreto e baseada na rocha que é Pedro. Os problemas desta passagem não podem ser discutidos nesta oportunidade. Constatamos apenas que a Igreja é vista por Mt como instituição de Cristo. Ela tem o poder das chaves (16,19 e 18,18) e uma certa organização (cap.18).

Mas a concepção eclesiológica de Mt aparece relacionada não só com o termo Igreja, também o termo discípulo é de alta relevância. A ordem do Cristo ressurreto é vazada nas palavras: Ide, portanto, fazei discípulos de todas as nações … Logo, os cristãos são, por excelência, discípulos do mestre Jesus. Eles ainda não são os definitivamente perfeitos, antes continuam em constante processo de aprendizagem, tendo o juízo final a sua frente. Este juízo futuro recebe forte ênfase em Mt. Todos os sermões no ev. terminam com a perspectiva do juízo final. Pela mesma razão o evangelista transmite uma série de parábolas com justamente este tema (cf. 13,24ss; 13,47ss; 25,1ss; etc.). A Igreja não é a comunhão dos que já alcançaram a meta, ela é antes um conjunto de maus e de bons, sendo que somente o juízo final vai revelar quem será aprovado e quem será rejeitado. Serão aprovados os que seguem a Jesus no seu caminho, os cumpridores da justiça, os que procuram o reino de Deus (6,33).

Portanto, a Igreja de Mt sabe que ela ainda não vive no reino de Deus. Ela passa por aflição e perseguição (5,10ss), pois a vontade de Deus esta sendo desrespeitada nesta terra, razão pela qual também Jesus teve que sofrer e morrer. Mas ela compreende Jesus, a sua vinda, o seu ministério, a sua morte e ressurreição como sinal da graça de Deus que libertou a comunidade para uma nova obediência, a qual não mais procura as próprias coisas, e sim o próximo, bem como o reino de Deus e sua justiça.

Mt foi um teólogo de extraordinária força sistemática e de profundeza de pensamento. A orientação eclesiológica deste evangelho tem lhe garantido uma certa preferência na Igreja cristã. Mt foi um mestre em atualizar a história de Jesus para o seu tempo – e não só para este. Ele o fez em oposição a um legalismo formal e a um antinomismo liberal, perigos sempre latentes entre os cristãos. E o que significa ser discípulo de Jesus, isto a Igreja deve aprender em todos os tempos de novo.

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Proclamar Libertação 02
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia