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Prédica: Isaías 50.4-9
Autor: Milton Schwantes
Data Litúrgica: Sexta-feira da Paixão
Data da Pregação: 08/04/1977
Proclamar Libertação – Volume: II
 

(l) Ao apresentar a tradução do texto, procuro salientar sua divisão:

O Senhor Deus me deu
língua de aprendizes,
para que eu saiba responder ao cansado.
De manhã em manhã desperta meu ouvido
para que eu ouça como os aprendizes.
O Senhor Deus abriu meu ouvido.

E eu não fui rebelde,
não recuei .
Dei minhas costas aos que batiam
e meu rosto aos que arrancavam (a barba).
Não escondi meu rosto
de afrontas e cuspidas.

Pois,o Senhor Deus me ajuda:
por isso não serei vencido,
por isso fiz de minha cara uma pedra.
E assim experimento que não serei envergonhado.

Perto está o que me declara justo (= Deus):
Quem fará processo contra mim?
Apresentemo-nos juntos!
Quem ê meu adversário de processo? Apareça diante de mim!
É isso! O Senhor Deus me ajuda:
Quem me poderá condenar?
É isso! Todos eles irão se decompor como um vestido
(velho).
A traça os comerá.)

(2) Este texto é a experiência de uma pessoa. Sabe-se preparada e enviada por Deus (vv. 4-5a). É torturada por outros (vv. 5b-6). Mas ao mesmo tempo descobre que Deus não a
abandona na tortura (v.7) e que a libera para um desafio contestante (w.8-9). Esta descrição do texto é simples. Mas prepara duas valiosas decisões para a prédica:

Primeiro: Nosso texto fala de um ‘eu’, de uma pessoa que no que diz de si se coloca na tradição dos profetas .Mas não fala de si como sendo o ‘servo de Javé’. Por isso penso que não se faz necessário incluir na prédica a questão do ‘servo de Javé’, apesar de que estas informações de pano de fundo podem ser abordadas no preparo. Pois costuma-se ver em Is 50,4-9 um dos ‘hinos do servo de Javé’ dispersos no livro do profeta do exílio babilônico Deuteroisaías (Is 40-55, aproximadamente entre 550 e 540 a.C.). Trata-se de Is 42,1-4; 49,1-6; 50,4-9; 52,12-53,12. Todos estes textos se caracterizam pela falta de ligação com o contexto. Neles é especialmente controvertida a identidade deste servo (cf. At 8,34!). Seria ele o próprio Deuteroisaías? Seria ele o Israel do exílio (cf. Is 49, 3!) ? Seria ele uma parte deste (cf. Is 53,4-6)? Ou se deveria contar inclusive com uma mudança de identidade nos diversos textos? Mas, valha isto como pano de fundo. Pois a pessoa que fala em nosso texto não assume título, também não o de discípulo, de aprendiz. O final do v.4 o evidencia: aprendiz ë uma categoria a ser comparada com o autor de nosso texto; o ouvir torna-os comparáveis, mas não os identifica. Também no início do v.4 se percebe que o autor não se intitula de aprendiz. Aqui a realidade que interessa não é a do aprendiz, mas a da língua. Essa é uma língua treinada, língua de eruditos (Almeida). Assim, discípulo é uma real idade a comparar. Consequentemente não se deveria partir do discípulo na prédica.

Segundo: A segunda decisão esta preparada na primeira. Respeitando-se o fato de que em nosso texto relata uma pessoa sem se caracterizar como ‘servo de Javé’, não convém ver nela a prefiguração de Jesus, como o NT o faz, especialmen¬te em relação ao último dos ‘hinos do servo de Javé’ em Is 52,13-53,12 (cf. Lc 22,35ss).Jesus não está escrito em nosso texto. Vejo nisto uma grande chance, pois nos dá a tarefa de penetrar em seus segredos sem aquele prisma que, ao mesmo tempo que vai centralizando tudo numa determinada imagem de Jesus, uniformiza as experiências do povo de Israel. E nisto reside um desafio inquietante,que é o de perceber em Is 50,4ss perspectivas que requeiram que se fale de Jesus.

(3) O autor de Is 50,4-9 fala , antes de mais nada, de sua experiência com o Senhor. O interesse primário está voltado para o Senhor. Da experiência com ele é que basicamente se fala. Estas frases são ditados pela maneira de ser de nosso texto. Pois cada uma de suas partes é encabeçada por algo que Deus faz: Deus me deu (v. 4), Deus me ajuda (vv. 7-9), Perto está o que me declara justo (v.8). Assinto ator torna evidente que o texto que temos diante de nos é produto do agir de Deus. Disto a prédica não pode fugir. Penso que este compromisso, que nos é colocado, não seria cumprido através do uso incessante da palavra Deus. A questão é tentar perceber no texto e no hoje quem e Deus, em que realidade é vivido e de que maneira peculiar é articulado. Estou tentando dizer que o sermão sobre Is 50,4ss pressupõe a procura por um posicionamento quanto à maneira de falar de Deus hoje. Vejo no texto indicações que ajudam nesta caminhada.

(4) O autor de nosso texto relaciona a seu rosto o que diz de si. Recebeu ‘língua’ e os ‘ouvidos’(língua antes dos ouvidos!) lhe foram constantemente acordados e abertos pelo Senhor (vv. 4-5a). É surrado no ‘lombo’, desonrado na ‘face’, cuspido na ‘cara’ (v.6). Mas, devido ao auxílio do Senhor, pode fazer de seu ‘rosto’ uma pedra dura (v.7). O que ocorre com esta pessoa ocorre em seu rosto. Seu rosto é comprometido, é desprezado, é endurecido. Realização e tortura aí se concentram, com o que está dito que, quando se fala do rosto não se fala de uma parte, mas do todo da pessoa. Dizíamos acima que Is 50,4ss basicamente fala do Senhor. Agora devemos dar um passo a mais, dizendo que a experiência do agir de Deus é uma experiência de expressão, uma descoberta do rosto. Assim, em poucas palavras, a questão que se apresenta, também para a prédica, é: Como posso ter cara? Como ser gente? Nisto o autor nos transmite experiência, aprendizado:

(5) Seu início está no preparo e na tarefa, dados por Deus do autor de nosso texto (vv . 4-5a). Há insistência no preparo. É contínuo, de manhã em manhã. A tarefa é a de falar, de usar a língua e de responder. Em tudo isso a descrição de preparo e tarefa tem certo sabor teórico; quase tudo se desenvolve entre Deus e o autor. O caráter teórico do vv, 4-5a também se evidencia a partir do todo do texto: acontece que nele não se retorna ao início. Onde isto poderia ocorrer (nos vv. 5b.7.8), se recorre a outra terminologia. Consequentemente a prédica não se pode prender aos vv. 4-5a. Deve saber lê-los na dimensão do restante do aprendizado. E nele, nada de belo. A vida se apresenta ao nosso autor em sofrimento e humilhação (v.6). É duro ficar firme (v.5b), com o que a dor sofrida não é admitida como destino, mas na luta. Luta e dor não estavam previstas no preparo e na tarefa dos vv. 4-5a. Por isso, dos vv. 4-5a para os vv.5b-6 há uma mudança radical. Seu motivo não é explicitado no texto. Mas pode-se deduzi-lo. Os que na tarefa haviam sido designados de ‘cansados’ passaram por uma transformação. Os exilados cansados (cf. Is 40,28s) se evidenciaram como cruéis inimigos, e o permaneceram. Os que perguntavam (v. 4), por fim, têm de ser desafiados (vv. 8-9). Esta transformação para pior que ocorre com os ouvintes é de se observar na prédica. Parece-me importante procurar pela identidade atual destes adversários. Is 50,4ss insiste em que não os destaquemos dentre o mundo, mas dentre o próprio povo, a própria igreja.

Em luta e dor, o autor de nosso texto chega a uma nova articulação do que lhe é o Senhor (v.7, observe que a linguagem é idêntica a dos salmos). Nesta nova articulação nada do que fora colocado nos vv, 4-5a reaparece. O que agora vale é a experiência de ajuda. Esta ajuda, porém, não tem características de vitória. Não é ajuda de vitória, mas de sofrimento. Em luta e dor, para o autor a ajuda de Deus significa que ele não será vencido, que não sumirá na lama, que não perderá sua cara. Se observo bem, o final do v. 7 o resume de maneira fundamental: eu sei (experimento, vivencio) que não serei envergonhado. Trata-se de um saber prático da companhia de Deus no sofrer. E aqui se vai descobrindo que a partir de Is 50,4ss se faz necessário falar de Jesus. Esta prédica precisa estar na vivência da cruz.

No desafio culmina o aprendizado de nosso autor (vv. 8-9). Se observo bem, este desafio se dirige aos ‘cansados’(v. 4) que viraram torturadores (v.6). A linguagem é jurídica. É possível que o autor de fato tenha estado envolvido em processo, sendo então este o motivo de sua maneira de falar. Mas já que falta o juiz terreno (quem declara justo é Deus) e como no v.9 (também nos vv. 10s) se pode observar uma passagem para outra linguagem, parece-me ser mais provável que o autor só faz uso de palavras jurídicas, sem que se tenha que contar com a realidade de um processo. Seja como for, o desafio é claro. E ele impressiona, pois vem de uma pessoa sofrida e rejeitada, da qual se esperariam lamentos e não contestações. Que esta cara quebrada – contornando expecta-tivas normais – ainda e capaz de desafiar, provocar e contestar é milagre. Para entendê-lo, o autor aponta para o Senhor. A perseverança e a liberdade de quem fala em nosso texto se devem à experiência da ajuda de Deus. A companhia de Deus o leva a aguentar a humilhação. E esta companhia leva ao desafio. A justiça que o Senhor atesta (v. 8) liberta para o desafio; a provocação vem desta certeza de justiça. Deus lhe mantém e garante a cara, com isso tem cara para provocar. A liberdade de apanhar (v. 6) envolve a de contestar e gritar (vv. 8-9). Is 50,4ss força a observar que o libertado é contestador. Muita coragem para a prédica!

(6) Tudo o que foi dito ate aqui está em função da prédica. Para mim, Is 50,4-9 parece convidativo para a prédica de Sexta-feira da Paixão, porque fala do crucificado sem o mencionar e porque, além de exigir que se fale do crucificado, força a falar das cruzes diárias, dos rostos em desfiguração. Is 50,4ss não fala diretamente de Jesus, mas seu agir certamente não é outro do que o do v. 7: experimentamos que não estamos abandonados na desgraça. Em outras palavras isto quer dizer: o poder do pecado está quebrado. O novo da cruz de Jesus é que o seu sofrer é vigente para nós. Esta dimensão do sofrer em favor de outros falta em Is 50,4ss e faz com que este texto passe por renovação a partir de Jesus. Mas eu dizia que o convidativo em Is 50,4-9 também é o fato de que não admite falar do crucificado sem incluir as cruzes diárias, sem incluir nossa cara. E aí o texto apresenta todo um aprendizado na experiência com Deus. Este inicia pelo preparo e pela tarefa de falar e redescobre no sofrimento pela tarefa a presença de Deus como liberdade para o grito, o desafio provocador. Nesta dor é renovada a experiência de Deus e a concreticidade da tarefa, com o que o sofrer deixa de ser destino para ser percebido como possibilidade tranformadora. Nesta dimensão, a prédica, ao meu ver, deveria falar de doença, rejeição social, opressão econômica, como sendo cruzes diárias, maneiras de perder a cara.

Proclamar Libertação 02
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia