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Prédica: Mateus 21.14-17
Leituras:
Autor: Harald Malschitzky
Data Litúrgica: Domingo Cantate
Data da Pregação: 08/05/1977
Proclamar Libertação – Volume II
Tema:


I – Considerações gerais

Dentro da estrutura do Evangelho de Mateus, o texto em questão faz parte daqueles que nos mostram um afunilamento em direção do desfecho final. Desde o princípio do capítulo 21 , Jesus põe à prova a paciência das lideranças judias. O traço característico de Mateus em sempre de novo apontar para as Escrituras (Antigo Testamento) e simultaneamente a incompreensão e a não aceitação de Jesus por parte dos judeus, daqui para frente, o seu ponto alto, que acaba desembocando na condenação de Jesus a morte.


II – Contexto

Nosso texto é antecedido pela purificação do templo, que marca o início da atividade de Jesus em Jerusalém em sua última semana de vida. Em seguida (v.23) é formulada clara e agressivamente a pergunta pela autoridade de Jesus, o que mais uma vez mostra a irritação das lideranças oficiais, afinal tudo acontece no centro da atividade religiosa e política da época, a saber, o templo e seus arredores.

III – O Texto

Via de regra, em livros teológicos bem como na pregação, Mt 21,14-17 é tratado apenas como apêndice a purificação do templo. Isso fica claro quando se tenta encontrar, especialmente na literatura específica de meditações, algo sobre o texto. Realmente há uma ligação intrínseca entre um e outro. A purificação do templo tem a característica de um ato profético (J. Schniewind) através do qual a au­toridade messiânica de Jesus é realçada, o que vem a ser confirmado através das curas (v. 14) e da aclamação das crianças (v. 15). Jesus, citando o Salmo 8, responde aos que perguntam em tom de ironia e indignação, dando desta forma razão às crianças e não aos seus critérios. Entretanto, para se entender esta indignação em toda a sua profundidade é bom fazer algumas considerações tanto históricas como exegéticas.


a) O Templo

No centro da vida religiosa e também político-nacional do povo de Israel estava o templo. Embora inicialmente te­nham coexistido com o templo os santuários locais, o templo de Jerusalém foi tomando sempre mais um lugar central, espe­cialmente porque as três festas maiores do povo (Páscoa, Pen­tecostes e a Festa das Cabanas) eram celebradas neste templo. Este templo era regido e organizado por uma ordem rígida que classificava as pessoas de acordo com o status, profis­são, sexo e saúde. As áreas eram rigorosamente delimitadas para os sacerdotes, os escribas, as mulheres, os estrangei­ros, as crianças, os doentes. Especialmente doentes, mas também mulheres e crianças, deveriam manter o seu lugar pre­visto.


b) Os doentes

Os doentes, bem como todo tipo de enfermidade, eram olhados não sob o ponto de vista médico, mas sim religioso. Antes de mais nada e em termos mais amplos, doenças e enfermidades são consequências normais do afastamento do homem de Deus (Gn 3,16-19). Portanto uma pessoa doente estava car­regando uma maldição ou então era vítima de maquinações do próprio diabo (Jó 1,5-6). Estando sob a maldição, os doen­tes não podiam participar da vida religiosa de seu povo, a menos que a doença fosse curada e que a cura fosse constata­da por um dos sacerdotes responsáveis pela manutenção da pu­reza do culto e do templo (cf. Lc 17,11ss e a respectiva lei em Lv 13 e 14). A cura de uma enfermidade era, pois, mais do que apenas libertação de um mal qualquer (afinal ninguém gosta de estar doente!!!), mas, sobretudo, a reintegração na vi­da do povo, especialmente na vida cultual.

c) As crianças

O termo criança (grego: nepios) no grego profano tem toda uma gama de significações, sendo que se sobressaem as de bobo, simples, inexperiente, carente de ajuda, não emancipado. No Antigo Testamento nós vamos encontrar diversos termos, cujos significados muitas vezes se tocam e entrecruzam, outras vezes se excluem (cf. G. Bertram, artigo Nepios no TWB). No Novo Testamento quase sempre o sentido gi­ra em torno de inexperiente, não emancipado, simples. Isso, por sua vez, tem um sentido teológico, pois Jesus veio aju­dar e salvar aqueles que estão perdidos e marginalizados (note-se que PERDIDO é um termo muito mais amplo do que nos o entendemos normalmente: ele está a margem da sociedade tanto eclesial como civil!) e entre estes estão justamente os doentes (eles estão imundos e não são aptos à participação no culto) e as crianças (elas não são emancipadas e ainda não entendem as coisas). Mas, o termo criança significa também sem preconceitos, aberto, franco.


d) Conclusão

O Novo Testamento nos dá um testemunho muito claro de que Jesus não se identificou com as esperanças messiânicas existentes na época sobretudo entre os líderes do povo judeu. Agindo assim, ele logo caiu em desgraça nestes círculos. Entretanto, mais espécie causou o seu comportamento em relação aos fracos, aceitando-os, curando-os e, com is­so, reintegrando-os naquela sociedade tão rigidamente orga­nizada e subdividida. Este traço evidencia-se no nosso tex­to. Primeiramente – assim nos é relatado – Jesus cura doen­tes no templo (eles certamente estavam no lugar que lhes ca­bia dentro da estrutura do templo!) e os reintegra, isto é, lhes devolve a liberdade de participar da vida cultual, desmarginalizando-os; depois ele aceita o louvor e toma a sé­rio crianças (símbolo de fraqueza, inexperiência, etc.).Todavia há mais: Agindo assim, Jesus se coloca dentro da men­sagem profética da restauração e reintegração cultual (Is 35,6; Jr 31,8; Mq 4,6-7) o que fica patente em Mateus (11,5; 15,30).

IV – A caminho da pregação

Embora quase dois mil anos nos separam da época em que se situa o nosso texto, vivemos em uma sociedade rigidamen­te dividida, na qual também se procura colocar cada um no seu devido lugar, o que não tem outra consequência do que a marginalização dos mais fracos.

Como igreja cristã hoje, muitas vezes nos damos os ares de uma igreja triunfante. Neste contexto não posso me furtar de chamar atenção aos amplos relatórios de atividades que nos são apresentados e que apresentamos não sem uma boa dose de orgulho e auto-satisfação. Temos algo com que argumentar! E justamente assim sempre de novo nos fechamos ao Cristo que vem e está entre nós. Não nos deixemos enganar! A Filha de Sião, a Igreja de Cristo, o Povo de Deus sempre estava envolto por um mundo inimigo. Talvez o tempo perigoso para a igreja tenha sido e seja aquele que reconhece a igreja com todo o respeito, mascarando de cris­tãos os seus próprios atos terrenos e levando ao grande engano de que tudo está em ordem (…). A verdadeira comunidade de Cristo é formada por aqueles que não esperam ajuda de uma profissão sacral, um trabalho sacral, uma mentira piedosa ou uma consciência piedosa. Ela é formada pelos cegos e pelos mancos que só podem ser ajudados por um milagre (F. M. Dobiãs, em GPM, p.l99).

Coloco algumas perguntas que eventualmente poderiam dar um esboço de pregação sobre o texto:

a) Nossas comunidades não estão estruturadas em pro­fissões sacrais, trabalho sacral, consciência piedosa e mui­tas mentiras sacrais?
b) Não estamos enredados em um montão de atividades que tantas vezes nos tapam a visão para os mais fracos e marginalizados?
c) Nosso louvor – justamente no domingo de Cantate! – não é, tantas vezes, uma mentirinha sacral sem as meno­res consequências?
d) Até quando nos vamos fechar ao milagre de que Deus veio ao mundo para salvar o que estava perdido?
e) Por que será que nós não nos expomos muito mais e completamente as irradiações deste milagre de Deus?

V – Bibliografia

– BERTRAM, Georg. Artigo NEPIOS. In: R.Kittel, ed.Theologisches Wörterbuch zum Neuen Testament. Vol. l V, Stuttgart, 1942.
– BERTRAM, Georg. Artigo THAUMA. In: R. Kittel, ed. Theologisches Wörterbuch zum Neuen Testament. Vol .III, Stuttgart, 1938.
– DOBIAS, F. M. Meditação sobre Mateus 21,14-17.In: Göttinger Predigt-Meditationen. Ano 5, 21,no. 2,1965.
– HÉRING, J. Artigo TEMPLO. In: J. J. v. Allmen, Vocabulário Bíblico. São Paulo, 1963.
– ROUX, H. Artigo ENFERMIDADE. In: J. J. v. Allmen, ed. Vocabulário Bíblico. São Paulo, 1963.

Proclamar Libertação 02
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia