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Prédica: Hebreus 10.19-25
Autor: Joachim Fischer
Data Litúrgica: 1º Domingo de Advento
Data da Pregação: 27/11/1977
Proclamar Libertação – Volume: II
Tema: Advento

A. A situação da comunidade

As comunidades às quais se dirige a Carta aos Hebreus, lutaram e sofreram, no passado,por causa da fé cristã (10, 32-34).Naquela luta os cristãos estavam dispostos a suportar tudo com alegria por causa do Senhor. Mais tarde, porém, o zelo de fé diminuiu bastante. Os cristãos enfraqueceram e cansaram (cf. 12,3 e 12 s.). Começaram a duvidar da possibilidade de alcançar a meta da fé e vida cristã (cf. 3,14; 10,36). Desistiram da confissão da esperança (cf. 10,23). Alguns abandonaram as reuniões da comunidade, os cultos (10,25), ou apostataram da fé (6,6; 10,29). Aparentemente houve também tendências sectárias.

Qual é a situação da nossa comunidade hoje? Quais são os principais perigos que a ameaçam? Não há resposta válida para todos os casos. Cabe a cada pregador reconhecer e analisar clara e francamente a situação de sua comunidade. Mas podemos fazer duas observações.

a) Em cada comunidade, provavelmente, haverá épocas em que diminui o zelo de fé, enfraquecem fé e vida cristã, surge um cristianismo meramente tradicional e passivo.

b) Também pode ser que uma comunidade seja afligida principalmente pelas atividades de outras Igrejas, seitas e religiões, ou que haja o perigo de ela sucumbir às tentações e do ateísmo prático que se manifesta na atitude materialista da nossa época; então membros da nossa comunidade filiam-se a outras congregações religiosas ou ficam sem fé alguma.

Esses pensamentos não necessariamente precisam ser concentrados na parte introdutória da prédica. Com uma análise demasiadamente pessimista do mundo, da comunidade ou do homem o pregador poderia matar os ouvintes antes de chegar à mensagem evangélica. Mas nos devidos lugares da prédica deve-se falar claramente dos perigos que ameaçam a comunidade, para que cada qual saiba de que se trata.

B. A Intenção da prédica

Numa situação de tentação e aflição, o autor da Carta aos Hebreus está profundamente preocupado com a vida espiritual e prática das comunidades. Quer fortalecê-las, para que possam resistir a todas as tempestades. Por isso exorta-as a prosseguirem até ao fim a caminhada de fé que iniciaram. Mas não lhes apresenta simplesmente uma lista de admoestações e advertências. Por isso também a nossa predica não se pode concentrar nisso. Numa situação em que as comunidades devem ser exortadas, o autor parte de reflexões teológicas bem profundas (cf. principalmente 7, l-10, 18). A compreensão renovada da realidade de Jesus e de sua obra salvífica leva a convicções firmes e a decisões claras justamente em situações difíceis. A atitude e o comportamento prático da comunidade, portanto, têm sua base na reflexão teológica. Essa, por sua vez, está orientada para a prática da fé e tem finalidades poimênicas. Dessa maneira o autor procede também em nos só texto. Primeiramente aponta à salvação que nos é dada (vv. 19-21). Depois chama os cristãos à fé (v.22) , à esperança (v.23) e ao amor (vv.24-25 a). Termina com a perspectiva da vinda de Jesus (v. 25b). Essa é ao mesmo tempo o dia do juízo. Isso dizem os vv. 26 ss. que, no entanto, não pertencem a perícope da prédica. Trata-se, portanto, da dádiva que recebemos e receberemos, e da tarefa que temos devido à dádiva.

Visando a prédica, eu interpretaria o texto como um resumo breve, mas completo da existência e da caminhada do povo de Deus (a comunidade ou a Igreja) e de cada cristão. A caminhada parte da obra salvífica de Cristo (vv.!9-21) e leva, pelo caminho da fé, da esperança e do amor (vv. 22-25a), à meta do dia que se aproxima, o advento de Cristo (v. 25b). Dessa maneira, tentaria motivar os membros a uma nova vida espiritual e ativa (no caso do cristianismo tradicional e passivo) ou à perseverança na fé, na esperança e na comunhão (no caso do perigo da apostasia).

C. A estrutura da prédica

I. Trata-se de uma prédica no Advento, isto é, no início do ano eclesiástico. Por isso eu começaria com a perspectiva do dia do advento de Jesus que se aproxima. Que horas são na vida da comunidade e dos cristãos?

Geralmente a época do Advento é tida como época alegre. Mas os vv. 26ss. destacam que o advento de Jesus é época de juízo: Vem Ele ao julgamento do que despreza a cruz (hino 6). Deve-se ressaltar também em nossa situação concreta o fato de que Jesus condena os que pecam deliberadamente?

Ou devemos colocar no centro das nossas reflexões a ideia de que devemos dar contas a Jesus do que cremos e vivemos? Em todo caso não devemos amedrontar a comunidade. Cristãos medrosos não servem para nada. Nossa tarefa é proclamar a boa nova. Por isso também poderíamos partir da ideia de que Jesus, por cujo advento esperamos, é o sumo sacerdote. Abriu para nós o acesso a Deus, e diante de Deus intercede por nós. Seu advento, bem como sua cruz, significam a salvação.

O advento da salvação é precedido por sinais que podem ser percebidos claramente: Vedes que o dia se aproxima”.Que sinais podemos ver?

a) Tal sinal pode ser a indiferença quanto à vida comunitária, isto é, o costume de pertencer à comunidade apenas nominalmente, sem participar mais de sua vida, sobretudo do culto e da Santa Ceia. O sinal pode ser também o rompimento completo com o cristianismo, a incredulidade. Em ambos os casos deve-se anunciar francamente o julgamento daquele comportamento. Mas seria um erro muito grande amedrontar os presentes com o juízo de Jesus. Pois justamente eles não abandonaram o culto, o acontecimento central da vida comunitária. Antes seria recomendável refletir criticamente com os ouvintes, sobre os fenômenos mencionados.

b) Os sinais do advento de Jesus podem ser os multiformes sofrimentos espirituais e materiais aos quais as pessoas estão sujeitas dentro e fora da comunidade. Podemos mencionar: doença, fome, opressão, exploração, falta de oportunidades de desenvolver seus dons, etc. Nesse caso a prédica do advento de Jesus precisa ser prédica de salvação os que sofrem, prédica de juízo para os responsáveis pelo sofrimento, se esse for causado por homens.

Quais são, numa determinada situação, os sinais mais claros, somente pode ser dito tendo em vista a respectiva comunidade.

II. Jesus, através do sacrifício de sua vida, abriu-nos a entrada no Santo dos Santos, o acesso a Deus (vv. 19s.). Conforme a religião dos judeus, Deus morava no Santo dos Santos, a parte mais sagrada do templo de Jerusalém. Um véu separava o Santo dos Santos do resto do templo (Ex 26.33), isto é, separava Deus e a comunidade reunida. Somente uma vez por ano o sumo sacerdote entrava, pelo véu, no Santo dos Santos. Para o autor da carta aos Hebreus, obstáculo que impossibilita o acesso a Deus, é a carne de Jesus, ou seja, sua natureza humana. Num sentido mais geral podemos dizer que o mundo terrestre e material esconde Deus aos nossos olhos.

Podemos falar assim ainda hoje? Também o mundo material foi criado por Deus; portanto, não é simplesmente alheio e contrário a Deus. Qual é o véu que nos separa de Deus hoje? A nossa culpa, cuja consequência é a má consciência,(v.22). Nossa culpa tem formas bem concretas: são nossas omissões e falhas, nossa arrogância e nosso egoísmo em nossa convivência com nossos próximos diante de Deus, nossa incapacidade e indisposição de servir adequadamente a Deus e aos irmãos, nossa indiferença em questões de fé e amor. Também o sofrimento pode ser um obstáculo que nos separa de Deus; pois nem sempre o sofrimento ensina a orar. Finalmente poderíamos pensar nos cuidados do mundo e na fascinação das riquezas de que fala Mt 13,22. Em todo caso, Deus fica inacessível sem e fora de Cristo.

Agora, porém, Cristo removeu o obstáculo pelo seu sangue, isto é, pelo sacrifício de sua vida na cruz. Superou a separação. Abriu-nos o acesso direto a Deus. Trata-se de uma nova possibilidade e realidade, um caminho novo e vivo.

Na fé em Jesus, temos o direito e a autorização de aproximar-nos a Deus. Por causa dessa autorização, temos então também a intrepidez subjetiva quanto ao acesso a Deus. O texto português expressa apenas o aspecto subjetivo do assunto. Mas o texto original contém também o pensamento objetivo da autorização: Tendo, pois, irmãos, autorização e, conseqüentemente, intrepidez para entrar no Santo dos Santos… O acesso livre a Deus não é nossa invenção ou conquista, e sim, presente de Jesus, que nos abre a porta. Neste sentido, Jesus é ogrande sacerdote sobre a casa de Deus (v. 21). Cabe-lhe ser o Senhor da comunidade, governando-a e intercedendo por ela junto a Deus (cf. 7,25 ; 9,24). Acompanha a comunidade, que é a casa de Deus, no caminho que Ele mesmo iniciou. Em meio aos seus, compartilha as fraquezas e as tentações que os põem em perigo.

III. Dos fatos do acesso livre a Deus e da proximidade do advento de Jesus podemos tirar três conclusões quanto ao nosso comportamento prático, em forma de três exortações.

1. Aproximemo-nos! (v.22) Somos admoestados a ter um coração sincero, isto é, a entregar-nos total e irrestritamente a Deus, assim como somos, e a caminhar na estrada da nossa vida de maneira franca e sincera, sem segundas intenções, diante de Deus e dos homens. Somos admoestados a levar uma vida em plena certeza de fé, o que no texto original significa uma vida de fé intensiva. Deus oferece-nos a comunhão com Ele; por isso devemos praticá-la e cultivá-la (culto!) (cf. 4,16).

O que se deve entender sob uma vida em plena certeza de fé, é mostrado na grande nuvem de testemunhas do cap. 11 com sua f amosa definição da fé (v. l) .Na prédica também podemos citar exemplos da História da Igreja ou do ambiente em que vivemos. Na fé trata-se da oferta e apropriação pessoal da salvação. Na fé aprovamos e aceitamos sempre de novo a promissão divina em meio à pressão do nosso tempo e apesar de todas as dificuldades interiores e exteriores. Assim seguimos a Jesus. A manifestação visível do seguir a Jesus é a participação no culto da comunidade no sentido amplo da palavra (cf. Rm 12,1). Os exegetas destacam sobretudo, como formas concretas do seguir a Jesus, a participação no culto dominical, com a proclamação da palavra e a Santa Ceia, e a oração. Alguns acrescentam ainda o colóquio fraternal (confissão ou aconselhamento pastoral) como ajuda especial na tentação. Tudo isso faz parte do aproximar-se a Deus, da vida da fé e na fé.

Por que podemos aproximar-nos a Deus? Porque fomos interior e exteriormente purificados pelo perdão dos pecados (tendo os corações purificados de má consciência; cf. 9,14) e pelo batismo (tendo lavado o corpo com água pura). Ambas as coisas são inseparáveis. Somos renovados por Deus. Dessa maneira destaca-se mais uma vez que não podemos superar, nem sequer com as mais esforçadas atividades, a separação entre nós e Deus. O acesso a Deus nos é dado; não é conquistado por nós! Justamente os pecadores recebem a dádiva de Deus. Na fé experimentamos essa renovação como realidade em meio à nossa vida. Tal dádiva liberta-nos para o verdadeiro serviço a Deus e aos homens.

A exortação do v.22 quer que não fiquemos parados no caminho da nossa vida cristã: cristianismo é progresso! Quer que não recuemos em vista das muitas dificuldades que encontramos na prática da fé. Quer que não sejamos marginalizados da comunidade, visto que há o acesso ao centro da presença de Deus. Mas certamente não adiantaria nada apresentar aos ouvintes um cristianismo ideal. Não podemos deixar de lado o fato de que muitas vezes não vivemos a fé em toda a sua plenitude nem em toda a sua pureza, e sim, de uma maneira bem humana, tentados por dúvidas, ameaçados de diversos modos. Mas justamente por isso é importante encorajar os ouvintes para a fé e para a perseverança na fé.

2. Guardemos firme a confissão da esperança!” (cf. também 4.14) A fé é a certeza de cousas que se esperam (11,1). A esperança, pois, é um elemento essencial da fé. Em Hb 6, 19s. é chamada de âncora da alma, pela qual estamos ancorados em Deus mesmo. A fé conta com aquilo que Deus fará. Já agora podemos e devemos preparar-nos para a salvação, pela qual esperamos sem vacilar. Nesse sentido o presente está grávido do futuro, por assim dizer. Vida cristã significa regozijar-se na esperança (Rm 12,12).

A confissão da esperança poderia ser um credo formulado, talvez o credo usado no batismo. Mas parece-me que o autor da Carta aos Hebreus não quer acentuar esse fato. Somos exortados a manifestar publicamente que somos cristãos. Na prédica pode-se concretizar essa ideia. Poderia ser a realidade religiosa brasileira, por exemplo, que exige nossa confissão. Nesse contexto poderíamos falar do nosso relacionamento com outras Igrejas, com as assim chamadas seitas e com congregações religiosas não-cristãs, se assim o exigir a situação da nossa comunidade. Esse campo, no entanto, é muito vasto. O pregador, pois, deve tomar cuidados para não se perder no matagal do caos religioso do Brasil.

Não guardamos firme a confissão da esperança por causa do nosso heroísmo de fé. Se confiarmos em nossa própria firmeza, poderíamos, de repente, pertencer àqueles que retrocedem (v.39). Apelos morais não adiantam nada. Também não podemos deduzir a certeza da nossa esperança dos progressos que acreditamos fazer em nossa vida de fé. Nas tentações ajuda-nos apenas a fidelidade com que Deus nos acompanha. Nossa confissão é nossa resposta a sua fidelidade.

3. Consideremo-nos uns aos outros, para nos estimularmos ao amor e às boas obras! Cristãos sempre vivem na comunhão dos irmãos, são responsáveis uns pelos outros, e assim ligados uns aos outros. A admoestação tornou-se necessária porque entre alguns dos destinatários da Carta Hebreus já se tornou costume não participar mais das reuniões comunitárias e da vida da comunidade em geral, sobretudo dos cultos. Nisso manifesta-se uma fraqueza perigosa e, em última análise, mortal da comunidade (cf. vv. 26) Qual é a situação da nossa comunidade quanto à comunhão e à responsabilidade mútua dos membros? No ano passado o Conselho Diretor da nossa Igreja constatou que nossa vivência comunitária é fraca. Um exemplo bíblico de irresponsabilidade em relação ao irmão é Caim: Acaso sou eu tutor de meu irmão? (Gn 4,9) Na comunidade cristã, os membros assumem responsabilidade espiritual e humana uns pelos outros (cf. l Co 12,24). Consiste em ajuda poimênica mútua (façamos admoestações) e estímulo para atividades de amor ao próximo na vida diária.É verdade que nossa comunhão sempre de novo está exposta a provas e tentações. Tornamo-nos indiferentes, porque cada um está preocupado exclusivamente consigo mesmo. Ou reparamos no outro, mas não para ajudá-lo, e sim, para controlá-lo ou ferí-lo justamente em seu ponto fraco. Visto que o amor ativo ao próximo está ameaçado de fracassar, os cristãos sempre de novo devem ser chamados a engajarem-se em favor do próximo, a partir da palavra de Deus. Trata-se da superação do nosso egoísmo em que queremos impor ao próximo a nossa vontade e as nossas ideias. Nós mesmos sempre de novo precisamos de ajuda pela palavra e pela ação. Assim a comunidade deve mostrar que é mais do que um clube ou uma associação que defende interesses egoístas.

Não seria bom criticar a comunidade por causa de suas fraquejas para depois apelar à boa vontade de seus membros. Tentações e fraqueza da vida comunitária só podem ser superadas em vista do Senhor, cujo advento festejamos (v.25 b). Assim justamente no início de um novo ano eclesiástico haveria uma boa oportunidade de exortar a comunidade a deixar levar-se por Jesus para um novo começo na realização prática do amor ao próximo.

Na estruturação da prédica podemos orientar-nos nas seguintes perguntas (que a prédica deve responder):

Somos comunidade do advento de Jesus?

1. Esperamos pelo advento de Jesus?

II. Temos livre acesso a Deus?
III. 1. Aproximamo-nos a Deus?

2. Guardamos a esperança?

3. Vivemos na comunhão dos irmãos?

D. Bibliografia

Para a elaboração da meditação foram usados os comentários de Fritz Laubach (Wuppertaler Studienbibel, 1967), Otto Michel (Kritisch-exegetischer Kommentar ueber das NT 13, 8a. ed. , 1969), Adolf Schlatter (Erlaeuterungen zum NT 9, 1953) e Hermann Strathmann (Das Neue Testament Deutsch 9, 8a ed., 1963);
monografias de Ernst Kaesemann (Das wandernde Gottesvolk, 2a. ed., 1957) e Gerd Theissen (Untersuchungen zum Hebraeerbrief, 1969) e
meditações de Egon Brandenburqer/Klaus Baltzer/Friedemann Merkel (Goettinger Predigt-meditationen 1971/72), Gerhard Friedrich (GPM 1959/60),Werner Krusche (GPM 1965/66), Karl Gerhard Steck (Herr, tue meine Lippen auf 4, 5a. ed. , 1965) e Gottfried Voigt (Die neue Kreatur, 1965) .

Proclamar Libertação 2
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia