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Prédica: Isaías 62.1-12
Autor: Manfredo Siegle
Data Litúrgica: 4º Domingo de Advento
Data da Pregação
Proclamar Libertação – Volume: II
Tema: Advento

I – Preliminares

1) A situação do povo de Deus

Quem analisa um recorte, mais detalhadamente, tem a tarefa de verificar o que esta em torno deste recorte. É o que pretendemos fazer. Os capítulos 60 – 62 são considerados o cerne de Tritoisaías, cujo início localizamos no capítulo 56, estendendo-se até o capítulo 66. No ano 538 o rei Ciro da Pérsia estabeleceu, em decreto, que o templo de Jerusalém, destruído em 587, poderia ser reconstruído. Além disso, permitiu que o povo levado ao cativeiro, na Babilônia, regressasse, o que aconteceu no ano seguinte, 537, quando o primeiro grupo de israelitas retornou à cidade de Jerusalém. A transformação (salvação) esperada, no entanto, ainda não acontecera. O povo que havia retornado continuava a viver numa situação calamitosa e sobremodo difícil.

Para dentro desta realidade fala um desconhecido, um profeta, o qual denominamos de Tritoisaías. A época de sua atuação cai nos primeiros anos após o fim do exílio. Ele proclama libertação e salvação a um povo machucado e oprimido (61,1). Relaciona esta salvação com o futuro. O reluzir da glória de Deus sobre o seu povo está por acontecer e terá como consequência o fim das dificuldades materiais (62,8s), da insegurança política (60,10.18), da devastação (61,4), dos vexames, pelos quais o povo passou (62,4; 61,7). A transformação há de acontecer, os povos vizinhos sentir–se-ão envolvidos (universalismo) : 60,3; 61 ,9; 62,2 (sobre o exposto, cf. C. Westermann ATD, 19, pp-236ss).

2) Contexto

O capítulo 62 faz parte do cerne de Tritoisaías, como já foi descrito acima. Em meio as lamentações do povo, às acusações contra os sacrílegos, em meio ao anúncio de perdição e castigo dos povos, o profeta proclama palavras de salvação e de libertação. A moldura direta para os capítulos 60 a 62 seriam os capítulos 59 e 63/64, os quais contêm lamentações do povo, nascidas dentro do culto.

3) Forma Literária

O cap. 62 de Isaías reflete uma unidade quanto ao aspecto literário. Dentro do todo, os vv, 8 e 9 chegam a destoar um pouco. O mesmo assunto volta à tona no cap. 65, 21s. A harmonia de pensamentos, porém, não é quebrada. Se o cap. 62 prima por harmonia e pela unidade, não podemos afirmar o mesmo dos demais capítulos de Tritoisaías que não fazem parte do bloco central (60-62). Duas partes são colocadas lado a lado em nosso texto: vv. 1-5 e vv. 6-12. O início de ambos é semelhante:
v. 1 a: “Por amor de Sião me não calarei,
v. 1b: “até que…”
v. 6: “Sobre os teus muros, ó Jerusalém, pus guardas”
v.7: até que…”

Quanto ao autor, é possível asseverar que uma pessoa só, falamos em Tritoisaías, tenha redigido este capítulo.

II – Observações Exegéticas

Vv. l a 3- Por amor a Jerusalém (Sião), o profeta não pode calar. De forma semelhante, o autor do Salmo 137 afirma que não podia esquecer-se de Jerusalém (v.5), quando assentado às margens dos rios da Babilônia (v.l).

Por que o profeta não pode calar? Deduzimos a resposta 4a Is 61,1-3. Sente-se enviado para trazer uma boa mensagem “aos quebrantados, proclamar libertação aos cativos e a por em liberdade os algemados. Isso é razão suficiente para não calar. A acusação que pesava contra o povo cativo sofreu correções; agora está em tempo de proclamar salvação e libertação. Jerusalém vive sob nova promissão. O profeta parte desta promissão e prende-se à mesma. O autor entende-se como alguém que não pode calar, porque o Senhor deve ser lembrado (v.6c): Até que saia a sua justiça como um resplendor, a lua salvação como uma tocha acesa.” A pregação do profeta é relacionada com o futuro (partícula ad). A sua missão deve ser levada em frente, até que…” O resplendor e a salvação não vão pairar, exclusivamente, sobre Jerusalém, mas os povos todos (v.2) verão o resplendor e a salvação. Jerusalém será considerada uma jóia na mão do Senhor, e ele haverá de alegrar-se com esta jóia. Sim, Jerusalém será dotada com predicados, dos mais festivos: minha delícia, desposada.

Vv. 4 e 5: O contraste que transparece através do nome antigo e do novo está baseado no fato de Javé, o Senhor, poder aproximar-se e afastar-se do seu povo. A situação de penúria e de dificuldades é um sinal de que Javé está afastado (ausente) do seu povo. De uma forma muito pessoal o profeta pode falar da relação Javé – Sião. Usa para expressar esta relação pessoal os termos noivo – noiva. O parceiro de Deus nesta relação não é o indivíduo, mas sim uma coletividade.

Vv. 6 e 7: O mesmo profeta (do v.l) continua falando,e os guardas são os mesmos que hão de fazer lembrado o Senhor (6c). Ambos são admoestados: jamais se calarão. Javé deve ser lembrado das suas promissões. Quem haverá de lembrá-lo? Poderíamos pensar muito bem nos próprios ouvintes da mensagem profética, através dos seus cânticos de louvor e por meio das suas orações constantes e perseverantes.

Vv. 8 e 9: Se nos versículos anteriores a salvação é objeto de proclamação,nestes a salvação é descrita como situação: jurou o Senhor (perfeito). Ambos os versículos falam das privações e das consequências da ocupação militar, as quais o povo experimentou. Os inimigos apoderaram-se daquilo que não era seu. Javé, no entanto, proporcionou uma mudança. Trouxe um novo rumo à história do povo. Essa transformação da situação terá consequências, inclusive na vida de culto do povo de Deus: louvarão o Senhor. A presença do Senhor é motivo de júbilo. Face à proximidade de Javé, a comunidade poderá alegrar-se novamente.

Vv. 10 a 12: São um desfecho da mensagem de Tritoisaías. O profeta traduz palavras do seu mestre (Is 40.3,9-11) para dentro da situação atual. Aqueles que já regressaram a Jerusalém são convidados a preparar o caminho e a limpar as pedras da estrada. E anunciada a vinda do Salvador; leia–se ,originalmente, salvação. A Septuaginta introduziu esta modificação. Javé fez uma auto-correção de atitude em relação ao seu povo. A iniciativa é dele; o povo é presenteado!

l – Escopo

A proximidade do Senhor transforma. Transforma o modo do ser e de viver de indivíduos e de povos inteiros. Todo aquele que é encontrado por Javé, depara com um Senhor dinâmico e livre; tão livre a ponto de corrigir suas próprias atitudes. Um instrumento nas mãos deste Senhor jamais poderá calar.

III – Meditacão

1 – Quando Javé está ausente…

Essa frase pressupõe que o Senhor pode ausentar-se do seu povo e, ao mesmo tempo, pressupõe que ele pode viver bem próximo, no meio do povo. A época de cativeiro, possivelmente, seja um dos exemplos mais vivos desta realidade. Javé é um Deus livre. Não há povo que possa fazer dele a sua propriedade. Estar longe ou próximo do povo, da comunidade é liberdade sua. A iniciativa é sua, não do povo. O Senhor não é solicitado a ausentar-se do povo, como também não impõe condições para o seu retorno.

Javé afastou-se do povo, ora eleito (Is 59,2). Retirou-se ao seu habitat, ao céu (Is 63,15). A comunidade não mais se sente orientada e dirigida pelo Senhor. Sente, isto sim, uma distância, uma ruptura. Esta realidade tem consequências para o próprio povo, consequências que atingem profundamente a sua existência.

Seu afastamento, sua distância em relação à comunidade, fazem com que esta se desvie dos seus caminhos e tem como fruto corações endureci dos( l s 63,17) . O povo de Deus sente-se desamparado, como se jamais tivesse sido seu povo. Sente-se tão perdido como se jamais tivesse sido procurado pelo seu Senhor (62,12). A comunidade de Jerusalém, da qual fala diretamente o nosso texto, vive a sua fossa.

Por isso haverá aqueles que farão lembrar o Senhor sem descansar (62,6). Javé deve ser lembrado, ele não pode esquecer da sua comunidade. A sua ausência deixa transparecer ira, e a ira de Deus conduz o homem a culpa e ao endurecimento de coração.

2 – Quando Javé está presente….

A ausência do Senhor pressupõe, assim o colocamos, a possibilidade de estar também bem próximo à sua comunidade. Essa proximidade não leva a uma tranquilidade passiva, a uma segurança interior, a uma fé introvertida, mas tem consequências bem concretas no relacionamento inter-pessoal. A presença de Deus – só o fato da comunidade ter esperança nessa proximidade – já faz com que ela sinta, dentro da situação calamitosa na qual vive, um novo ânimo e uma nova perspectiva de vida. Sentir o Senhor perto de si é sinônimo de transformação, de libertação e não conduz a uma piedade festiva que olha para si, porém cega para com a realidade dentro da qual se vive.

Somente a presença de Deus junto a sua comunidade é capaz de mudar a situação de opressão e de escravidão que pesam sobre os seus ombros (v.1s). O seu advento será sempre motivo de transformação e de renovação na comunidade. Até mesmo o nome do povo sofreria uma mudança (vv. 4 e 12). Javé pode realizar uma auto-correção de atitudes para com o povo; uma consequência do seu modo de ser absolutamente livre,além de revelar algo da bondade e do amor do Senhor. A proximidade de Deus junto ao povo conduz a uma nova visão e nova aceitação do próprio Deus. A presença do Senhor marca não somente o indivíduo, mas o povo todo e sua história. Tudo isso leva a uma situação de tensão de impaciência. O fato do profeta conclamar os guardas a se colocarem sobre os muros de Jerusalém, para fazer lembrado o Senhor, revela algo desta impaciência frente ao advento do Salvador (ou melhor da salvação): v.11. A notícia do advento do Senhor sempre gera tensão e expectativa,alegria e tristeza, certeza e insegurança, comunhão e separação, vitória e derrota, vida e morte.

Face ao advento da salvação, o profeta não pode calar e muito menos acomodar-se. A proximidade do Senhor mexe com os homens, tornando-os semelhantes à água que ferve e borbulha, indicando poder e ação. Leva-os a proclamar libertação! Ao menos o profeta fez disto a sua missão.

3 – A validade da mensagem profética (A.T.) e a nossa situação como comunidade cristã (NT)

Sabemos que no tempo de vida do profeta não aconteceu a salvação por ele proclamada e esperada. O Salvador continuava ausente. Somente a comunidade ligada à nova aliança pôde ser testemunha viva deste Salvador. O céu que continuava fechado abriu-se sobre a estrebaria naquela cidade sem importância e expressão, chamada Belém. Estamos conscientes de que a realidade histórica de Tritoisaías não é exatamente a nossa. A preocupação do profeta em proclamar a salvação era também a preocupação de Jesus Cristo, o Messias, e continua sendo a preocupação dos seguidores deste Cristo. Neste ponto somos convidados à solidariedade com o profeta. A comunidade cristã, mesmo que não possa ser identificada com a comunidade da cidade de Jerusalém, continua proclamando o advento do Salvador. Uma Igreja que não espera impacientemente o advento do Senhor é uma Igreja moribunda (HJKraus:Hören und fragen, Vol. V, p.9).

Creio que é chegada a hora de perguntarmos pela presença, pela proximidade e também pela ausência do Senhor na Igreja institucionalizada, concretamente, na IECLB. A colocação dos nossos valores, das nossas tradições eclesiásticas não pode ser, por vezes, motivo para que Deus se ausente da Igreja que diz defender a sua causa? A falta de vida e de vivência evangélica, em nossas comunidades, não são sinais gritantes de que o Senhor da Igreja nem se faz presente, mesmo que falemos tanto da sua proximidade? As preocupações conosco mesmo, com as nossas aparências externas não são tantas que, neste meio-tempo, Deus diz adeus à Igreja? É, sem dúvida, uma pergunta que nos deve levar à reflexão, quando falamos em uma série de remodelações e de implantação de uma porção de novos programas. A preocupação excessiva pelas fachadas externas pode ter como resultado o esvaziamento de conteúdo verdadeiro nas bases da Igreja. A preocupação principal do profeta era anunciar salvação e libertação do status quo. Neste sentido o nosso povo está esperando muito mais. Como obreiros de uma Igreja que nos dá bastante segurança, talvez nem nos sintamos sempre motivados a uma proclamação que revela criticidade e questionamento!

A preocupação de Cristo era trazer (e viver!) o evangelho, com todas as suas consequências. Será que seus seguidores poderão fazer outra coisa?

IV. Bibliografia

– KRAUS, Hans-Joachim. In: EICHHOLZ/FALKENROTH eds. Hören and Fragen. Vol. V. Wuppertal-Barmen, 1967.
– RAD, Gerhard von. Theologie des AT. Volumes l e II. München, 1962.
– WESTERMANN, Claus. Das Buch Jesaja. Cap. 40-66. ATD 19, Göttingen, 1966.

Proclamar Libertação 2
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia