Prédica: Romanos 13.11-14
Autor: Joachim Fischer
Data Litúrgica: 1º. Domingo de Advento
Data da Pregação:02/12/1979
Proclamar Libertação – Volume: IV
Tema: Advento
ADVENTO: DESPERTAR PARA UMA VIDA RESPONSÁVEL
I — Nossa situação: Prenúncio da catástrofe ou do advento de Cristo?
Muitas análises e diagnósticos da nossa situação na Igreja, no país e no mundo são bastante sombrios, às vezes até bem pessimistas. Problemas graves e de solução difícil afligem a humanidade, como o crescimento da população, a falta de alimentos suficientes para todos, escassez de energia e de recursos naturais, a destruição do meio ambiente, a crescente discrepância entre riqueza e pobreza, mortalidade infantil, omissões e silêncio da Igreja. Certamente cada lugar e cada comunidade têm ainda seus problemas locais. Podemos caracterizar essa situação com conceitos que encontramos em Rm 13,11-14: noite, trevas, sono. É noite; o mundo vive nas trevas e dorme. Também os cristãos não podem fugir disso.
O importante nesse diagnóstico não são a enumeração e a análise dos problemas em si. Não queremos assustar ou amedrontar os ouvintes. Importante é a pergunta para onde leva tudo isso. Quais são as perspectivas para o futuro? Não poucos acham que os homens se destruirão a si mesmos, se prosseguirem o caminho em que estamos andando. O desenvolvimento levaria a uma enorme catástrofe. Os problemas, conflitos e violências dos nossos dias seriam os primeiros sinais do fim iminente. Certos grupos e seitas, como as Testemunhas de Jeová, insistem muito nessa visão. Para eles a luz que eventualmente houver ainda no meio da escuridão, é a luz do dia que passou. Desaparecerá por completo. A noite tornar-se-á totalmente escura.
Mas, isso é verdade? Cabe aos cristãos reconhecer e dizer que horas são no relógio de Deus. Paulo atribui-lhes justamente a capacidade de definir corretamente a situação atual. Caracteriza-os expressamente como aqueles que em meio à confusão e incerteza sabem em que momento se encontram: conheceis o tempo (v. 11). No texto original consta aqui uma palavra (KAIROS) muito mais carregada do que nossa palavra tempo. Trata-se do momento decisivo do encontro entre Deus por um lado e nós e o mundo como um todo por outro lado. Nesse encontro decide-se o destino das pessoas e do mundo. Por iniciativa de Deus começa algo novo. O momento decisivo está relacionado com a morte de Jesus na cruz (Mt 26,18) e com a chegada do Reino de Deus (Mc 1,15). No confronto com o Evangelho também nossa situação apresenta-se como decisiva.
O diagnóstico cristão da nossa época não nega suas facetas sombrias. Reconhece, porém, seu sentido último: Vai alta a noite e vem chegando (ou: está próximo) o dia. (v. 12) Nesse sentido o cristão é um otimista; crê que vai ao encontro do dia, não ao encontro da noite. A luz que houver no meio da escuridão, é a luz do dia que vem clareando, o sinal de um mundo melhor. Irrompe em nossa vida com a chegada de Cristo. Lembramo-nos dessa chegada de maneira especial neste 1º. domingo de Advento. Certamente os ouvintes têm várias expectativas próprias desta época do ano, talvez bastante sentimentais. A prédica tem que tomar em consideração essa circunstância. Mas também tem que apontar decididamente à expectativa pela chegada do dia (do Cristo). À sua luz julgamos nossa situação no mundo.
II —Nossa vida: Acomodação às trevas ou luta com as armas da luz?
A constatação de que vem chegando o dia não é um fim em si. Paulo coloca todo o peso nas consequências práticas e concretas que o diagnóstico da nossa situação tem para nosso comportamento e nosso agir. Sua intenção não é a observação neutra e objetiva das coisas. Ele percebe o movimento do tempo. Dos cristãos exige-se uma atitude que deixe transparecer o fato de que vem chegando o dia. À mudança da noite para o dia corresponde a mudança do sono para a vida ativa. Já é hora de vos despertardes do sono (v.11). Seguindo essa linha do texto, a prédica pode ser uma mensagem de despertamento ou reflexão sobre a maneira de viver dos cristãos.
Quando despertarmos do sono, deixamos atrás de nós a noite e, principalmente, as obras das trevas (v. 12). Ao mesmo tempo revestimo-nos do Senhor Jesus Cristo (v. 14) ou das armas
da luz (v. 12) para andarmos dignamente (v. 13). No v. 13 Paulo diz bem concretamente como o cristão não vive. Refere-se- a certos fenômenos e costumes na vida das pessoas em sua época. Mostra em três setores da vida o que significava deixar as obras das trevas na sociedade do século l. Pressupõe que o cristão não seja um conformista que sem mais nem menos aceite o estilo de vida dos outros. Para ele o cristão é uma pessoa que tem a coragem de dizer Não a certas coisas e comportamentos. Em outras palavras: o cristão, movido e fortalecido pela fé, combate com a arma do Evangelho as trevas e o mal em suas múltiplas formas.
Para ilustrar como uma pessoa desperta para uma vida cristã responsável, pode ser usado o exemplo da conversão do famoso teólogo e bispo Agostinho (séculos IV/V). Inicialmente ele aspirava por uma carreira brilhante na vida pública. Acreditava que assim se sentiria feliz e realizado. Atribuía o maior valor ao sucesso visível: fama, admiração, dinheiro. Natural de uma das províncias periféricas do Império Romano, chegou finalmente para bem perto do centro de poder, a corte imperial. Mas às vezes esse homem bem sucedido sentiu-se vazio e profundamente deprimido. Sua vida acomodada e agradável não lhe trouxe a felicidade. Mas também não conseguiu decidir-se por uma vida cristã. Certo dia encontrava-se, juntamente com um amigo, no jardim da casa, para a qual se retiraram para descansarem. Levaram consigo as cartas de Paulo. Agostinho afastou-se de seu amigo. Sentou-se debaixo de uma figueira. Sua tensão interior era tão forte que começou a chorar. Perguntou-se a si mesmo por que adiaria uma decisão clara para amanhã. Não deveria mudar sua vida imediatamente, agora mesmo? De repente ouviu da casa vizinha a voz de uma criança que repetiu cantando as palavras: Toma e lê. Não se lembrou de nenhum jogo em que se costumasse cantar algo parecido. Então entendeu as palavras como uma indicação de Deus de que devia abrir as cartas de Paulo e ler o primeiro trecho que encontrasse. Voltou depressa ao lugar onde deixara o livro, pegou-o, abriu-o e leu em silêncio justamente os vv. 13-14 de Rm 13. Não quis ler mais, nem era necessário, pois, quando cheguei ao fim da frase, uma espécie de luz de segurança se infiltrou em meu coração, dissipando todas as trevas da incerteza. Assim Agostinho despertou para uma vida cristã e responsável.
III — Em que consiste nossa luta?
O termo armas da luz sugere a ideia de uma luta. A vida cristã é uma luta: ativa, engajada, combativa, missionária. As armas servem para a defesa ou para o ataque? Paulo não o diz. Acho que uma luta – nossa vida, portanto – inclui ambos os aspectos. Isso fica mais claro quando perguntarmos em que campos se trava a batalha. Poderíamos apontar ao v. 13. Mas não é suficiente repetir e detalhar o que Paulo escreveu. Ele visa a situação do século l. Podemos afirmar que nossa situação, no século XX, é a mesma?
Conforme o v. 13 o cristão, revestido das armas da luz, luta em três campos ou setores: o setor em que se trata da manutenção da vida física do nosso corpo; o setor em que se trata da relação entre homem e mulher; o setor em que se trata das relações sociais e comunitárias em geral. Naturalmente nossa vida não se restringe a esses três setores ou dimensões. Mas não podemos dizer tudo de uma só vez. Para os ouvintes provavelmente é mais salutar concentrarmos nossa reflexão nos três assuntos que Paulo aborda. Até posso imaginar situações em que é aconselhável destacar apenas um ou dois desses assuntos, porque no momento são mais importantes para a comunidade. Em tais casos Lutero frequentemente disse em suas prédicas: Os outros assuntos vamos abordar numa outra oportunidade.
A. A questão da manutenção da vida física do corpo: Na época de Paulo as graves distorções nesse setor consistiam em orgias e bebedices. Nossa situação é diferente. Talvez haja uma minoria cujo problema são orgias e bebedices ou tóxicos. A eles deve ser dito que o cristão não participa disso nem aprova isso. Mas para uma grande parte da população brasileira, inclusive membros das nossas comunidades, o maior inconveniente são as condições precárias ou deficientes de vida no que diz respeito à remuneração do trabalho, alimentação, saúde, previdência social, etc. Muitos cristãos são vítimas dessa situação. Bebedices muitas vezes (mas não exclusivamente!) são apenas um sinal de desespero ou uma tentativa de fuga, embora dessa maneira certamente não se chegue a uma vida sadia. Como o cristão se pode revestir de Cristo e das armas da luz e andar dignamente? Não se conformando com a miséria, como se fosse um destino inevitável; lutando por seus direitos que são os direitos de todos; insistindo em que sejam criadas condições de uma vida digna para todos. Tudo isso ele só pode fazer a partir do Evangelho (= revestido de Cristo), sabendo que o sentido último da nossa vida não é a posse das coisas materiais.
B. A questão da relação entre homem e mulher: Também nesse setor houve distorções na época de Paulo, a saber, impudicícias e dissoluções. Parece que nossos problemas não são tão diferentes dos do século l. Libertinismo, permissividade, promiscuidade são uma realidade. Mas o problema é mais amplo. Há também prostituição que não raras vezes tem causas econômicas e/ou sociais, há muito paternalismo, um machismo acentuado, opressão e discriminação da mulher. Parece-me insuficiente proclamar simplesmente a lei face aos fatos mencionados, dizendo que aquilo não é permitido aos cristãos. Por um lado costumes locais muitas vezes têm maior importância para as pessoas, também para os cristãos, do que diretrizes bíblicas. Por outro lado já não há mais um único modelo de relação entre homem e mulher. Rádio, televisão e outros meios de comunicação reforçam a tendência ao pluralismo. Existem opções diferentes. Como os cristãos podem andar dignamente nesta situação? Acho que o pregador poderia falar sobre o amor mútuo entre homem e mulher como sua relação básica num matrimônio em espírito cristão, sobre sua igualdade e parceria, seu respeito mútuo, sobre a fidelidade, sobre a responsabilidade que cada um assume. O texto também pode servir como ponto de partida para falar sobre a família cristã, o planejamento familiar e problemas semelhantes. Há muitas possibilidades de traduzir a mensagem de Paulo concretamente para dentro da nossa situação sem se demorar demasiadamente no aspecto das impudicícias e dissoluções.
C. A questão das relações sociais e comunitárias: Paulo descreve as distorções existentes neste setor em sua época com as palavras contendas e ciúmes. Acho que não se refere, numa visão individualista, a brigas entre pessoas ou indivíduos apenas. Visa atitudes, comportamentos e atos que dificultam, prejudicam ou destroem o convívio humano, abalando desta maneira a sociedade inteira. Não é difícil identificar tais fatores em nosso ambiente: distribuição desigual de renda, o problema fundiário (reforma agrária), exploração, injustiça social, opressão, etc. A economia da nossa sociedade baseia-se no princípio da competição. Podemos perguntar se a diretriz de Paulo (não em contendas e ciúmes) não leva necessariamente à rejeição desse princípio. Pessoalmente acho que não. Uma sociedade sem competição e conflitos é, a meu ver, uma ilusão. Mas há competição e conflitos que não estimulam o desenvolvimento da sociedade como um todo e que não promovem o bem comum, e sim, escravizam e destroem pessoas. Parece-me que a raiz desse processo é o egoísmo ateu. Em relação a ele o Não de Paulo tem validade ainda hoje. E o que Paulo quer positivamente? Uma sociedade idílica? Uma utopia? Não. Ele sabe que Deus criará um novo céu e uma nova terra; portanto, uma nova sociedade. Quer que os cristãos vivam consciente e responsavelmente à luz do dia em que a nova sociedade vem chegando. Quer que convivam, não sem conflitos, mas de uma maneira que permita suportar e solucionar os conflitos no espírito da fraternidade cristã.
IV – Conclusão
As três partes da meditação são ao mesmo tempo uma proposta para a prédica. A finalidade é mostrar como o advento de Cristo nos desperta para uma vida responsável. Tal vida, em última analise, não é o resultado do nosso planejamento e esforço, e sim, a consequência da aproximação da nossa salvação (v. 11b), da chegada do dia (v. 12a). Ainda estamos expostos às tentações das trevas. Por isso devemos estar atentos à orientação e às admoestações do Senhor. Mas com as armas que Ele coloca à nossa disposição, é possível vencer a luta. Andando dignamente, como em pleno dia, comemoramos o Advento de maneira certa.
V – Bibliografia
– BARTH. K. Der Römerbrief. Reimpressão da 1a ed. de 1919. Zurique. 1963
– HEGE, A. Meditação sobre Romanos 13.11-14. In: Für Arbeit und Besinnung 27 (1973). Caderno 21.
– IWAND, H. – J. Meditação sobre Romanos 13. 11-14. In: Herr, tue meine Lippen auf. Vol 2. 2a. ed.,Wuppertal-Barmen. 1959.
– KREYSSIG. P. – STAMMLER, E. Meditação sobre Romanos 13. 11-14. In: Predigtstudien. Ano 1973/74 Stuttgart-Berlim, 1973.
– JORNAIS e REVISTAS como fontes de informação para a análise da nossa situação.
Proclamar Libertação 4
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia