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Prédica: Jeremias 23.5-8
Autor: Walter Altmann
Data Litúrgica: 1º. Domingo de Advento
Data da Pregação:30/11/1980
Proclamar Libertação – Volume: VI
Tema: Advento

A Bíblia está voltada para a revolução, não para a reação; ela é dinamite, não ópio. (Leonhard Ragaz)

I – Um credo de hoje

“Creio verdadeiramente na Causa do Homem Novo.
Creio em outra Humanidade mais fraterna….
Creio no impossível e necessário Homem Novo!
Não creio na segregação racial ou classista (porque uma só é a imagem de Deus no Homem).
Não creio no desenvolvimento das minorias nem no desenvolvimento desenvolvimentista da maioria. (Porque esse desenvolvimento já não é o nome novo da Paz.)
Não creio no progresso a qualquer preço. (Porque o Homem foi comprado ao preço do Sangue de Cristo.)
Não creio na técnica mecanizadora dos que dizem ao computador: Nosso pai és tu. (Porque somente o Deus vivo é nosso Pai.)
Não creio na consumidora sociedade de consumo. (Porque só são bem-aventurados os que têm fome e sede de Justiça.)
Não creio na Cidade Celeste à custa da Cidade Terrestre. (Porque a Terra é o único caminho que nos pode levar ao Céu.)
Não creio na Cidade Terrena à custa da Cidade Celeste. (Porque não temos aqui cidade permanente e vamos para a que há de vir.)
Não creio no homem velho. (Porque creio no Homem Novo.)
Creio no Homem Novo que é Jesus Cristo Ressuscitado, primogênito de todo Homem Novo!
Amém. Aleluia! (Casaldáliga, p. 240)

II – Uma promessa de ontem

Jeremias é, sem dúvida, um ancestral dessa confissão de fé acima. Chamado como profeta contra sua própria vontade e resistência (Jr 1), teve que suportar um duplo sofrimento. Compartilhou a sorte de seu povo, triturado pelo jogo político-militar das potências que o cercavam, em que teve que divisar o juízo histórico de Javé (cf., por exemplo, Jr 9.9ss e 20. 7-18). Como profeta, porém, tinha a incumbência de chamar o povo ao arrependimento e à submissão ao juízo de Deus, o que lhe valeu a pecha de subversivo e traidor da pátria, seguida de prisão e tortura (cf. Jr 19.1ss e 20.1ss; também 37.11ss). Mas Jeremias não é apenas um profeta do juízo, como também um proclamador da libertação. Não, porém, um anunciador barato, como os falsos profetas que clamam paz — paz, quando não há paz (Jr 6.14; 8.11), porque a ganância, a injustiça e a adoração de falsos deuses tomou conta, sem que haja sinais de arrependimento. A libertação ele a anuncia somente para além dos acontecimentos da destruição de Israel, devastação da terra e deportação das lideranças do povo pelas tropas de Nabucodonosor, da Babilônia. Depois que Jeremias tem que declarar o fim da dinastia histórica de Davi, instituída pelo próprio Javé (nenhum dos seus filhos prosperará, para se assentar no trono de Davi, Jr 22.30), aí — mas somente então — pode e deve também proclamar a libertação. Não há ressurreição sem cruz.

Nesse contexto se insere a perícope Jr 23.5-8. São palavras que datam, com toda probabilidade, de uma terceira fase da atividade de Jeremias, a saber sob o rei Zedequias (após atuar sob os reis Josias e Jeoaquim), o último rei davídico. Proclamado seu fim (22.30), Jeremias anuncia, em nossa perícope, no v.5, um novo representante no trono. Efetivamente, aos olhos do poder instalado, é uma mensagem subversiva, pois o representante anunciado não se encontra em sucessão histórica e genealógica a Davi, mas é um líder radicalmente alternativo, provindo de uma nova vocação de Javé e oriundo, com o fim da casa real, do povo. Para este a história de Deus tem uma peculiar continuidade, imperceptível do ponto de vista dos poderes dominantes com fim determinado. A esperança do povo se nutre em Deus de uma amplitude que ultrapassa em muito a contingência histórica momentânea. E sua esperança, à qual Jeremias chama, é qualificada: à diferença do atual, já com os dias contados, o novo líder será “justo (mais uma ousada crítica profética — denúncia e anúncio ao mesmo tempo). Sua sabedoria se caracteriza por direito e justiça na terra (assim, melhor do que juízo e justiça, como consta na tradução de Almeida). Direito e justiça estão tradicionalmente vinculados à esperança messiânica (cf. Is 9.6s) e são a essência de uma ordem social e política, sobre a qual o bem-estar e a fraternidade do povo ficam assegurados, estabelecendo-se a verdadeira paz. Jr 22.3: Executai o direito e a justiça, e livrai o oprimido da mão do opressor.

V.6: Jeremias não espera o cumprimento de sua profecia para já. Nos seus dias (cf. também vv. 5 e 7), isto é, no tempo apropriado, Judá experimentará libertação (melhor do que será salvo, como na tradução de Almeida, pois libertação caracteriza melhor a integralidade da nova ordem a ser estabelecida). Novamente contra os falsos profetas que instigam as esperanças falsas e imediatistas, ligadas ainda à velha ordem e ao presente rei (cf. cap. 27), Jeremias precisa apontar para uma esperança que ultrapassa sua própria vida e a de sua geração. Aos israelitas no cativeiro babilônico escreve, posteriormente, que tenham filhos e filhas, que estes se casem e também gerem descendência. O próprio Jeremias, libertado da prisão pelas forças invasoras, recusou seus favores e permaneceu na pátria devastada, para reconstruí-la com o resto de seu povo, mas é por este obrigado a ir ao Egito, tendo provavelmente morrido ali, em terra estranha (cf. caps. 42 e 43).

Quer dizer, Jeremias anuncia a libertação; mas contra os interesses dominantes e muitas vezes contra a incompreensão do próprio povo, ansioso por queimar etapas. O profeta sabe que a libertação é um processo histórico que passa pela experiência do cativeiro. Quando a libertação vier, o direito e a justiça estiverem estabelecidos, aí o povo também terá segurança. Ou seja, contrariamente aos poderes opressivos que pretendem, mediante suas ideologias de segurança, perpetuar sistemas de injustiça e de perversão do direito, Jeremias sabe que a verdadeira segurança, a segurança de Israel, isto é, do povo, é fruto do direito e da justiça,e não arma da espoliação. Também o nome do futuro líder, Javé-Zedequênu (Almeida: SENHOR Justiça Nossa) denota a polêmica contra Zedequias (que significa Minha Justiça é Javé), nome dado ilegitimamente por Nabucodonosor e ao qual o próprio Zedequias não fazia jus. O nome do líder prometido não assinala nenhuma propriedade individual, mas expressa a vinculação coletiva do povo com Javé, seu Deus. Esse líder será um instrumento serviçal de Javé e do povo, mediante a justiça.

Vv. 7 e 8: Nos dias da libertação, será ultrapassada até mesmo a confissão básica da fé de Israel, a saber, a confissão de fé baseada no extraordinário evento de libertação do Egito. O êxodo, esse acontecimento histórico fundamental para todo o Antigo Testamento, fonte de inspiração, esperança e luta ainda hoje, será ultrapassado por acontecimento ainda mais maravilhoso, e a confissão de fé não precisará mais olhar para um passado, aparentemente distante, porque terá na sua experiência imediata a razão para o louvor de Deus. O povo poderá olhar a seu redor, vivenciar a reunião justa e pacífica em sua própria terra, depois de estar disperso por todos os recantos. Novos credos se formularão, adequados à nova realidade. Fica visível aqui a fundamental unidade entre justiça e reconciliação, louvor a Deus e fraternidade. Não ópio, mas dinamite a serviço do reino de Deus.

A visão de Jeremias ultrapassa seu tempo de vida, e também o das gerações que ele foi capaz de assinalar. Vai além até mesmo de nosso tempo. Num certo sentido vivemos ainda hoje no seu aguardo. Mas não é uma utopia ilusória. Tão certo como vive Javé – com essa expressão de confiança total e certeza plena, podemos olhar para a estupenda história de libertação do povo de Deus. O êxodo e o retomo do cativeiro babilônico são acontecimentos fundamentais e marcantes. Mas a fé cristã soube reconhecer ainda outro, definitivo: Jesus de Nazaré, filho de Davi, segundo o testemunho do evangelista Mateus (Mt 1.1). Tudo quanto aguardamos, direito e justiça, divisamos vivido e assinalado na sua solidariedade e na sua morte (cf. as contribuições sobre Lucas 4.16-21, no início deste livro). Nele, com ele e por ele, a utopia, longe de ser ilusão, se antecipa e se ensaia por seu povo, aqui e agora. Somos filhos e protagonistas da história de libertação, vivemos da graça e no amor.

III — Uma proclamação para amanhã

Johannes Schmidt, ainda jovem, emigrou da Alemanha em 1875 para o interior de Lajeado, no Rio Grande do Sul. Em 1920, seu filho Berthold busca novas terras perto do Rio Uruguai. O filho deste, Ulrich, vai em 1957 para o Oeste do Paraná. Em 1980, com a construção da barragem de Itaipu, Werner se vê forçado a ir para Sinop, Mato Grosso. Mário, hoje com 2 anos. trineto do imigrante, para onde terá migrado no ano 2000? Os nomes são fictícios, o acontecimento, porém, é típico. Aliás, não são poucos os que foram obrigados a migrar mais de uma vez em suas vidas. Quarenta milhões de brasileiros, um terço da população do país, é migrante. Para onde vais? foi o tema da campanha da fraternidade de 1980, organizada pela CNBB. Por que vais? Para quê vais? Com quem vais? são perguntas complementares para reflexão.

Um povo migrante leva consigo sua profunda esperança, tantas vezes desiludida por interesses dominantes, mas jamais aniquilada. 'Tão certo como vive o Senhor…, habitarão na sua terra. Não é uma esperança fácil. Sabemos que as forças que provocam a necessidade social que leva à migração, ainda não se deterão. Itaipu é um sinal; as barragens previstas para a bacia do rio Uruguai inserem-se num plano global de transformar o Sul do país num sofisticado parque industrial, deslocando massas de pequenos agricultores para novas áreas de colonização, ou transformando-as em mão-de-obra pauperizada para as novas indústrias. Tudo isso inserido num projeto econômico continental (v. acordos Brasil – Argentina). Vivemos num cativeiro em que os falsos profetas clamam paz-paz, mas não há paz.

Não seria de desesperar? Neste domingo a comunidade cristã festeja o início da época do Advento; solidária com aqueles que vão, lembra-se daquele que vem. Ora com ele: Venha o Teu reino. E recebe nele, irmão dos desterrados, a graça de viver e de lutar. Há esperança. Por todo o Brasil, comunidades e lavradores (e também não lavradores, mas com eles solidários) se encontram em Cristo para celebrar a fé e ser testemunhas vivas das promessas proferidas em Jeremias. Conjugam esforços, resistem às pressões, defendem a terra, reivindicam participar no planejamento de sua sorte social. Habitarão na sua terra.

A comunidade cristã celebra este advento com gratidão, expectativa e disposição para lutar. Profere sua confissão de fé, novos credos da mesma fé de Israel ao sair do Egito, de Jeremias ao anunciar o direito e a justiça, sobretudo de Jesus ao ousar a renúncia aos poderes para viver o amor de Deus, trazendo libertação.

A pregação poderia seguir o seguinte esquema:

1. Situação de opressão e desespero (exemplificada na migração);

2. a promessa de Deus
(pelo anúncio de Jeremias);

3. o direito e a justiça
(como expressão da realidade que aguardamos e buscamos);

4. o advento de Cristo e o nosso seguimento
(como gratidão pela dádiva de Cristo e disposição de assumir seu discipulado).

Se não inserido na liturgia do culto, a pregação poderá encerrar com um credo da atualidade, talvez de formulação própria, se possível comunitariamente (grupo de reflexão).

Vos sós el Dios de los pobres
el Dios humano y sencillo
el Dios que suda en Ia calle
el Dios de rostro curtido
Por eso es que te hablo yo
asi como habla mi pueblo
porque sós el Dios obrero
el Cristo trabajador.
(Da Missa Camponesa Nicaragüense, apud Assmann, p.266)

IV – Bibliografia

– ASSMANN, H. La fé de los pobres en lucha contra los Ídolos. In: La lucha de los dioses. Los ídolos de Ia opresión y Ia búsqueda dei Dios Liberador. San José, 1980.
– CASALDÁLIGA, P. Creio na justiça e na esperança. Rio de Janeiro, 1978.
– CONGRESSO INTERNACIONAL ECUMÊNICO DE TEOLOGIA. Eclesiologia das comunidades cristãs populares. In: Serviço de Informação Pastoral. Ano 4. Caderno 18. (Juiz de Fora) 1980.
– VON RAD, G. Teologia do Antigo Testamento. Vol. 2. São Paulo, 1974.
– SCHUMANN, B. Um Credo para nossa época: Existe isto? In: Estudos Teológicos. Ano 12. Caderno 2. São Leopoldo, 1972.
– WEISER, A. Das Buch Jeremia. Kapitel 1-25,14. In: Das Alte Testament Deutsch. Vol.20. S.ed. Göttingen, 1966.

Proclamar Libertação 6
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia