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Prédica: Lucas 3.1-14
Autor: Ricardo Nör
Data Litúrgica: 3º. Domingo de Advento
Data da Pregação:14/12/1980
Proclamar Libertação – Volume: VI
Tema: Advento

O ARREPENDIMENTO E O QUE VEM DEPOIS DELE

I – Observações em torno do texto

A mensagem de João Batista concentra-se no chamamento ao arrependimento, diretamente relacionado com a proximidade iminente do fim e o batismo. Com base nestes três pontos — conversão, juízo, batismo — se desenvolve toda a sua atividade profética.

É importante observar inicialmente que João Batista, segundo a compreensão histórica do evangelista Lucas (ao contrário de Mateus e Marcos), está enquadrado no período da antiga história da salvação como o último dos profetas: A lei e os profetas vigoraram até João; desde este tempo vem sendo anunciado o evangelho do reino de Deus (16.16). Apenas com Jesus passa a vigorar o novo período salvífico. Durante o tempo de sua atuação, o reino de Deus é antecipado de forma clara e evidente.

Para João Batista, portanto, vale a ira vindoura (v.7), o juízo, a condenação, a lei. A dimensão da graça e do perdão, revelada pelo evangelho, ainda é inacessível.

Interpretando-se a partir de Ezequiel 36.25ss, o batismo de João vincula-se com a primeira parte desta profecia (v.25), com o banho purificador com água. A renovação do homem pelo Espírito, o coração novo (v.26), por sua vez, terá a sua concretização em Cristo. Dentro desta perspectiva, o batismo de arrependimento de João é sinal que aponta, em forma de promessa, para a graça e o perdão de Deus a ser revelado e efetivado em Jesus na cruz.

O ato de deixar-se batizar confere ao arrependimento um caráter passivo que indica para a misericórdia de Deus. Isto é, o batismo de João torna possível o arrependimento. Sem ele, a conversão não passaria de iniciativa humana com o propósito de resguardar-se da condenação. O fator determinante é que a realização e consumação do perdão estão em Deus. O arrependimento, por si só, não possibilita o perdão. Assim, o batismo de João tem por objetivo preparar os homens para o batismo de fogo (v. 16) e preservá-los do mesmo.

O profeta recebe a tarefa de preparar o caminho do Senhor (v.4, cf. Is 40.1-11). Ele virá, sem dúvida! Nada e ninguém o impedirá (v.5). Todos verão a salvação de Deus (v.6). Sob o prisma do Deus salvador que vem, também como juiz, a única atitude possível é o arrependimento — exigência que se estende a todos, sem exceção.

Arrepender-se, METANOEIN, não expressa apenas mudança do modo de pensar ou melhoramento moral. Relaciona-se com o termo hebraico SUB que significa voltar-se, inverter a direção, indicando portanto a mudança de atitude.

Uma de suas consequências está no ato de desprender-se de garantias de salvação ou segurança religiosa. No caso dos judeus, nem mesmo a filiação a Abraão pode se constituir em aval ou penhor do julgamento. João exemplifica: o juízo é tão iminente e certo como o machado já colocado à raiz das árvores. Não há como escapar. Diante desta realidade não existe outra alternativa a não ser produzir frutos dignos do arrependimento (v.8). Assim como a árvore que não produz bom fruto precisa ser transformada, também é imprescindível que aconteça uma transformação radical no procedimento humano.

A exemplificação da pregação de João Batista encontra-se na parte final da perícope (w.10-14). Com vistas à manifestação da ira de Deus prestes a acontecer, a pergunta «e impõe: Que havemos, pois, de fazer? Através de três cenas rápidas, focalizando diferentes situações e grupos de pessoas, são mostrados os frutos do arrependimento que podem ser resumidos no mandamento do amor.

II – Meditação

A pregação de João Batista é dura. O seu caráter radical não deixa margem para dúvidas: somos colocados contra a parede e é impossível ficar de pé. O confronto com a mensagem do profeta impede que se recorra a garantias de qualquer espécie: étnicas, religiosas, morais.

Para os judeus não havia padrinho melhor do que o pai Abraão. Pensavam que era só valer-se da sua descendência do patriarca que a situação diante de Deus se ajeitaria ao natural. Puro engano. Frente ao juízo que está à porta todos se encontram sozinhos e desarmados. João Batista desmascara a pretensão de se querer passar são e salvo pelo julgamento, servindo-se de antepassados ou tradição.

Também nós somos tentados sempre de novo a fazer uso de diferentes argumentos e justificativas com o objetivo de obter garantias diante de Deus. Recorremos ao fato de pertencermos à família luterana, filhos do pai Lutero, herdeiros da redescoberta do evangelho. Não procuramos tirar daí méritos que nos assegurem pontos que, no final de contas, necessariamente terão que pesar na balança em nosso favor?

Mas a mensagem de João é categórica e inequívoca. Ao se fazer um reconhecimento sóbrio e honesto da nossa situação eclesiástica e individual, temos que admitir o nosso fracasso e desistir de quaisquer reivindicações. Não existe outro posicionamento possível, à luz daquele que está por vir, a não ser o renovado arrependimento, o desprendimento de toda e qualquer segurança.
Precisamos ouvir a pregação de João Batista em toda a sua extensão e radicalidade. As suas palavras são surpreendentemente simples e claras: quem tem duas peças de roupa, dê a quem não tem. O mesmo vale para a comida. Sem meias palavras, João aponta também para a prática da extorsão e exploração daqueles que cobram acima do estipulado. Igualmente é direto com relação aos espancamentos policiais e delações falsas.

O profeta está falando para dentro da nossa situação atual! Vivemos em um estado de coisas marcado por injustiça de toda ordem, onde as diferenças sociais se agravam cada vez mais e a corrupção é generalizada. Mesmo uma avaliação superficial da realidade permite perceber as distorções existentes. Basta andar pelas ruas de qualquer cidade ou por estradas do interior e ver como as pessoas estão vivendo.

Com base na realidade dada se poderia discorrer longamente: descrever situações de injustiça, levantar dados, fazer estatísticas, etc. Sem dúvida, a análise sociológica é necessária como instrumental de trabalho para que se tenha uma visão mais clara e objetiva do todo. Mas o que importa de fato é deixar que as palavras do profeta penetrem em nós e nos levem a parar e inverter o rumo da nossa existência. Falamos muito, esquematizamos grandes programas sociais, publicamos manifestos e declarações de impacto, e ficamos por isto mesmo. Usamos de todas as fundamentações e artifícios possíveis e imagináveis para evitar uma tomada de posição libertadora. Somos mestres em descobrir maneiras para tirar o corpo fora, para fugir de um comprometimento consequente. Em uma palavra: falta a ação correspondente, ou melhor, falta o arrependimento sincero.

Não há outra saída a não ser arrepender-se – e produzir frutos. Frutos que brotem de dentro, de uma reviravolta nos critérios que determinam o nosso relacionamento com os outros e que resultem numa mudança das formas existentes de convivência humana.

Esta transformação não é produto de nós mesmos, resultado dos nossos esforços. É presente de Deus através do Espírito! Ele mesmo deve realizar o que para nós é impossível. Esta afirmação não tem por objetivo esvaziar o conteúdo forte das palavras do profeta. Ela impede, isto sim, que o arrependimento seja entendido de forma legalista. Aqui entra em questão o significado do batismo de João (conforme as observações do texto).

A pregação de João Batista, como um todo, se desenvolve sob o enfoque do juízo. Também a comunidade cristã confessa todos os domingos que Cristo virá para julgar os vivos e os mortos. A dimensão escatológica é componente básica da fé. Será, porém, que levamos suficientemente a sério o juízo de Deus? Não é assim que já domesticamos a ira vindoura? Principalmente nós, que insistimos na justificação pela fé, corremos o perigo de passarmos ligeiro demais por cima do juízo para nos escondermos atrás da graça. Na verdade, a graça que não considera todo o peso da lei e da condenação, se reduz fatalmente a graça barata.

III — Indicações para a prédica

O terceiro domingo de Advento coincide este ano com o Dia da Bíblia. A comemoração desta data pode adquirir um caráter significativo se for aproveitada, não para uma exaltação da Bíblia como objeto de adoração (já sobe a mais de uma centena o número de monumentos à Bíblia no país…), mas para anunciar o que a Bíblia de fato é: anúncio da ira vindoura (v.7) e da salvação de Deus (v.6). Em outras palavras: exigência e juízo de Deus expresso na lei, e oferta da graça e perdão manifesto no evangelho.

Dentro deste contexto é possível desenvolver a pregação do presente texto, considerando-se também a época de Advento (tempo de preparação em que somos lembrados de maneira especial do Senhor que vem), bem como a divisão histórica do evangelho de Lucas que coloca João Batista no tempo da lei e dos profetas.

A rigor, toda a pregação deveria conter os dois aspectos fundamentais da revelação bíblica: lei e evangelho. Para Lutero, toda a Escritura precisa ser interpretada a partir da correlação de ambos. Só assim é possível compreender corretamente a palavra de Deus. Juízo e salvação devem ser adequadamente relacionados, sob o risco de nos emaranharmos na lei que leva à condenação ou de perdermos a mensagem evangélica da graça e do perdão. Se eu quiser entender a plenitude da lei, isto é, Cristo, torna-se necessário saber o que seja a lei e sua plenitude. (Lutero)

A mensagem de João Batista faz parte da lei. Para ele vale a radicalidade do juízo e o chamamento ao arrependimento. Este deve ser também o acento da pregação, não para provocar medo nos ouvintes, mas para possibilitar a compreensão correia da exigência da lei. A dimensão da graça fica como possibilidade aberta a ser dada ou negada por Deus.

IV – Bibliografia

GOPPELT. L. Teologia do Novo Testamento. Vol. l. São Leopoldo/ Petrópolis, 1976.
RUPRECHT. W. Meditação sobre Lucas 3.1-9. In: Calwer Predigthilfen. Vol.7. Stuttgart, 1968.
Sugestão para leitura complementar: IWAND, H.J. Lei e Evangelho. In: A Justiça da Fé. São Leopoldo, 1977.

Proclamar Libertação 6
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia