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Prédica: Mateus 14.22-33
Autor: Valdemar Lückemeyer
Data Litúrgica: 4º Domingo após Epifania
Data da Pregação: 01/02/1981
Proclamar Libertação – Volume VI
 

I — Contexto

Há muita semelhança, nos evangelhos, na sequência dos relatos que encontramos em Mt 14. Observando especificamente Mt 14.22-33, temos antes a primeira multiplicação dos pães, o que também se pode ver em Mc e Jo. Jesus se encontra nas redondezas do lago de Genezaré (Mt 14.13,34) e, abatido com a notícia da morte de João Batista, procura ficar só. A multidão, no entanto, o encontra. Após ter curado os enfermos e saciado cerca de cinco mil homens, Jesus ordena a seus discípulos que atravessem o lago, enquanto ele despede a multidão, pois era tarde.

O que se dá, então, passa-se apenas entre Jesus e os seus discípulos. Este grupo tem experiências mais profundas com o Senhor e chega a conhecê-lo melhor.

A multidão, no entanto, continua sendo ajudada; os que são de fora também recebem auxílio — isto nos mostram os vv. 34-36.

II — Considerações exegéticas

É possível que o pano de fundo desta nossa perícope tenha sido a aparição de Jesus a Pedro após a Páscoa. Tanto Paulo (l Co 15.5) quanto Lucas (Lc 24.34) dizem que Jesus aparecera a Pedro e não temos nenhum relato deste primeiro encontro. Conforme Jo 21.7s Pedro se lança no mar e nada ao encontro do ressurreto. Uma resposta clara a esta hipótese não há, mas é possível que Mt tenha remodelado este encontro, inserindo-o no transcorrer da vida de Jesus, antes da sua crucificação. Em todo caso, Mt deixa claro que o presente está sob o senhorio do Jesus exaltado. A comunidade de Mt logicamente vive do Cristo presente em seu meio (18.20;28.20), ela tem a promessa da sua assistência (cf. 8.23ss). mas ela também olha para trás, ao mestre Jesus de Nazaré, recordando e guardando as suas palavras e vivendo de acordo com as mesmas. (Brakemeier, pp. 15-16)

Os evangelhos relatam, de uma ou de outra forma, seis vezes que Jesus acalmou uma tempestade. Ou, para dizê-lo de uma forma mais ampla e mais correta, encontramos seis relatos sobre uma experiência que os discípulos tiveram com Jesus no mar (Mt 8.23-27 e paralelos e o nosso texto e seus paralelos). Uma vez (Mt 8.23-27) Jesus está com os discípulos no barco, e outra vez (Mt 14.22-23) vem caminhando por sobre as águas ao encontro do barco em dificuldades. Observando o nosso texto, podemos ver uma diferença fundamental entre Mt e os outros dois relatos paralelos. Esta diferença, o que aliás é o específico de Mt, transparece em três pontos, a saber: a) Pedro caminha sobre as águas; b) há um diálogo entre Jesus e os discípulos; c) os discípulos expressam uma confissão cristológica.

Mt gosta muito de ressaltar o fato de que alguém dá ordens (8.18; 14.9; 14.19; 27.58), como aqui Jesus ordena (= compele) os discípulos a embarcar. O discípulo não age por conta própria e nem procura seguir seus próprios caminhos e desejos, evitando inclusive especulações, mas segue a ordem do seu Senhor.

Os discípulos são enviados sozinhos para atravessarem o lago (= mar) e o objetivo é alcançar a outra margem. Durante a viagem, quando o barco já está a muitos estádios da terra (l estádio = cerca de 200 metros), surge o imprevisto: dificuldades com vento contrário, ondas fortes, e tudo isso, de noite. Tudo o que se desenrola tem a ver exclusivamente com os discípulos, com os que estavam no barco, v.33; as multidões desta vez estão longe. Importante, porém, é observar que Mt não fala da dificuldade dos ocupantes do barco, mas da dificuldade do próprio barco. Este é que é varrido e açoitado pelas ondas. O barco é a comunidade. Os que estavam no barco, v.33, são os que depois adoram Jesus. Mt usa o milagre — de Jesus andar sobre as águas — como motivo, quase como desculpa, para expressar suas ideias eclesiológicas. A história deste barco é a história da igreja. O que acontece com o barco, pode e até deve acontecer com a igreja (= comunidade).

A este barco que foi enviado por Jesus, o Senhor se revela como Salvador nos momentos de afobação e medo. ME PHOBEISTHE = nada de afobação, não tenham medo, porque sou eu. Os discípulos, embora já tivessem presenciado muitos sinais de poderio de Jesus – um, inclusive, poucos momentos antes – não podiam entender que era ele que estava perto deles. Se és Tu, Senhor… – isto chega a soar como um pedido de prova! Estes ocupantes do barco sempre entram em dúvida, em pânico, em afobação quando estão sem o seu Senhor ou também quando pretendem resolver tudo por conta própria: Senhor, salva-nos! perecemos. (8.25) Despede as multidões; temos apenas cinco pães e dois peixes. (14.15-17) Onde haverá neste deserto tantos pães…? (15.33) Então os discípulos todos, deixando-o (= preso) fugiram. (26.56) Ao enviar esses mesmos discípulos para todas as nações, para dentro do mundo, Jesus lhes assegura sua presença constante, todos os dias (Mt 28.19-20).

Pedro, com todas suas qualidades positivas e negativas, deve servir mais uma vez de exemplo para os demais. Mt destaca seguidamente a ação ou reação deste discípulo diante das mais diversas etapas em que se desenvolve o discipulado na sua vida! Aqui é atendido o seu pedido exótico. O que Jesus espera é somente obediência ao chamado, não importando em que situação este chamado venha a ocorrer. A partir do momento em que o Senhor chama, o discípulo tem apenas um caminho a seguir. A dú-vida ( = duas vias) é manifestação de falta de confiança e obediência a um só caminho, e por isso é fé pequena. A fé pequena aqui não é a fé como um grão de mostarda (Mt 17.20), mas é fraqueza de fé, falta de confiança. A acusação homens de pequena fé (Mt 8.26; 16.8) mostra um fracasso e espera por uma obediência nova, maior, ou seja, total. A obediência total ao chamado de Jesus, mesmo em dificuldades e adversidades, não se deixará persuadir. Por outro lado, também é preciso perguntar onde há fé sem tentação. A realidade que cerca o discípulo pode levá-lo a ser um homem de pequena fé, mas o que não pode faltar, mesmo em última instância, é o grito Salva-me, Senhor!. Não é esta a maior expressão de fé de Pedro? Clamar ao Senhor, esperar auxílio somente dele, saber que ele estenderá sua mão: eis o salmista orando e expressando sua fé (SI 18.16; 69.1; 144,7) e eis Pedro contando unicamente com o auxílio do Senhor!

É interessante que a doxologia expressa pelo discípulos vem só agora; afinal, eles já tinham presenciado outros feitos extraordinários de Jesus, anteriormente. Aqui, no entanto, fica claro que o louvor é uma consequência; a fé reconhece algo e este reconhecimento se expressa no louvor dos que estão no barco.

Mt não fala de heróis de fé, mas de pessoas que, seguindo ordens e ouvindo o chamado de Jesus ( = discipulado), reconhecem que ele é Filho de Deus, que ele é o Senhor, em meio às ameaças externas (mar e vento) e internas (dúvida,e fé pequena).

III – Pensamentos para a prédica

— Pessoas que hoje estão ou que embarcam no navio ( = comunidade) devem saber que a outra margem ( = o Reino de Deus) ainda não foi alcançada. Por isso é necessário remar.

— A tranquilidade exagerada de uma comunidade pode ser um reflexo de sua acomodação e isto vai radicalmente contra o seu ser. Não pode haver comunidade ancorada às margens do mundo!

— O discipulado é cheio de expectativas e adversidades. O membro, e isto vale sempre para a comunidade toda, que não é abalado em sua fé deve ver se ele não se encontra refugiado num castelo forte, ao invés de estar no mundo, este mundo cheio de riscos e demônios.

— O olhar e os ouvidos devem estar atentos para o Senhor que ordena, que chama e que estende sua mão. A comunidade não pode estar preocupada com os seus caminhos, mas deve estar preocupada com o caminho indicado pelo Senhor — o que nem sempre é a mesma coisa!

– A comunidade não é o agrupamento de pessoas que são verdadeiros heróis de fé (e deve-se ter um cuidado enorme para não criá-los!), mas de pessoas aparentemente fracassadas na fé, que podem fracassar, que sabem arriscar simplesmente por obediência ao chamado.

— A comunidade tem a garantia de não precisar enfrentar os ventos contrários sozinha; o seu Senhor estará a seu lado, estendendo-lhe a mão para que não afunde.

– As dificuldades não podem fazer com que a comunidade recue; ela deve lutar e ficar no campo de batalha que é o seu mundo.

IV – Esboço (resumido) da minha prédica sobre o texto

l . A vida da nossa (minha) comunidade
Tudo tranquilo, em paz?
Por que pertenço a esta comunidade? Ela exige muito
ou pouco, quem sabe até nada, de mim?
Há desafios e tarefas ou só minha alma recebeu todos
os cuidados?

2. Leitura do texto
Que tipo de comunidade é mostrada neste texto

3. Comunidade – os que são enviados
Os ventos contrários – exemplos que culminam com afirmações como O que a Igreja tem a ver com isso?;
O que esta diretoria está querendo agora?; Aqui não
precisamos mudar nada, sempre foi muito bem assim!;
Fulano nunca foi assim — que está dando nele?.
O Senhor dá ordens que desafiam.
Sabemos arriscar ou calculamos tudo?

4. A ordem de hoje: Ide! (para dentro da nossa vila, cidade, país). Os enviados não estão sós.
Louvor = o reconhecimento.

V – Bibliografia

– BRAKEMEIER, G. Observações Introdutórias Referentes ao Evangelho de Mateus. In: Proclamar Libertação. Vol. 2. São Leopoldo, 1977.
– FUNKE, A. Meditação sobre Mateus 14.22-23. In: Calwer Predigthilfen, Vol.7. Stuttgart, 1968.
– SCHWEIZER, E. Das Evangelium nach Matthäus. In: Das Neue Testament Deutsch. Vol.2. 14.ed. Göttingen, 1976.

Proclamar Libertação 06
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia