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Prédica: Lucas 17.7-10
Autor: Gottfried Brakemeier
Data Litúrgica: Domingo Septuagesimae
Data da Pregação: 15/02/1981
Proclamar Libertação – Volume: VI
 

I – Pregar escravidão?

O texto proposto para este domingo parece fazer o contrário de proclamar libertação. Jesus exorta seus discípulos a se considerarem escravos de Deus sem direito a recompensa ou gratidão. … depois de haverdes feito quanto vos foi ordenado, dizei: Somos servos inúteis, porque fizemos apenas o que devíamos fazer. (v. 10) Uma pequena parábola é usada como ilustração (v.7-9). Em termos da época, descreve o total compromisso do escra¬vo em contraste com o total descompromisso do senhor. Porventura (= o senhor) terá que agradecer ao servo por este ter feito o que lhe havia ordenado? (v. 9) A resposta esperada é: claro que não! E Jesus conclui: Assim também vós… Os discípulos não passam de humildes escravos, cujo único direito consiste em trabalhar e servir.

É preciso perceber o escândalo neste texto a fim de evitarmos superficialidades perigosas. Certamente é fácil dizer-se escravo de Deus. Soa bem como expressão de simpatia humilde. Mas ser escravo de Deus, consumir-se no serviço sem jamais esperar um sinal de gratidão ou reconhecimento – quem o aguenta? Por acaso somos robôs que não ligam a estas coisas? Tudo parece ser problemático neste texto:

1. Problemática é a imagem de Deus aqui traçada. Será verdade que ele explora os seus servos ao máximo, exigindo-lhes ainda a confissão de não serem dignos de agradecimentos? Deus, como patrão desumano, proprietário de escravos, brutal egoísta — tal imagem provoca revolta. Ela agride tudo o que temos aprendido com respeito à bondade de Deus.

2. Problemático é o modelo social de que aqui se fala. É uma sociedade de classes: escravos de um lado, senhores de outro. Naturalmente, esta era a estrutura social no tempo de Jesus. Mas por que ele não a critica? Muito pelo contrário, parece apoiá-la. Pressupõe que cada um, tendo um escravo, age do mesmo modo como o senhor da parábola. Onde fica a humanidade, o amor, a justiça? Desnecessário dizer como é perigoso pregar acriticamente sobre este texto no Brasil de hoje: ele poderia ser entendido como legitimação das hierarquias sociais, do domínio de uns sobre os outros e da exploração. É realmente assim que Deus chama uns para serem senhores e outros para serem escravos?

3. E finalmente é problemática a maneira de aqui se encarar o cristão. Essa abnegação radical, essa degradação ao nível do escravo, essa obediência absoluta que dele se exige, parecem ser anacronismos numa época que apregoa a dignidade do ser humano, sua participação responsável, sua autonomia. Se ser cristão se resumir em dependência, escravidão, humilhação – quem ainda entusiasmar-se-á com a fé e quem ainda decidir-se-á a favor do discipulado?

O texto parece não ter evangelho. Entretanto, antes de desprezá-lo e declará-lo imprestável, deveríamos procurar compreendê-lo. Os textos mais difíceis, às vezes, são os mais libertadores. Porventura, Jesus se contradiz a si mesmo, falando de Deus uma vez como Pai que perdoa a seu filho pródigo e outra vez como quem não repara no serviço que lhe é prestado? O que Jesus quer dizer?

II – Observações exegéticas

O trecho em apreço (Lc 17.7-10) pertence à tradição exclusiva do terceiro evangelho. Insere-se numa coletânea de pronunciamentos de Jesus (17.1-10), agrupados pelo evangelista e dirigidos, em sua forma atual, aos discípulos. Trata-se, pois, de instrução à comunidade. São quatro os assuntos abordados: vv. 1+2 – uma advertência no sentido de não escandalizar os pequenos; vv. 3+4 – sobre o compromisso de perdoar ao irmão arrependido; vv. 5+6 – sobre o poder da fé; vv. 7+10 – sobre o salário do escravo. A se¬quência dos assuntos causa a impressão de ser acidental. Ainda assim pode¬mos divisar um nexo lógico, especialmente entre os vv. 5+6 e vv. 7+10: fé, ainda que seja pequena como grão de mostarda, é poderosa. Arranca árvores e as transplanta para o mar. Em outros termos: fé transforma o mundo. Mas, justamente esta fé que tem sucesso e é eficaz nos seus atos, precisa ser lembrada que tudo que faz não é senão humilde serviço sem direito a homenagem e glória, (cf. Iwand)

Com isto já dissemos que os w. 7-10 têm caráter polêmico. Jesus se volta contra o anseio humano por sobressair, gloriar-se de suas obras, fazer reivindicações à base de supostos méritos. Não sabemos se estas palavras foram dirigidas originalmente aos fariseus e seus semelhantes, hábeis em tocar trombeta diante de si (Mt 6.2) para garantir a devida publicidade às suas obras, ou se elas desde o início se endereçavam aos discípulos. A questão é irrelevante. O farisaísmo é perigo do judeu, do cristão, de todo homem. E a advertência de Jesus é tão atual hoje como antigamente.

Aliás, os próprios rabinos sabiam do perigo, como o observamos numa palavra do rabi Johanan: Se praticaste muita torá, não te glories, pois para isto foste criado. A comparação com este paralelo judaico revela forte convergência com as intenções de Jesus. Simultaneamente, porém, cai em vista que Jesus é bem mais rigoroso, drástico e duro na sua afirmação. Isto se explica a partir do horizonte teológico, dentro do qual a palavra de Jesus deve ser compreendida e que não é exatamente o mesmo em ambos os casos — como ainda havemos de mostrar.

Os vv. 7-10 se compõem de duas partes claramente distintas. Vv.7-9 apresentam uma parábola, o v. 1-0 traz a explicação. A parábola fala de um senhor, pequeno agricultor, possuindo apenas um escravo que deve fazer o trabalho de campo e o de casa. Não se trata, pois, de um sujeito muito rico. Mas não é isto que interessa. Importante é que Jesus pressupõe haver concordância entre os seus ouvintes no sentido de o escravo estar aí para servir e não para ser servido. Assim também os discípulos em relação a Deus: se cumpriram os mandamentos de Deus, continuam sendo pobres escravos, porque somente cumpriram o seu dever. A tradução servos inúteis, aliás, não é boa. O termo grego ACHREIOS não quer dizer que o servo não tem valor. Ele tem o seu valor, assim como também o seu trabalho não é inútil. ACHREIOS significa pobre, indigno, é expressão de humildade. (J. Jeremias) Apesar das coisas úteis que fez, o servo não tem como reclamar algo de seu senhor.

Voltamos a perguntar: Será isto descrição adequada da relação entre Deus e seus servos? Duas observações são interessantes, neste contexto:

1. Na antiguidade, os donos dispunham de meios para forçar a obediência dos escravos. A polícia castigava duramente quem se rebelasse contra os senhores. Quais, porém, são os meios de pressão de que Deus dispõe para garantir a obediência dos homens? O Deus de Jesus não coage. Se tem escravos, não é porque os tivesse comprado com ouro e prata, mas com o preço da vida de seu Filho (cf. I Co 6.20; 7.23; etc.). Deus oferece amor como motivação para servir-lhe. Isto não é dito nesta parábola, mas constitui o seu pano de fundo.

2. O escravo não tem outra alternativa a não ser obedecer. Mas, quais seriam os escravos que dizem: Somos servos indignos, porque fizemos apenas o que devíamos fazer.? Tais palavras pressupõem uma disposição incapaz de ser produzida pela violência institucionalizada do sistema escravista. Assim só se fala, onde amor com amor se paga, onde se reconhece como justa a exigência do senhor, onde o escravo sabe ter uma dádiva impagável.

Essas observações evidenciam que a figura do senhor e do escravo, no fundo, é inadequada para descrever a relação entre Deus e os que nele crêem. Por essa razão, prevalece no Novo Testamento a figura do Pai e dos filhos. O nosso trecho certamente seria mal interpretado, se dele deduzíssemos instruções sobre a natureza de Deus e seu comportamento em relação aos homens. O Pai de Jesus é o contrário do explorador. Todavia, também a figura do escravo e do senhor (KYRIOS!!) permanece tendo o seu direito. Ela ressalta perspectivas importantes e se torna relevante em duplo sentido:

1. A figura é válida como palavra polêmica contra o ufanismo. Quem és tu, homem, diante de Deus? Mesmo se cumpriste à risca os mandamentos divinos, mesmo se foste um exemplo de fé, moral e sacrifício, não passas de humilde escravo que apenas fez o que devia. Por acaso, Deus tem dívidas contigo? Portanto, a palavra de Jesus derruba, fere o orgulho, dói. Não queremos ser escravos, queremos ser senhores. Os dez mandamentos, porém, são introduzidos assim: Eu sou o Senhor teu Deus… (Ex 20.2) Se Deus é Senhor, quem então somos nós? Jesus aqui se dirige àqueles que transformam Deus em amigo particular sempre disposto a dar desconto, em aliado que me ajuda a culpar os outros, naquele ser meigo e doce incapaz de proferir palavra dura. Não! Deus exige, tem direitos! Deus é Senhor, não companheiro ou cúmplice. É o Criador, não boneco manipulável. Diante dele temos outros direitos que não os de escravos?

2. Por isto mesmo, a figura é válida também como confissão. E é a tal confissão que Jesus, nestes versículos, quer motivar seus discípulos. Assim também vós, depois de haverdes feito quanto vos foi ordenado, dizei… Toda a atenção está concentrada na pergunta como o discípulo de Jesus deve compreender-se, respectivamente, o que deve confessar com respeito a si mesmo. A resposta adequada é: estamos de tal maneira endividados com Deus, comprometidos com ele, que todo nosso trabalho é insuficiente para saldar o que devemos. A humildade do escravo é a única atitude condizente em relação a Deus (e por isto também em relação aos homens). Quem deveria saber disto melhor do que o discípulo de Jesus? Justamente porque Deus não agiu e age para conosco como agem senhores humanos, justamente porque ele não oprime, força e explora, mas antes tudo deu, a vida, o perdão, o seu amor, justamente por estas razões estamos comprometidos com o serviço a ele, sabendo que nada nos compete exigir. O que nos compete é dar-nos integralmente (cf. Rm 12.1 + 2). O trecho Lc 17.7-10 afirma enfaticamente o sola gratia. O que nós somos, nós o somos pela graça de Deus (1 Co 15.10), não por esforço próprio. É o amor de Deus que nos constrange (cf. 2 Co 5.14), é ele que nos escravizou. Por isso toda vanglória torna-se nos impossível (cf. Rm 3.27) e confessamos: Servos indignos somos, porque fizemos apenas o que devíamos fazer (e muitas vezes não fizemos nem isto!).

III – Meditação

Sob a perspectiva exposta, o texto paradoxalmente não prega servidão, mas libertação, pois:

1. Somente o escravo de Deus é livre neste mundo. Escravos de Deus não podem ser escravos de outros. A atitude do apóstolo Paulo o exemplifica: A autodenominação servo de Jesus Cristo (Rm 1.1; Gl 1.10; Fp 1.1) é, a um só tempo, expressão de humildade e de autoridade. Frente a ataques, Paulo reage ressaltando a sua dependência de Cristo, respectivamente de Deus (cf. Gl l.lss). Assim também acontece com o pastor em paróquia e com o cristão no mundo: somos tanto mais livres quanto mais estivermos comprometidos com Deus (cf. também Rm 6.18).

Essa liberdade manifestar-se-á em atitudes críticas frente a pessoas, estruturas, instituições, programas, ideologias, sistemas, etc. Quem é servo de Deus, não se deixa encampar, levar de roldão, não se deixa escravizar. Fará assim como recomenda o apóstolo Paulo: examina todas as coisas, e retém o que é bom (l Ts 5.21). Certamente atitude crítica não é sinônimo de permanente oposição. Mas é aquele exame criterioso das coisas com o objetivo de denunciar o pecado e se engajar na prática do bem. Simultaneamente, porém, devemos sublimar que o escravo de Deus resiste a escravizar os seus semelhantes. Ele é livre neste mundo, sim! Entretanto, não usa a liberdade por pretexto de malícia (l Pe 2.16). Se só Deus é Senhor, não posso ser o senhor do meu próximo. … um só é vosso Mestre, e vós todos sois irmãos. (Mt 23.8) Livre é aquele que desiste de querer dominar os outros.

2. Como escravos de Deus somos livres da necessidade de nos projetar, de sobressair, de sermos aplaudidos. Verdade? O nosso mundo seria diferente se esta maldita necessidade não existisse. Não haveria aquela louca correria por status, por um lugar ao sol, por poder, não haveria o culto às novas bossas, não haveria aquela infernal disputa por prestígio. Quanta energia é gasta, neste nosso mundo, por um pouco de projeção, por uma menção nos jornais, quanto esforço empreendemos por um triunfo por sobre outros. O problema é: quem monopoliza a luz do sol, condena outros a viver na sombra. Mais ainda: a necessidade de projeção nos faz hipócritas. Precisamos aparentar algo que não somos. Precisamos aparentar uma fé que não temos, sacrifícios que não fizemos, posição que não ocupamos. A necessidade de projeção nos faz injustos, cruéis nos nossos juízos, porque julgar os outros é uma maneira de ressaltar-se a si mesmo.

O escravo de Deus não tem necessidade de entrar nessa corrida por projeção. Deus, por acaso, já não nos deu dignidade suficiente? Ele não nos valorizou, declarando-nos sua propriedade no batismo? Naturalmente, também para o cristão é doloroso receber jamais uma palavra de agradecimento. A falta de gratidão entre os homens é sinal alarmante de quanto são escravos de si mesmos e de um sistema em que impera a lei da projeção. No entanto, o cristão não depende do reconhecimento de outros. Ele tem a liberdade de renunciar à gratidão e ao reconhecimento humanos. E esta me parece ser a renúncia mais difícil. Sob a perspectiva cristã é simpático aquele que não busca a publicidade, que não toca a buzina diante de si, que não faz caso de suas obras, que não se faz grande, que não procura a promoção própria. Vejamos o alerta de Jesus: … eles já receberam a recompensa. (Mt 6.2) Paradoxalmente, porém, Deus promete recompensa aos que desistem de exigir recompensa. Ele vai agradecer aos que dizem: Servos indignos somos, porque fizemos apenas o que devíamos fazer. Gratidão só recebemos como presente. Deus não tem o dever de agradecer a seus servos, mas ele o fará, se lhe deixarmos a liberdade para tanto.

3. Vivemos numa época em que muito se fala da necessidade de colocar sinais do reino de Deus neste mundo. E de fato, a Igreja que não é visível, traiu a sua missão. Não será a cidade edificada no monte que não pode ficar oculta (Mt 5.14). Mas, uma coisa é ser sinal, outra é querer colocar sinais. A vontade de colocar sinais está perigosamente próxima da vontade de se projetar. Onde está aí o limite? A situação, realmente, é desgraçada: esperam-se sinais da Igreja e dos cristãos. Pergunta-se: o que a Igreja fez? Os jornalistas precisam de fatos concretos, eles querem enumerar: a Igreja fez isto, isto e aquilo; fulano, por motivos cristãos, assim agiu e assim falou; estes são os sucessos da Igreja, estes os seus fracassos, estas são as suas obras. Que tentação!! Ainda temos a liberdade de renunciar à projeção? Quer me parecer que os sinais mais brilhantes serão sempre aqueles que começam a brilhar por si, as obras feitas em humildade, apontando para o sinal por excelência que é Jesus Cristo. A Igreja ou o cristão não deveriam querer colocar sinais, eles deveriam ser sinais pelo simples fato de serem escravos de Deus, e por isto livres neste mundo.

IV – Quanto à prédica

Pregar sobre este texto não é fácil. Pois é necessário explicar paradoxos, a saber: (1) Na humildade do servo de Deus está verdadeira grandeza humana. (2) Somente o escravo de Deus é livre neste mundo. (3) Promessa de recompensa tem somente aquele que for capaz de renunciar a ela. Talvez estes três pensamentos possam constituir o tripé, sobre o qual se assente a prédica. Vejam-se os subsídios acima, evitando-se o perigo (neste texto, especialmente grande) de pregar só lei e juízo. O texto é evangelho, boa nova.

Uma sugestão: o pregador poderia iniciar a sua prédica, mostrando o escândalo do texto que consiste em sua linguagem escravista. Isto poderia servir de introdução para evidenciar quão difícil de realizar é aquela humildade que nos compete diante de Deus. O exemplo de uma serva indigna, confessando que apenas fez o seu dever, poderia ser a mãe, cujo amor não mede esforços quando se trata da vida do filho, e que não trabalha para merecer dinheiro ou gratidão, mas simplesmente porque ama. Assim também nós… em relação a Deus. Este serviço, aliás, se manifesta em serviço ao próximo e será documentação de liberdade. Em suma, o objetivo da prédica deveria consistir em motivar a comunidade a confessar a sua humildade diante de Deus e o seu compromisso de lhe servir, o que expressa a gratidão da comunidade, se traduz em liberdade entre os homens e tem a promessa de bênção.

Bibliografia

– BLITT, H. Meditação sobre Lucas 17.7-10. In: Homiletische Monatshefte. Ano 50. Göttingen, 1974/75.
– FÜRST. W. Meditação sobre Lucas 17.7-10. In: Göttinger Predigtmeditationen. Ano 51. Caderno 11. Göttingen, 1962/63.
– GRUNDMANN, W. Das Evangelium nach Lukas. In: Theologischer Handkommentar zum NT. Vol.3. 6.ed. Berlin, 1971.
– IWAND.H.J. Meditação sobre Lucas 17.7-10. In: Predigtmeditationen. 2.ed. Göttingen, 1964.
– JEREMIAS, J. As parábolas de Jesus. São Paulo, 1976.
– LAUBACH, J. Predigtgespräche. Mainz, 1970.
– RENGSTORF, K. H. Das Evangelium nach Lukas. In: Das Neue Testament Deutsch. Vol.3. 6.ed. Göttingen. 1952.

Proclamar Libertação 6
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia