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Prédica: Gálatas 4.1-7
Autor: Gerd Uwe Kliewer
Data Litúrgica: Natal
Data da Pregação: 25/12/1983
Proclamar Libertação – Volume: IX
Tema: Natal

I – Procurando entender o texto

A perícope indicada abrange os vv. 4-7. Mas parece-me necessário, para uma interpretação correta, incluir os três primeiros versículos do capítulo.

Paulo escreve a comunidades surgidas entre os gentios. Nestas comunidades penetraram cristãos judaizantes que exigiam, além da fé em Jesus Cristo, a circuncisão e a observação da lei judaica, como condição da salvação. Além disso, questionam o apostolado de Paulo. Para horror do apóstolo, estes pregadores judaizantes conseguiram puxar muitos dos gálatas para o seu lado.

Paulo agora procura convencer os gálatas de que a sua situação é completamente diferente da dos antigos judeus; que os pressupostos mudaram com a vinda de Cristo; que a circuncisão e a observância da lei nada adiantam para obter a salvação, mas representam o regresso para um estágio já superado. E esse regresso coloca em risco a salvação que têm em Cristo. Eles vivem numa condição nova, e nessa condição — e só nela — são herdeiros das promessas de Deus.

O conceito de rudimentos do mundo, no v. 3, apresenta alguma dificuldade. No texto original lemos STOICHEIATOU KOSMOU, que pode ser traduzido com rudimentos, elementos, princípios do mundo. Trata-se de uma espécie de culto religioso dos gálatas? Ou das leis da natureza, pensadas como divinas? Ou das leis desse nosso mundo caído? H. Schlier propõe: Sob os STOICHEIA TOU KOSMOU deve entender-se, segundo o contexto de Gálatas e Colossenses, os elementos do mundo como seres ou entidades que, com a autoridade de poderes divinos e angelicais, fazem certas exigências aos homens e exigem adoração religiosa. (Schlier, p. 192) O Dicionário Enciclopédico da Bíblia, sob o verbete Elementos, apresenta, entre outras interpretações: … os princípios religiosos rudimentares em que a humanidade fora de Cristo se baseia e que, em comparação com o que nos foi dado em Cristo, são muito imperfeitos. Está claro que os rudimentos do mundo fazem parte do passado religioso e ideológico dos gálatas, e que envolvem algum tipo de observância e legalismo. o que leva Paulo a tratá-los no mesmo nível da lei judaica.

O conceito de plenitude do tempo no v. 4, não deve ser sobrecarregado de significado, no sentido de se ver nele uma condensação, detectável por nós, dos acontecimentos históricos. É nada mais que a data que Deus Pai, na sua vontade soberana, fixou para a maioridade do herdeiro.

Paulo é de opinião que tanto a lei judaica quanto o serviço aos rudimentos tornam as pessoas escravas. Nesta situação estavam os gálatas. Paulo quer explicar a eles que agora, salvos pela fé em Jesus Cristo, a sua situação é diferente. Compara a sua situação (e a de toda a Humanidade?), anterior à conversão ao cristianismo, à de herdeiros menores de idade, cujo pai faleceu ou está ausente. Tais herdeiros são donos de tudo, mas não podem usufruir nada. Sua condição, na prática, não difere da do escravo, pois têm tutores e curadores que mandam neles. Antes de serem chamados para a salvação em Jesus Cristo, estavam na mesma situação desses herdeiros, iguais a escravos. Não eram donos de si mesmos, nem da herança. Tinham tutores e curadores, os rudimentos do mundo, a lei judaica, as normas e leis da sua cultura e religião. Não eram livres.

No capitulo anterior (3.24), Paulo fala do aio, do preceptor que é a lei. Desse aio, desse tutor, Deus libertou os gálatas através da sua intervenção, na hora que considerou adequada. Ou melhor, o aio — a lei — fica sem função, pois eles, os que agora têm fé em Jesus Cristo, são declarados maiores de idade. O aio teve o seu tempo, foi necessário, mas tornou-se agora obsoleto.

A intervenção de Deus acontece de maneira única e estranha: Ele envia o seu Filho; e o envia na condição de homem (nascido de mulher, v.4), fazendo-o igual aos homens e, mais ainda, colocando-o na mesma situação de dependência (nascido sob a lei, sujeito à lei, v.4). Só assim é completado o ato de libertação: a partir de baixo, por um homem verdadeiro que vive a mesma situação de dependência. Deus não intervém de cima, puxando os homens imaturos e miseráveis para as alturas celestiais, mas rebaixa-se, desce a eles na pessoa de seu Filho, para resgatá-los, redimi-los da sua condição de dependência.

Aliás, o termo resgatar, no v. 5, aponta para o fato de que Paulo usa, na verdade, dois termos comparativos paralelos para explicar a condição de dependência dos gálatas antes da sua salvação pela fé em Cristo: o dos herdeiros menores de idade e o do escravo. Mas, como Paulo considera essas duas condições idênticas nos seus efeitos, esse paralelismo não muda a ideia mestra que ele quer explicitar: a da libertação do jugo da lei e dos rudimentos. Ou será que Paulo reserva a condição de herdeiro menor somente para Jesus Cristo antes da sua crucificação e ressurreição, isto é, antes do acontecimento salvífico que leva à libertação dos que crêem nele? Neste caso. a situação dos escravos seria privativa dos outros homens, e os conceitos de resgate e adoção seriam mais compreensíveis (v.5).

Trata-se, nesse resgate e nessa adoção, de ação de Deus, apesar de ela vir através de um homem, Jesus Cristo. Não é o próprio homem que liberta a si mesmo. E até para que ele possa compreender a sua libertação, Deus tem que intervir. Deus enviou aos nossos corações, o espírito de seu Filho, que clama: Aba, Pai! Só por este espírito descobrimos que somos agora filhos de Deus e herdeiros, segundo a promessa dada a Abraão (3.29). Este espírito é o Espírito Santo, a terceira pessoa da Trindade? Essa dúvida acompanhou a tradição do texto original e levou ã omissão das palavras do Filho no v.6, em alguns manuscritos. Mas provavelmente Paulo, ao escrever a Carta aos Gálatas, não pensava ainda em termos dogmáticos de Trindade.

Tentando resumir o que entendi do texto, chego a três itens:

1. Antes do encontro com Cristo, os homens não são senhores de si mesmos. Estão na condição de dependência, de subordinação, ou á lei judaica, ou a algum culto aos rudimentos do mundo.

2. A ação de Deus, que manda o seu Filho em condição humana, traz a libertação aos dependentes e oprimidos sob a lei ou os rudimentos.

3. Essa libertação coloca os homens numa condição completa-mente nova. De tutelados e dependentes, passam a filhos e herdeiros. A fé substitui a lei, e em vez de estarem sujeitos a princípios do mundo, eles servem a seu Senhor, Jesus Cristo, que lhes deu a salvação, pela fé e pela graça

II — Subsídios para a prédica

O texto está indicado para o dia de Natal. Propõe-se, portanto, como tema: o que significa a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo ao nosso mundo, em condição humana e forma de criancinha? A resposta que o texto nos dá é: libertação, maioridade e autonomia (em Jesus
Cristo).

Olhemos para o ouvinte. Certamente teremos uma audiência numerosa. Gente que está esperando algo, um toque espiritual na celebração dessa data festiva; uma orientação, uma explicação, talvez, quanto ao significado desse dia. Gente que cumpre uma obrigação, mas que está com pressa de voltar para casa para preparar o churrasco e divertir-se com a família. Alguns são frequentadores assíduos, outros só vieram porque é um dia especial. Estão aí, guardando dias, e meses, e tempos, e anos, como Paulo critica. (Gl 4.10) Vieram para a igreja, porque a época do ano o exige. O culto do dia de Natal é o ponto final de uma época de correrias, de preparação de programas, de compra de presentes, de barulho nas ruas, de propaganda agressiva convidando a comprar, comprar, comprar… O Natal já faz parte da religião secular do nosso mundo capitalista, como também a Páscoa, o Dia das Mães, o Dia das Crianças, etc. O que para os gálatas eram os rudimentos do mundo que dividiam o ano conforme um calendário religioso, são para nós hoje as nossas festas religiosas secularizadas. Para o bom andamento do mundo, da sociedade, da família, é importante que se realizem estas festas, que no Natal se vá ao culto. Conserva-se assim a ordem cosmológica. É realmente impressionante quão importante é, para a maioria dos cristãos, a repetição periódica de festas, dentro dos moldes tradicionais. Quem trabalha nas novas áreas de colonização conhece a nostalgia que abate os colonos do Sul na época de Natal, e faz com que muitas vezes juntem o seu último dinheirinho, para mandar-se, com família e tudo, ao Sul, ao torrão natal, onde tem pinheirinho e sino na igreja. Só lá parece ser possível festejar o Natal.

Por isso, acho que os nossos ouvintes não estão tão longe assim dos gálatas com os seus rudimentos do mundo. Como eles, acham que é mais seguro sujeitar-se às normas, às datas, às convenções, às ideias pré-fabricadas. Liberdade e autonomia incomodam, cansam. Não ê por acaso que o povo, na sua teologia popular, (e talvez não só ele!) tenha transformado a liberdade de Cristo em lei de Cristo.

Bem, se o exposto acima é realidade, já temos um ponto, onde aplicar a proposta da liberdade em Cristo. A condição nova, na qual somos colocados pela fé em Jesus Cristo, nos redime dos poderes deste mundo, dos deuses que não são deuses (v 8), isto é, das normas religiosas, das convenções sociais, das leis da economia. Não mais encontramos justificação na observância delas. Claro que não vamos deixar de observar certas normas necessárias para a convivência humana. Mas a força motivadora da nossa atuação não é mais o medo de não correspondermos às normas, mas o amor que nos une ao próximo. (Vê-ia Gl 5.13: Porém não useis da liberdade para dar ocasião à carne; sede, antes, servos uns dos outros, pelo amor.)

Acho que se deve colocar a alternativa em toda radicalidade: Ou Cristo e com ele a liberdade — ou qualquer outra dependência e sujeição. No pensamento de Lutero: ou o homem tem a salvação pela fé e então Jesus Cristo é o seu Senhor, ou ele está sujeito ao príncipe deste mundo e é governado por ele. Outra alternativa não existe. Nem meio termo. Uma observação complementar da lei, uma devoção suplementar aos rudimentos deste mundo não é permitida. Já é desvio de Jesus Cristo.

Com isso apontamos o dedo para a prática religiosa das nossas comunidades. Há muitos membros que conseguem conciliar a sua fé evangélica com Seicho-No-lê, benzedura, Rosa-cruzes. Todas as religiões são boas, dá para aproveitar de todas. Tudo leva a Deus, dizem. Será que leva? Ou leva ao embalo da consciência, à justificação pelas obras, à falsa tranquilidade dos que acham que vivem na harmonia cósmica?

III – Subsídios litúrgicos

1 Confissão de pecados: Misericordioso Deus! Hoje é dia de Natal. Celebramos a revelação do teu grande amor que veio a nós em teu Filho Jesus Cristo. Ele veio a nós em condição humana, para a nossa salvação. Mas a nossa fé é fraca. A humanidade de Jesus não nos satisfaz. Procuramos outros senhores. Fiamo-nos em normas, leis e cultos, em vez de confiar na tua graça. Procuramos realizar obras e cumprir obrigações, em vez de pedir o fortalecimento da nossa fé. E poucos têm sido os frutos da nossa fé. Não há paz no nosso mundo, nem justiça. No nosso pais, são muitos os que não podem festejar um Natal alegre. Nós somos co-responsáveis por isso. Por estas e muitas outras faltas pedimos, em nome do teu Filho: tem piedade de nós, Senhor!

2. Oração de coleta: Deus, nosso Senhor! Só pela fé podemos entender o que o teu Filho Jesus Cristo significa para o mundo. Dá-nos a fé, para que através dela possamos viver a liberdade daqueles que têm Jesus Cristo como Senhor. Liberta-nos de todas as dependências e escravidões às leis deste mundo. Abre os nossos olhos, para que descubramos onde a nossa fé deve tornar-se concreta e ativa. Orienta-nos pela tua Palavra, e abençoa o nosso culto e este Natal. Amém.

3. Subsídios para a oração final: agradecer: por Jesus Cristo, a salvação pela fé, a liberdade em Cristo, a nossa fé, a igreja e comunidade, na qual podemos viver a fé, a palavra clara do Evangelho; pedir: uma fé firme, independente de leis e rudimentos, fé atuante que se manifesta no amor, firmeza diante das normas da vida diária que querem sujeitar-nos; interceder; por aqueles que não conseguem viver a liberdade em Cristo, que estabelecem e seguem leis, que têm medo de submeter-se ao senhorio de Jesus Cristo.

IV — Bibliografia


– BORN, A. van den. Dicionário Enciclopédico da Bíblia, Petrópolis, 1977.
– SCHLIER, H.Der Brie fan die Galater. Göttingen, 1965.

Proclamar Libertação 9
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia