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Prédica: Jeremias 23.5-8
Autor: João Artur Müller da Silva
Data Litúrgica: 1º Domingo de Advento
Data da Pregação:30/11/1986
Proclamar Libertação – Volume: XII
Tema: Advento

l – Uma palavra inicial

Em geral, os profetas no Antigo Testamento são um testemunho incansável a favor do povo sofrido e espoliado. Sua fidelidade ao Deus justo e poderoso tem lhes causado sofrimento e perseguição. Jeremias, um destes profetas, está constantemente com os olhos voltados à tradição do êxodo e do Sinai e com os olhos voltados ao futuro que Deus prepara ao seu povo. Passado e futuro são dimensões imprescindíveis para viver o presente. E o presente que vivemos hoje é a época de advento. Neste primeiro domingo de advento não podemos nos deixar embriagar somente pelo canto do futuro que nos traz salvação. A ação de Deus no passado de nossa gente precisa também receber um espaço em nosso canto de louvor. Bem como, enxergar a miséria e a exploração que acompanham a vida presente de milhões de irmãos nossos neste chão brasileiro.
O profeta Jeremias bem que poderia ter cantado a seguinte canção, se estivesse hoje convivendo com nosso povo:

Meu povo
caminha ferido
o peso da dor
por muitos
já foi esquecido
mas a sua frente
caminha o Senhor.

São gente, são seres humanos
que lutam para sobreviver.
São vezes, lamento e choro
de um povo cansado de tanto sofrer.

Um pedaço de terra
um pouco de água
um pedaço de pão.
Isso pede meu povo
que busca e grita
Libertação!


Meu povo
caminha calado de tão massacrado
de tanta opressão.

Mas neste
silêncio forçado
escutam-se gritos
se vê aflição.

Meu povo
como foi no passado
está escravizado
vivendo na dor.
Há homens
com muita coragem
vivendo à imagem
do Libertador.
(Letra e música: Cireneu Kuhn*)


II – O texto

V. 5 – Eis que dias virão – oráculo de Javé – em que suscitarei a Davi um germe (renovo) justo; um rei reinará e agirá com inteligência e exercerá na terra o direito e a justiça.
V. 6 – Em seus dias, Judá será salvo e Israel habitará em segurança. Este é o nome com que o chamarão: Senhor [é], nossa justiça.
V. 7 – Por isso, eis que dias virão – oráculo de Javé – em que não dirão mais: Vive Javé, que fez subir os filhos de Israel da terra do Egito,
V. 8 – mas: Vive Javé, que fez subir e retornar a raça da casa de Israel da terra do Norte e de todas as terras para onde ele os tenha dispersado, para que habitem em seus territórios.

O texto acima é transcrição da perícope como vem redigida em A Bíblia de Jerusalém. Algumas pequenas alterações foram acrescentadas por mim, com o intuito de ajudar na compreensão da mensagem. Preferi esta redação em lugar da proposta por João Ferreira de Almeida na Bíblia editada pela Sociedade Bíblica do Brasil. Pois o estilo de redação e algumas palavras arcaicas desta versão dificultam a compreensão do texto para quem está ouvindo no culto.

1. Sobre a perícope

A autoria desta perícope é assunto de muita discussão entre os comentaristas consultados. Por exemplo, a dupla Sellin-Fohrer considera esta perícope como um trabalho redacional introduzido no livro de Jeremias por alguém outro. Deixando esta discussão de lado, precisamos aceitar que Jr 23.5-8 pertence a uma coleção de oráculos conhecida pelo nome de Oráculos a respeito da casa de Judá. Estes oráculos têm em mira determinados reis que governaram o povo de Deus. Podemos citar alguns: Jr 22.10 – oráculo sobre Joacaz; Jr 22.1-5: oráculo sobre Joaquim.

Jr 23.5-8 encerra esta coleção de oráculos apresentando este discurso sobre o Messias. Para tanto, o autor desta perícope se vale da tradição messiânica sobre Davi. Esta é uma das poucas passagens do livro de Jeremias que trata deste assunto, (saías, outro profeta, trabalhou bem mais esta questão da esperança messiânica. Na perícope de Jeremias encontramos duas palavras proféticas sobre a salvação: justiça e segurança para o povo (5-6) e libertação da escravidão (Egito e terra do Norte, 7-8). Ambas as sentenças estão relacionadas e, conforme Gerhard von Rad, formam um discurso de ofensa e ameaça aos pastores (w. 1-2), ou seja, contra aquelas pessoas que estão conduzindo o povo de Deus. Certamente Jeremias está criticando a atuação dos reis Joás (Salum), Joaquim, Jeconias, Zedequias. Fazer justiça ao povo é o tema central desta
perícope.

2. Sobre os versículos

Para uma melhor compreensão do conteúdo da perícope, sugiro uma repassada por todos os versículos.

V. 5 – A fórmula Eis que dias virão é própria de oráculo. Também em outras passagens esta mesma expressão inicia o oráculo de Deus. Passagem semelhante encontramos em Jr 33.15-16. O germe ou renovo será o nome daquele que Deus enviará para salvar seu povo. A respeito disso testemunham os seguintes textos: Zc 3.8 e 6.12. Sugiro que se escolha a palavra renovo, pois em seu significado está embutida a questão da descendência. A preocupação de Mateus, por exemplo, em assegurar a descendência davídica de Jesus tem suas raízes nesta esperança messiânica já latente entre o povo na época do reinado. O renovo agirá como um rei: será Senhor sobre todos, agirá com inteligência, o direito (de Deus) e a justiça são suas obrigações. Por eles deverá zelar e se empenhar. Aliás, esta tarefa foi entregue a todos aqueles que assumiram o reinado sobre Israel. No entanto, a história de Israel aponta para os desvios destes reis, resultando em sofrimento e miséria para o povo amado por Deus. A partir daí pode-se compreender a crescente esperança pelo Messias Libertador, Justo, alimentada pelo povo e anunciada, como aqui, pelo profeta. O verdadeiro profeta sempre se coloca na posição de intercessor pelo seu povo junto a Deus. O direito e a justiça que Deus quer para todos estão resumidos nos Dez Mandamentos, o sinal da aliança que ele faz com sua gente.

V. 6 – Tudo o que caracteriza a ação deste rei está resumido em seu nome: Javé [é], nossa justiça. Seu reinado trará salvação e segurança. Este é o seu programa de governo, poderíamos dizer. Pois, até então, o povo de Deus vinha sofrendo e padecendo exploração, opressão, vivendo no exílio. Para Israel é significativo ouvir a promessa da salvação, pois isto recorda a ação bondosa de Deus no passado quando os tirou da escravidão do Egito. Também é significativo para Israel ouvir que poderá viver em segurança ou será livre de ameaças de outros povos. Javé [é], nossa justiça adquire maior impacto na reflexão se recordarmos que o nome do rei Zedequias significava Javé [é], minha justiça. A partir de agora, com a promessa da vinda do rei, Deus nos mostrará como será a nossa justiça. Com isto estão ameaçados os padrões humanos de justiça. Pois, a justiça de Deus é bem outra do que aquela que as pessoas gostariam que fosse. O apóstolo Paulo também confessa Cristo como nossa justiça em 1 Co 1.30: Ora, é por ele que vós sois em Cristo Jesus, que se tornou para nós sabedoria proveniente de Deus, justiça, santificação e redenção, a fim de que, como diz a Escritura, aquele que se gloria, se glorie no Senhor.

V. 7 – Neste versículo inicia a segunda palavra de salvação, introduzida também com um oráculo: Eis que virão dias. Vive Javé, ou como na versão de Almeida: Tão certo como vive o Senhor – é uma fórmula de juramento. É a confissão que o povo faz de que Deus os tirou, libertou da escravidão do Egito. Esta memória histórica é decisiva para a fé no Messias. Deus é aquele que age na História. Desde o princípio (criação) Deus está presente com sua graça, seu amor, sua justiça, propondo sua aliança de vida ao povo. Neste versículo temos a lembrança do primeiro êxodo. A palavrinha mas do v. 8 é o elo de ligação à corrente da história.

V. 8 – Deus não é somente aquele que libertou o povo no passado longínquo dos tempos de Moisés, mas é aquele que resgata o povo da tirania dos babilônios e de todos os outros povos que dominaram Israel. Deus reúne, salva novamente seu povo e quer vê-los habitando no território que lhes entregou. Aqui encontramos maior clareza para aquilo que o profeta mencionou no v. 6. Ou seja, habitar em seu próprio território significa morar em segurança. Esta promessa significa futuro e vida. Nela o povo deposita sua esperança. Ó senhorio deste rei trará paz e salvação para todos.

III – Meditação

Por ocasião da época do advento encontramos no hinário Hinos do Povo de Deus 11 hinos cujas mensagens são próprias para esta época. Destes 11 hinos, apenas 2 não utilizam a figura do Rei/Reino em suas estrofes (Hinos 3 e 4). Os demais 9 hinos mencionam esta figura em suas letras. Vejamos:

Hino 1 : O mundo anseia ver-te, meu Rei, meu Redentor.
Hino 2 : Vem, ó Rei da Glória, vem.
Hino 5 : Erguei os arcos triunfais ao Rei dos reinos celestiais!
Hino 6 : Deus, abre-nos a porta eterna do Reino de justiça e amor!
Hino 7 : Vós, fortes e orgulhosos, o Rei vinde aceitar.
Hino 8 : Alerta, ó consagrados, já vem chegando o Rei.
Hino 9 : A estrada endireitai e, de ânimo alquebrado, com culpa e com pecado ao Rei vos entregai.
Hino 10 : Ó vem, Senhor amado, vem! Ergue o teu Reino eterno – amém!
Hino 11 : Rejubila, filha de Sião, regozija-te, Jerusalém! Vê o Rei da Glória, vê o teu Senhor, vê o Rei da Paz, da graça e do amor!

A partir daí podemos concluir que a figura do rei está fortemente impregnada na tradição eclesiástica. Ela assume importância maior ainda quando nos reportamos ao passado, mais especificamente, à época em que Jesus nasceu. O reinado foi, naquele tempo, a experiência sócio-política conhecida do povo de Deus. Israel conheceu diferentes reis que não souberam cumprir com o direito do rei estabelecido por Javé: deverá ser escolhido por Deus, não multiplicará cavalos (não terá exércitos), não multiplicará o número de suas mulheres (monogamia), não multiplicará ouro e prata (acúmulo de riquezas), deverá aprender a temer a Deus (Dt 17.14-20). Como sabemos, cabia também ao rei zelar pelo direito e pela justiça no meio do povo. Herodes, rei da Judéia, sentiu-se abalado ao ouvir o anúncio de que havia nascido o rei dos judeus. E por quê? Rei é um título político. Rei é aquele que domina, governa, tem poder. Por isso também, mais tarde, quando Jesus compareceu diante de Pilatos, ele lhe perguntou: És tu o Rei dos judeus? (Jo 18.33). Esta pergunta era decisiva para a época. Atrás dela reside o medo de perder a posição. Conceder, pois, este título para alguém significava assumir consequências. Jesus foi morto na cruz, pois os poderosos da época temeram este novo Rei.

Como vimos anteriormente, cantamos no advento que Jesus é o Rei da Glória, o Rei da Paz, o Rei da Justiça. Quais são as consequências? Que implicações tiramos desta confissão?

Phillip Potter, ex-secretário geral do Conselho Mundial de Igrejas, afirmou em sua Mensagem de Natal em 1979: Este símbolo do Rei é uma expressão do desejo de um indivíduo ou de muitos, em qualquer sociedade, por ordem ao invés de caos, justiça em lugar de opressão, paz ao invés de guerra, unidade em lugar de divisões separatistas, saúde e totalidade ao invés de doenças e vida mutilada, pela vitória dos poderes da luz sobre os poderes da escuridão.

O profeta Jeremias viveu uma situação bastante caótica e difícil. Os reinados vinham se arrastando deixando atrás de si rastros de miséria, injustiças, guerras, poderio militar. Paz, segurança e prosperidade não eram mais bênçãos para o povo, pois haviam-se desviado do caminho apontado por Deus. Para o pensamento de Jeremias, é fundamental a questão da fidelidade e obediência a Deus. Por causa da desobediência, Deus executava seu juízo. Em meio a esta situação de desespero, Jeremias anuncia uma palavra de esperança: Deus vai enviar um Rei justo que reinará com inteligência, e praticará o direito e a justiça. Novamente é Deus que vem ao encontro de seu povo para desencadear a libertação. Ele o faz porque ama a sua criação e quer vê-la vivendo em paz e segurança. Como entender hoje esta mensagem?

A realidade nos mostra um quadro de desespero: ditadores (mesmo aqueles eleitos pelo voto do povo) governam com mão de ferro, procurando apenas o bem de uma minoria; o número de desempregados em nossa sociedade é um questionamento sério ao sistema de trabalho que instituímos; índios, bóias-frias, pequenos agricultores e sem-terra não têm segurança e vivem na luta por seus direitos; mulheres e crianças são vítimas de violências e brutalidades, sendo poucas as vozes que se levantam em seu favor; a natureza está padecendo sob a ação destruidora das pessoas sem escrúpulo.

Diante deste quadro ouvimos o discurso de esperança do profeta Jeremias. Como entendê-lo? No pensamento de Jeremias era importante a fidelidade e obediência a Deus. Quer me parecer que este tema brota com muita força nesta época de advento, nesta época em que anunciamos a vinda do Rei justo e libertados. No entanto, precisamos questionar-nos seriamente: é interessante e 'lucrativo” ser fiel a Deus? É interessante e 'lucrativo' batalhar pelo direito de Deus que se traduz no direito dos pequeninos? dos desamparados? dos explorados? dos sem-terra? dos operários? dos índios? Há muita resistência diante do apelo para o engajamento cristão! Há muita resistência diante da prática da fé que se mistura com as coisas da vida. Há muito mais preferência por uma religião alienada, distante dos 'problemas do mundo'.

Aí está o desafio de advento aliado ao profeta Jeremias: a promessa da vinda do Rei, do Messias, incomoda a gente, incomoda os poderosos. Pois, o que vem trará justiça – mas não será aquela que estamos acostumados a encontrar por aí; o que vem trará paz – mas não será apenas trégua de alguns dias; o que vem trará liberdade – mas não será para fazer o que eu bem quiser, mas para servir, obedecer, amar.

Assim sendo, advento é também celebração do êxodo, da saída do povo da escravidão. Isto precisa ser refletido na comunidade.

IV – Rumo à prédica

Sugiro os seguintes passos a serem considerados na elaboração da prédica:

– Leitura do texto
– Chamar a atenção para a figura do Rei, exemplificando com os hinos
– O que nos diz esta figura hoje
– Situar um pouco a época de Jeremias
– A importância da promessa de Deus para nós hoje
– Arremate final

V – Subsídios litúrgicos

1. Confissão de pecados: Todo-poderoso e eterno Deus e Pai! Não vivemos bem neste mundo, pois estamos constantemente prejudicando nossos irmãos. E isto nos inquieta. Preferimos fazer de conta que não sabemos de nada, que não é conosco. Mas, nossa consciência nos acusa. Achamos que viver bem é o mesmo que viver calado, sem nos envolvermos com as injustiças que ocorrem em nosso meio. Ouve-nos, Senhor, e anima-nos a sermos teus discípulos neste mundo. Perdoa nossa falta de fé e infidelidade. Concede-nos, por teu perdão, um novo começo, uma nova caminhada na qual tenhamos a coragem de colocar sinais do teu amor e da tua justiça. Tem misericórdia de nós, Senhor.

2. Oração de coleta: Senhor, nosso Pai! Como tua família estamos reunidos para o louvor e adoração. Abençoa nosso encontro e dá-nos o entendimento de teu Evangelho. Permite que teu Espírito nos oriente e nos faça ouvintes e praticantes da Boa Nova que em Jesus Cristo se tornou realidade. Vem, Senhor, e fica conosco. Amém.

3. Oração final: Sugiro que ela seja elaborada em conexão com a prédica e a situação da comunidade.

VI – Bibliografia

– AHERN, B. Jeremias y Baruc. Santander (Espanha), 1972.
– RAD, G.v. Teologia do Antigo Testamento, v. 2. São Paulo-, 1974.
– SELLIN-FOHRER, E.,G. Introdução ao Antigo Testamento. São Paulo, 1984.
– SKINNER, J. Jeremias, profecia e religião. São Paulo, 1966.
– WOLFF, H.W. Bíblia Antigo Testamento (Introdução aos escritos e métodos de estudo). São Paulo, 1978.
(* Esta canção se encontra no disco Direito de Chão, Verbo Filmes – Rua Verbo Divino, 993 – 04719 – São Paulo – SP).

Proclamar Libertação 12
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia