Prédica: Lucas 1.26-33 (34-37) 38
Autor: Valdemar Lückemeyer
Data Litúrgica: 4º Domingo de Advento
Data da Pregação:21/12/1986
Proclamar Libertação – Volume: XII
Tema: Advento
I – Introdução
O nosso texto é o resultado de trabalho e de reflexão de vários autores. Há fortes indícios para isso. Os vv. 26-33 e 38 formam uma unidade bem clara e é possível que tenham formado o texto original da autoria de Lucas. Os vv. 34-37, por sua vez, revelam claramente outra confissão cristológica e não têm a mesma base teológica com os vv. 26-33. No nosso estudo queremos considerar também os vv. 34-37 e por isso é possível incluí-los no texto da prédica. O ouvinte, um provável conhecedor do texto, se fará a pergunta que Maria faz (v. 34). Será que ele vai deixar o culto e passar o natal mais uma vez com a dúvida que o acompanha desde a infância, a dúvida a respeito da concepção virginal de Maria? O culto dominical não nos oferece o tempo necessário e muito menos as condições para longos excursos e enfoques detalhados, mas esta nossa prédica não deveria deixar pairando muitas perguntas e dúvidas na cabeça de nossos ouvintes.
O texto não é usual como base de prédica na igreja evangélica, pois ele nos leva a elaborar uma prédica evangélica sobre Maria. E nestas águas não aprendemos a nadar! A igreja católica exaltou tanto a piedade de Maria que, em contrapartida, criou no lado protestante uma abstinência mariológica. Não nos permitimos grandes elogios a Maria e, inclusive, Ave Maria de Gounod cantado ou tocado em nossas igrejas por ocasiões de bênçãos matrimoniais, levanta dentro de nós a dúvida: será que é possível?
A Confissão de Augsburgo, artigo 21, nos encoraja a lembrar a memória dos santos, a fim de lhes imitarmos a fé e as boas obras de acordo com a vocação…. Martim Lutero colocou Maria, na explicação ao Magnificat (Lc 1.46-56), como exemplo da pessoa que, ciente de sua pobreza e insignificância diante de Deus, se agarra a sua bondade e vê justamente nesta bondade de Deus o seu bem maior.
A perícope faz parte da pré-história de Lucas e é matéria exclusiva deste evangelista. Indicada para o 4° domingo de advento, a perícope também se presta muito bem para texto base de véspera de natal – 24 de dezembro.
II – Considerações exegéticas
Cai em vista, mesmo numa leitura rápida, o paralelismo da nossa perícope com o relato que lhe precede: w. 5-25 predições referentes ao nascimento e atividade de João Batista. Há, entre outros, os seguintes paralelismos: a gravidez em ambos os casos é inesperada e impossível naturalmente; o nome das duas crianças é ordenado pelo mensageiro; os dois recebem a ordem de aluarem como enviados de Deus. Tanto num quanto no outro caso Deus é o agente. É o mesmo Deus que está presente já desde o início na vida de João Batista (pai adotivo no templo) e na vida de Jesus (pai é da linhagem e da casa do rei Davi, mas é insignificante e mora no interior).
Interessante de observar é que o anjo/mensageiro Gabriel, como em 1.8 ss, é mensageiro de Deus e como tal não recebe destaque, não havendo qualquer descrição maior sobre sua atuação. O que' é importante é a sua mensagem. Ela é a única razão de sua existência e do seu envio. Depois que ela foi anunciada, o mensageiro não tem mais razão de ser.
O mensageiro de Deus é enviado para dentro da realidade concreta deste mundo, pois local, data e pessoa que receberá a mensagem, são mencionados claramente. Assim age Deus; concretamente; com pessoas. Aqui Deus age com Maria, que é de Nazaré, é virgem e é noiva de José. O alvo desta ação de Deus é insignificante em todos os sentidos: o anjo, quando cumprimenta Maria, faz algo que não era costume, visto que mulher não tinha valor e, por isso, também não era digna de ser cumprimentada. A cidade onde Maria mora é pequena e desprezada (Jo 1.46); não se tratava, pois, da capital, o centro de toda a vida. A saudação era um velho voto bíblico que encerrava o desejo de felicidade e bem-estar (veja Josué 1.9 e Juizes 6.12). No texto original esta saudação é composta por um jogo de palavras que livremente poderia ser traduzido por algo como Felicidades, felizarda!
Maria e José eram noivos. O noivado já legalizava o casamento mas a vida a dois, sob o mesmo teto, acontecia somente após o noivo ter buscado a noiva para casa. O que causa confusão e, até certo ponto, dificuldade, é a afirmação de que Maria é virgem. A doutrina da concepção virginal (natus ex virgine) de Maria, tem a sua única base bíblica na perícope em estudo e em Mt 1.18-23 – posteriormente também se fixou no Credo Apostólico (concebido pelo Espírito Santo, nasceu da virgem Maria).
O pregador certamente não poderá passar por cima dessa questão, diante da qual há duas possibilidades a) aceitar a concepção da virgem como um fato biológico; b) José é o pai! Existem argumentos pró e contra a historicidade da concepção virginal. Pró: 1) Está escrito na Bíblia; 2) Não devemos tomar nossa razão como medida para dizer o que para Deus é possível e o que não é. Contra: 1) Da concepção virginal falam só os dois textos citados, que são da infância de Jesus; 2) Os evangelhos apontam José como pai; 3) As duas passagens bíblicas que falam da concepção virginal têm como pano de fundo Isaías 7.14, em que a Septuaginta traduziu a palavra hebraica ALMA (= mulher jovem) por PATERNOS = virgem; 4) Na antiguidade muitas personalidades expoentes eram tidas como oriundas da união de uma divindade com uma mulher. E por fim ainda é possível ver a concepção virginal de Maria como uma concepção extraordinária mesmo ao lado de outras concepções difíceis ou naturalmente impossíveis como ocorreu com Sara (Gn 18), Ana (1 Sm 1) e Isabel (Lc 1), que conceberam quando idosas e/ou estéreis.
O que, porém, é de maior importância é descobrir o que o texto quer transmitir na forma que o faz e ver qual é a ideia que está por trás das confissões cristológicas com as quais nos deparamos. O anúncio do nascimento é feito (v. 31) e ele se expressa nas diversas concepções messiânicas. Há a esperança pelo Messias davídico, que lemos nos vv. 32-33: a concepção/ideia do Messias da casa de Davi encontra sua base na profecia de Nata (2 Sm 7.8-16), na profecia de Isaías (Is 9.1-6) e em alguns Salmos (SI 2.7 e 89.27ss). Para que houvesse essa descendência davídica, é necessário que o pai, no caso José, fosse da casa de Davi, o que realmente fica bem expresso (v. 27). Nesta compreensão, inclusive, a concepção virginal não tem o mesmo destaque como na outra, que ainda veremos. Os principais traços e características dessa compreensão messiânica são os seguintes: seu reinado existirá para sempre; este reino inicia agora, mas tem a sua complementação e realização definitiva após a existência terrestre.
No v. 35 lemos claramente outra esperança messiânica. Ali desde o início Jesus, o anunciado, é Filho de Deus – assim ele foi concebido, assim ele recebeu seu nome e sua missão. Ele está tão próximo de Deus, que pode falar e agir em nome do mesmo. O amor que ele vive é a própria encarnação do amor de Deus; ele é Deus! Esta compreensão messiânica dá grande ênfase ao natus ex virgine, pois Deus, somente ele, está agindo. Ele não necessita da participação do homem. Ele cria do nada. Ele é o Pai! A criança que está sendo anunciada, conseqüente-mente, é Filho de Deus e é propriedade de Deus. Deus a usará como seu instrumento para vir ao mundo e viver entre os homens.
O v. 38 caracteriza a atitude de Maria que se sabe agraciada por Deus. É uma atitude de obediência e de fé. Por isso Maria é o exemplo do posicionamento correto diante de Deus quando a criatura entendeu que achou graça diante de Deus. Ela entendeu que é a mãe do Salvador, e isto ela não deve a José, mas a Deus. Ela é apresentada como uma ouvinte exemplar da palavra de Deus, como serva do Senhor, que diz sim ao plano de Deus, como a agraciada que por si mesma não é nada, mas pela graça de Deus é tudo. Assim Maria é o protótipo das pessoas que se abrem para Deus e se deixam presentear, é o exemplo para a comunhão dos crentes, para a igreja. (Ev. Erwachsenenkatechismus, Gütersloh, 393).
Sou tua serva (v. 38) – Maria foi instrumento de Deus e somente ele é o sujeito de toda a ação. Não transparece aqui, nem em outra passagem bíblica, a ideia da colaboração da criatura humana. Maria responde à graça de Deus e foi fiel a este seu sim em toda sua vida, embora tenha sofrido com seu primogênito (Lc 2.41 ss) e ouvido dele palavras duras (Mc 3.31 ss). Ela sofreu quando ele foi crucificado (Jo 19.25 ss), permaneceu fiel à mensagem do filho e viveu na comunidade (At 1.14).
III – A caminho da prédica
Penso que deveríamos iniciar a prédica sobre a perícope justamente no ponto em que os ouvintes (e também nós pregadores/ouvintes desta mesma palavra) têm suas perguntas. Se estas não forem respondidas, pode acontecer que eles não terão ouvidos para outras respostas e outras informações (= mensagem) que o texto quer dar. Ponto de partida, eventualmente, poderá ser o famoso filme Je vous salue, Marie ainda não liberado pela hierarquia dos irmãos da Igreja Católica. Maria é exaltada no nosso texto? A sua pessoa não, ela como criatura não, apenas a sua atitude em aceitar ser instrumento de Delis. Que quer expressar a ideia, a afirmação do texto de que Maria concebeu como virgem?
Um segundo passo seria o convite de simplesmente ouvirmos o mensageiro e Maria: eles nos falam da mensagem natalina. O mensageiro está anunciando não apenas o nascimento de uma criança, mas o nascimento de Jesus, o Filho de Deus, aquele que erguerá um novo reino, reino que não terá fim. Depois que o mensageiro anunciou sua mensagem, ele desaparece; permanece apenas a sua mensagem – esta, pois, é importante!
Um terceiro passo, o principal e o maior, seria o de destacar a atitude de Maria. Em Maria se expressa o sola gratia (somente por graça) e o sola fide (somente pela fé). A graça de Deus se revelou a Maria, uma mulher, mulher simples e insignificante. Em Jesus Cristo, o Salvador, também somos agraciados por Deus inesperada e imerecidamente. Esta é a notícia da salvação; apesar de nossa situação, achamos graça diante de Deus. A graça de Deus se revela ao fraco, ao humilde.
Onde esta graça de Deus é aceita, ali acontece a resposta pela fé, a disposição de deixar Deus agir através de nós – que se cumpra em mim conforme a tua palavra.
Nesta época natalina, mais uma vez, somos convidados a ouvir a palavra de Deus, o que ele tem a nos dizer. E em Maria encontramos a atitude correta, o eco certo diante da mensagem natalina: obediência e fé. Assim reagem as pessoas, assim reage a igreja que ouve o anúncio do nascimento do Salvador.
IV – Subsídios litúrgicos
1. Confissão de pecados: Misericordioso Deus e nosso Pai. As preocupações e as correrias estão tomando conta de todos nós, de forma especial nestes dias que antecedem o natal. Há tantas ofertas, tantos anúncios, tantas vozes que nos convidam e querem nossa atenção. E tu nos conheces, Senhor. Tu sabes o quanto damos ouvidos a coisas insignificantes. Preparamo-nos para tantas coisas, mas para ti ainda não chegamos a nos preparar. Perdoa-nos, por acharmos que nós precisamos fazer muitas coisas para que aconteça natal, por pensarmos que natal depende de nós. Dá-nos tempo, Senhor; dá-nos o teu perdão quando a ti clamamos: Tem piedade de nós, Senhor!
2. Oração de coleta: Senhor, nosso Deus e nosso Pai. Como tua comunidade e membros da tua família queremos agradecer-te que tu nos reuniste sob a tua palavra aqui nesta igreja. Tu vês a nossa situação e nos conheces e é justamente por isso que vens a nós. Dá-nos agora aquilo que precisamos para ouvir com atenção e piedade a tua santa palavra. Que ela nos anime, conforte e encoraje a olharmos para além dos nossos problemas e de nossas dores. Tu podes e queres mudar a nossa realidade. Dá que te ouçamos. Por Jesus Cristo, nosso Senhor e Salvador. Amém.
3. Assuntos para oração final: Agradecer a Deus porque vem a nós, a este seu mundo, a todas as pessoas: os insignificantes, os sem voz e sem vez, os não lembrados e vistos pelos outros e também por nós. Agradecer que Deus quer transformar a nossa realidade – ele não se conforma com o presente século, com este mundo assim como está, e quer agir através de nós. Agradecer que ele nos usa como seus instrumentos. Pedir a Deus que acompanhe os que aceitam o desafio de levar a sua mensagem adiante; pedir por humildade, por tempo para que possamos nos alegrar com natal. Pedir a Deus pelos que não conseguirão se alegrar com este domingo de advento e com natal; pelos solitários e abandonados; pelos nossos lares e nossas famílias.
V – Bibliografia
– A CONFISSÃO de Augsburgo – Edição bilíngue. São Leopoldo, 1980.
– EVANGELISCHER Erwachsenenkatechismus. JENTSCH, E. et alii. ed. Gütersloh, 1975.
– GANDRAS, J. Meditação sobre Lucas 1.26-33(34-37), 38. In: Neue Calwer Predigthilfen. v. 3A. Stuttgart, 1980.
– IWAND, H. -J. Meditação sobre Lucas 1.26-38. In: Predigtmedidationen. 3. ed. Göttingen, 1966.
– KLEIN, G. Meditação sobre Lucas 1.26-38. In: Göttinger Predigtmeditationen. Göttingen, 65(11):p. 22-29, 1976.
– RENGSDORF, K. H. Das Evangelium nach Lukas. In: Das Neue Testamente Deutsch. Die Drei ersten Evangelien. v. 1. Göttingen, 1979.
– RÖSSLER, A. Meditação sobre Lucas 1.26-38. In: Für Arbeit und Besinnung. Stuttgart, 34 (22):844-849,1980.
Proclamar Libertação 12
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia