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Prédica: Isaías 7.10-14 (15-17)
Leituras: Jo 1.6-14; Lc 1.46-56
Autor: Rolf Schünemann
Data Litúrgica: Noite de Natal
Data da Pregação: 24/12/1987
Proclamar Libertação – Volume: XIII
Tema: Natal

I – Introdução

Graças à censura, o tema Virgem Maria tornou-se um assunto muito discutido pela imprensa no início de 1986. O filme de Jean-Luc Godard Je vous salue, Marie!, que atualiza o nascimento de Jesus, criou uma enorme polêmica, da qual participaram teólogos, cineastas, ministros, intelectuais, políticos, etc.

Nosso texto está presente indiretamente neste debate, pois o seu ponto de partida é o versículo Eis que a virgem conceberá e dará à luz um filho, e ele será chamado pelo nome de Emanuel (Mt 1.23). Trata-se de uma citação do profeta Isaías, em que o evangelista Mateus usou a versão grega da Septuaginta para relatar o nascimento de Jesus, o Messias.

No momento a discussão já serenou e até foi esquecida, mas o que se levanta é: podemos aproveitar o texto do profeta para transmitir a mensagem natalina? qual a peculiaridade do dito profético? poderá sua mensagem ser comunicada por ocasião das festividades natalinas? que quer dizer a partir do profeta, Deus conosco, para nós? Nossas reflexões procurarão ajudar à responder estar questões.

II – Texto

1. Delimitação

Como proposta de texto para a pregação de Natal Is 7.10-14, com o clímax no v. 14, pressupõe um escopo que parte do texto neotestamentário. Isaías e sua mensagem não são considerados, perdendo-se o sentido original da palavra profética. Por isso faremos nosso estudo exegético situando a perícope sobre o Emanuel num contexto amplificado. Estendemos o texto até o v. 17, como o fazem muitos exegetas (G. v. Rad. M. Schwantes, etc.) e várias versões do AT (Kittel, Bíblia de Jerusalém, etc.).

2. Tradução

10. E continuou Javé a falar a Acaz, dizendo:
11. Pede para ti um sinal de Javé, teu Deus, ou nas profundezas, ou nas alturas.
12. Acaz, porém, respondeu: Não pedirei, não tentarei a Javé.
13. Então disse ele (o profeta): Ouvi casa de Davi! Não vos basta cansardes homens que também quereis fatigar meu Deus?
14. Por isso o próprio Senhor vos dará um sinal: Eis! A jovem mulher está grávida e dará a luz um filho. E chamará seu nome Emanuel (Deus conosco).
15. Ele comerá coalhada com mel para que saiba desprezar o mal e escolher o bem.
16. Pois antes que o rapaz saiba desprezar o mal e escolher o bem, será abandonada a terra cultivável diante de cujos reis tu tens medo.
17. Javé fará vir contra ti, contra teu clã e contra a casa de teu pai dias como não vieram desde o dia em que Efraim se separou de Judá (o rei da Assíria).

3. Contexto histórico
Os assírios estavam implementando seus projetos expansionistas, co¬brando tributos dos estados existentes na região da Síria e Palestina. Para fazer frente a esta expansão, alguns estados fizeram alianças anti-assírias. Pelo ano 734 a. C. Acaz é acossado por Arã (Síria) e Efraim (Israel), por ele não querer par¬ticipar da aliança contra a Assíria. O temor presente no contexto (Is 7.1-9) decorre desta ameaça. A corte de Jerusalém é o cenário dos diálogos, (saías procura as¬sessorar o rei e aconselhá-lo com a palavra de Javé. A princípio o profeta confia na corte (vv. 1-9), mas depois começa a distanciar-se, emitindo palavras de juízo. A transição para esta fase mais critica acontece na perícope que estamos analisan¬do.

4. Texto e mensagem

Como foi dito anteriormente, Isaías defende junto à corte algumas reformas na dinastia de Davi. Ela ainda alimenta esperanças (7.3-9). Abre-se uma oportunidade para ela quando diz: Se não crerdes, então não permanecereis (v. 9), ou seja, crendo, permanecerás. Diante da ameaça inimiga não há tempo a perder. A hora é urgente. O medo aumentou na corte do rei Acaz e provavelmente alguns dias depois das palavras de esperança acontece o diálogo de nossa perícope.

Javé solicita a Acaz que peça um sinal. Javé não é atendido. Acaz, em resposta piedosa, nega, sob o pretexto de não querer tentá-lo (a Javé). Esta atitude desperta a ira do profeta. Num dito profético o rei é censurado e a sua culpa revelada. Nesta palavra está incluída toda a casa de Davi, ou seja, toda a dinastia.

Eventualmente Acaz esteja acalentando uma aliança com a Assíria e não julga a situação tão crítica assim. Contando com a sua ajuda, acaba colocando Javé de lado. Diante disso são-lhe anunciados dias difíceis.

O dito profético gira em tomo de um sinal. Agora, por que a ênfase tão grande nele? O que representa? Provavelmente o sinal diz respeito à alternativa colocada no v. 9b (não crer – não permanecer). Trata-se, portanto, de um sinal de fé, e Acaz vacila diante dele. A fé e o sinal estão relacionados com 7.3-9, em que a volta ao Senhor (v. 3), a ordem ao pacifismo (v. 4) e o anúncio do fim dos inimigos (vv. 5-9a) são seu conteúdo. Rejeitando o sinal, Acaz rejeita a promessa e assim abandona a Javé:

Isaías aponta que com esta falta de confiança Acaz está rompendo a aliança de Javé com a família de Davi (2 Sm 7). Quebrada a aliança, Javé abando¬na a corte e o poder vigente. Expressa isso na palavra profética meu Deus (v. 13) que se opõe a anterior teu Deus (v. 11). Elas se excluem. Acaz, recusando-se a fazer o pedido de sinal, negou também a Deus, o Deus da dinastia. Como teocracia sem Deus não existe, ela está falida e o seu fim está selado.

Assim no v. 14 encontramos a ameaça profética do sinal dado contra a vontade do rei. Ele possui um duplo sentido. Torna-se sinal de esperança para o povo de Deus, ao lado do qual está o profeta, e sinal de desgraça para o rei, que rompeu com Javé.

O sinal repousa sobre um menino e seu nome simbólico, e não sobre a mulher que, estando grávida, vai dá-lo à luz. A titulo de esclarecimento, não se trata de uma virgem (Almeida) mas sim de a jovem mulher (ha-'almah) que já está grávida. Mateus e Lucas falam da virgem porque usaram a versão grega da Septuaginta que usa partenos (virgem). Quando o Emanuel tiver idade capaz de entendimento e responsabilidade própria (v. 16), o país estará arrasado e a casa de Davi, a dinastia, estará aniquilada. O povo, no entanto, não fica abandonado. Isso revela o nome do menino Deus conosco. No conosco não está incluído o rei, porquanto será aniquilado. Deus permanece com seu povo, aqui representado pelo profeta, apesar dos reis incrédulos e corruptos. Não é a dureza dos reis que impedirá a presença de Javé junto a seu povo. O menino, ou melhor, o seu nome, torna-se indicativo desta fidelidade e promessa (cf. Is 9.5s; 11.1ss.). Expressa o sinal da presença de Deus mesmo em sofrimento e desolação. Assim não é sinal somente para Acaz, mas torna-se símbolo da proximidade de Deus prestimoso junto a seu povo (8.8,10). Neste sentido o texto segue a linha dos textos messiânicos acima arrolados. Se Is 7 tinha ou não intenção de sê-lo é outra questão. A tradição vétero e neotestamentária assim o entendeu, porque obedece à mesma direção dos demais textos messiânicos no mesmo profeta. O messias de Deus opta pelos pobres da terra e abandona os poderosos. O messias é diferente dos davididas. O NT, especialmente Lucas, entendeu assim o nascimento de Jesus (Magnificat).

Ill – Meditação

Geralmente na noite de Natal, na maior parte das comunidades, os cultos são bastante bem frequentados. Em outros casos, as ceias natalinas e o convívio familiar substituem o culto. Na nossa sociedade de consumo o Natal tornou-se uma festa insossa e na maior parte das vezes os pastores ficam divididos entre uma adesão acrílica e um ataque moralizante de condenação do consumismo.

Nosso texto já possui uma tradição interpretativa nas comunidades, a saber, a leitura secular do texto em que se vê na mulher em Isaías a Maria dos evangelhos, e no Emanuel o Jesus de Nazaré. Considero que uma mera desmistificação ou desinterpretação para as comunidades constituirá um exercício de retórica que passará por cima das cabeças dos ouvintes ou então criará muita confusão.

Uma nova chave hermenêutica que considera a história conflitual, poderá ajudar a situar o Natal sob nova perspectiva. Há de se afirmar com toda a veemência o Deus conosco evangélico a despeito de toda a contrariedade do presente, mas ao mesmo tempo não se ignorará a ruptura de Deus com os poderosos. Os davididas, ignorando o mandato de servidores dos fracos, não têm futuro.

No Natal de 1988 acho que estaremos no Brasil com um presidente novo, e provavelmente com as eleições diretas as expectativas do povo estarão renovadas. Daí a necessidade de expor uma perspectiva do poder que considere na organização do Estado moderno um agente social chamado povo (entendido como conjunto de deserdados e marginalizados). Deus está conosco na pessoa de Jesus. Ele vem em nome do mesmo Deus do profeta. Vemo-lo no seu discurso e em sua prática. Ele põe-se do lado dos deserdados e marginalizados.

O profeta ajuda a entender a história salvífica como a dualidade de graça e desgraça. Natal é boa-nova de salvação para uns e juízo para outros. Em meio à conflitividade, Deus opta não pelos davididas de plantão, antes os abandona. Quando falamos em poderosos, damos a entender que há também os sem poder, os fracos e destituídos. O anúncio de Natal constitui-se para eles notícia de alegria porque são considerados por Deus.

O texto assim aponta a característica de Deus que perpassa como um fio vermelho tanto o AT quanto o NT. Sua atuação não sofre alteração. Os Acazes e os Herodes não têm futuro porque não atentam para os sofredores. Estes penam sob o seu mando e desmando. Pregar a boa notícia implica, portanto, também em anunciar a realidade de que nem tudo é paz e amor como estampam os cartões natalinos.

Se a alegria natalina consistir somente na expectativa do 13' salário isento do imposto de renda, essa alegria será fugaz. A esperança de parcelas significativas de nossas comunidades que vivem o seu Natal secularizado no consumo, essa esperança é desmascarada. Se o consumo (entendido agora como participação nos bens e serviços da sociedade) não puder ser de todos, colide com a expectativa de vida plena para todos. Mexer assim no bolso representa um juízo. Significa anular uma série de privilégios e regalias. Daí por que a expectativa da classe média e o poder que a atende não têm futuro. Olhemos para a animosidade gerada por ocasião da cogitação de qualquer alteração na tributação das rendas. (Está claro que o atual Estado brasileiro não é exemplar na aplicação desta tributação). O fenômeno da chiação é indicativo de que uma mudança mais profunda, de maior sacrifício, encontrará pouco eco. A palavra profética sempre será incompreendida nesta classe e por isso haverá pouca esperança dentro dela. Como o Deus conosco poderá compactuar com a organização da injustiça?

Natal desta forma é convite para associarmo-nos à opção de Deus. Esta opção tem dentro de si uma profunda mensagem de esperança em meio às instabilidades de nossa sociedade. Deus conosco é, por isso, motivo de alegria e congraçamento com todos quantos se juntam aos desamparados e abandonados de nosso mundo.

IV – Prédica

1. Deus dá o seu sim à criação e a seu povo. Apesar dos reis despóticos que não aceitam o senhorio de Deus, o povo não é abandonado.

2. Para estabelecer o seu senhorio, Deus desbanca os demais senhores. Graça e juízo estão próximos. O juízo revela-se na não aceitação do Filho de Deus (Jo 1.11).

3. Natal – mensagem de alegria não superficial, que não se ilude com uma festa de concórdia universal. A partir de Natal nossa vida enche-se de confiança e de profunda esperança.

V – Auxílios litúrgicos

1. Intróito: SI 27.1

2. Confissão de pecados: Senhor, nosso Deus! Confessamos que temos esmorecido em nossa prática de fé. Que temos confiado muito pouco em tua promessa de estar conosco todos os dias, apesar das dificuldades e problemas. Perdoa a nossa desesperança e reanima-nos na certeza de que tu não nos aban¬donas e que estás conosco de maneira especial em teu Filho Jesus Cristo. Tem piedade de nós, Senhor!

3. Oração de coleta: Abre, Senhor, nossos corações para a tua palavra! Que ela possa ser qual espada que separa a verdade e a mentira e nos ajude a clarear o teu caminho. Que sempre de novo reconheçamos que em Jesus Cristo fizeste a opção pelos que sofrem, pelos abandonados e desamparados. Amém.

4. Leitura bíblica: Jo 1.6-14; Lc 1.46-56.

5. Oração final: Agradecemos-te, Senhor, pelo fato de não nos abandonares em meio à nossa sociedade cheia de dor e injustiça, sem um mínimo de esperança. Aumenta em nós a confiança em teu amor e em tua graça, para que possamos olhar conforme a tua inclinação e tua opção, em especial para aqueles que estão sozinhos sem voz e sem vez. Sensibiliza-nos e mobiliza-nos na direção dos abandonados em nossa comunidade e em nossa cidade. Em nome de teu Filho Jesus Cristo. Amém.

VI – Bibliografia

– COMUNICAÇÕES do ISER. Rio de Janeiro. 5(19), maio 1986.
– EISIG, H. Das Buch Jesaja. Patmos-Verlag. Düsseldorf.
– HERBERT, A. S. The book of the Prophet Isaiah. Cambridge, 1973.
– RAD, G. v. Teologia do Antigo Testamento. São Paulo, 1974. v. 2.
– SCHWANTES, M. /safas (Textos Selecionados). Setor de Publicações da Faculdade de Teologia. São Leopoldo, 1979.

Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia