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Prédica: Gálatas 4.4-7
Autor: Gottfried Brakemeier
Data Litúrgica: Natal
Data da Pregação:25/12/1989
Proclamar Libertação – Volume: XV
Tema: Natal

l — O que o texto disse — na época de Paulo

Quem crê em Jesus Cristo está livre da lei. É este o tema central da carta aos Gálatas. Paulo reage a pessoas que julgam não haver salvação sem obras da lei. A fé de modo algum seria suficiente. Seria necessário algo mais para de fato merecer o nome de cristão. No entender do apóstolo, porém, isto significa anular o evangelho. Pois: Para a liberdade foi que Cristo nos libertou. Permanecei, pois, firmes e não vos submetais de novo a jugo de escravidão (Gl 5.1).

O trecho 4.1-7 se insere nesta temática, apresentando mais outro argumento em favor da tese central. Paulo usa o exemplo do herdeiro que, quando menor, pouco se distingue de um escravo (4.1). Está sob as ordens de tutores e curadores (4.2) até atingir a maioridade. Assim também os gálatas: Antes de conhecerem Jesus Cristo eram como menores, escravizados sob os rudimentos do mundo (4.3).

Aliás, a introdução deste termo causa surpresa. A partir de 3.23s. deveríamos esperar o apóstolo falar da escravidão exercida pela lei (judaica), não pelos rudimentos do mundo. Acontece que Paulo alude ao passado dos gálatas, que é pagão. Quem está querendo seduzir os gálatas são pessoas judaizantes (2.14). Querem introduzir a observância de algumas leis judaicas, sobretudo a circuncisão (5.2; etc.). Mas antes de se tornarem cristãos, os gálatas serviam aos rudimentos do mundo (STOICHEIA TOU KOSMOU – cf. 4.9). Trata-se de supostos poderes cósmicos, como os astros, que comandariam o destino humano e aos quais seria necessário servir. Restos de tal crença sobrevivem até hoje na astrologia. Pode ser que os sedutores dos gálatas (3.1) procurassem revitalizar também algo deste culto pagão (cf. 4.8s.).

De qualquer forma, é interessante observar que Paulo coloca a escravidão sob a lei e a escravidão sob os rudimentos do mundo no mesmo nível. Em ambos os casos se exige do ser humano a submissão a expressar-se em atos de obediência, respectivamente obras meritórias. Será isto o que vai salvar as pessoas? Paulo enxerga nisto a volta ao passado, incompatível com o Evangelho. Cristo fez de escravos livres, de menores maiores, concede às criaturas de Deus a qualidade de filhos.

É o que desdobram os v. 4-7. Devem ser lidos no contexto dos v. 1-3 e do todo da carta. Mas são compreensíveis em si. A vinda de Cristo é a virada da história. Tendo chegado a plenitude do tempo, Deus enviou seu Filho, nascido de mulher, sujeito à lei. Não há razão para atribuir significado supostamente profundo à expressão plenitude do tempo. Designa simplesmente o prazo previsto por Deus (cf. 4.2). Poderíamos traduzir: Quando, porém, chegou a hora… Desde então, nossa história está dividida em antes e depois de Cristo, o que corresponde também ao antes e depois de alcançarmos a fé.

Merece o mais alto destaque que esta passagem da condição de menor para a de maior de modo algum é automática. É obra do envio de Cristo, de sua encarnação. Foi ele quem resgatou os escravos da lei e lhes conferiu o status de filhos (v. 5). O termo APOLABOMEN certamente faz alusão ao batismo. É aí que o presente de Natal é concretamente recebido. Jesus Cristo, nascido de mulher, nos resgatou e dá-nos participação em sua própria natureza de Filho de Deus. Concede-nos dignidade ímpar. Dá-nos a maravilhosa liberdade dos filhos de Deus (cf. Rm 8.15s.). É este o resultado de Natal.

Contudo, ao novo ser que recebemos de Cristo deve corresponder uma nova conduta. Disto lembra o v. 6: E porque sois filhos, Deus enviou o Espírito de seu Filho em vossos corações que clama: Aba, Pai! Se por Cristo somos filhos, isto deverá ter manifestações concretas. Ao novo ser do cristão corresponde um novo espírito, uma nova mentalidade, um novo querer e agir. Cristãos recebem a mente de Cristo (l Co 2.16), o seu Espírito que dá nova orientação e expressão à vida. A manifestação mais imediata da filiação recebida é a confiança que ousa dirigir-se a Deus como filhos amados ao querido Pai (M. Lutero no Catecismo Menor). Aba é alocução carinhosa do pai pelos filhos. Portanto, Natal abre a possibilidade de se relacionar com Deus sem medo, raiva, decepção ou indiferença. Natal é a base e a razão do Pai-Nosso.

As consequências da concessão do espírito de Cristo (que é o Espírito Santo) são mais amplas, todavia. Consistem em toda uma nova maneira de se portar e de viver. Entra aí a ética: Se sois filhos de Deus, vivei como tais (cf. 5.25). Sobretudo importa insistir na liberdade. Cristãos não são escravos, são livres (v. 7). Naturalmente, também filhos têm compromissos. Mas não são escravos. Sabem comprometer-se de livre e espontânea vontade. São livres para servir, para dar, para fazer a vontade de Deus. E eles têm a promessa de serem herdeiros do Reino de Deus, de receberem a plenitude dos dons de Deus, de verem cumpridos seus justos anseios (cf. Mt 5.3s.).

Tudo isto, porém, não por próprios méritos, mas sim por Deus (DIA THEOU), colocado enfaticamente no final do v. 7. Paulo tem motivos para insistir frente aos legalistas da Galácia no sola gratia. É esta graça que liberta as pessoas. Desincumbe da necessidade de as pessoas se salvarem a si mesmas ou ao mundo e de realizarem o que só Deus é capaz de fazer. O Evangelho liberta antes de mais nada para a modéstia e ensina a abrir a mão para receber o que na verdade só pode ser recebido: a filiação divina, a liberdade, a confiança em Deus, a capacidade de crer, amar e esperar. Os gálatas desconfiavam da graça de Deus, insistiam na necessidade de obras meritórias e trocaram assim a liberdade por nova escravidão. Frente a esta recaída, Paulo insiste na liberdade cristã. Por Cristo somos feitos filhos de Deus, e isto gratuitamente, por exclusiva iniciativa de Deus. Filhos, porém, são livres. Portanto, vivei como filhos de Deus. É nisto que se resume todo o evangelho.

II — O que o texto diz — na situação de hoje

A mensagem central do texto é a do Cristo libertador. Mas cuidado. Toda contextualização precipitada corre o risco da perversão dos propósitos do texto e de pregar um outro Jesus (cf. 2 Co 11.4). Exegese bíblica deve ser fiel a ambos, ao texto e ao contexto. Em outros, termos, a preocupação com a relevância atual da pregação não permite a desconsideração da diferença de situação hoje e então. Também na reflexão do texto em pauta isto é importante.

1. A escravidão a que o apóstolo se refere e da qual Cristo liberta é uma escravidão culposa. Exterioriza-se em indevida adoração de poderes considerados semidivinos, respectivamente no escrupuloso cumprimento de exigências legais (a exemplo da observação de um calendário sagrado — cf. 4.10) com o objetivo de alcançar a benevolência de Deus. Não se trata de opressão social. Decorre de idolatria e de legalismo. Ê porque a libertação de que fala o nosso texto é interior. Acontece no nível da fé, equivale a desprendimento emocional, significa uma profunda reorientação das pessoas. A escravidão dos gálatas, portanto, difere em muito da sofrida pelo povo de Israel no Egito. Na atual situação da América Latina, porém, é predominantemente nesta que se pensa quando se fala em libertação. Sofremos sob as escravidões impostas, sob as dependências não pretendidas, odiadas, sob as quais gememos. Política salarial, estrutura fundiária, violência — eis apenas algumas das realidades que nos evidenciam nossa condição de vítimas. Nossa escravidão não é escolhida, é sofrida Nisto está a diferença entre as comunidades da Galácia e do Brasil de hoje. Que significa então: Jesus Cristo libertador?

2. Cristo liberta, dando-nos a dignidade de filhos de Deus. Reside nisto o propósito de sua missão. Deus, ao enviar seu Filho, demonstra interesse em sua criatura. Não quer que sucumba. Mostra que ama as pessoas. Quer libertá-las de suas prisões e fazer com que clamem: Aba, Pai! Natal coloca novos padrões. Representa a maior valorização do ser humano que é possível imaginar. Pessoas não são desprezível material humano, não são lixo que se joga fora, não são coisas a serem usadas e abusadas. São filhos de Deus! Desde o Natal também a mais miserável criatura está revestida da dignidade de alguém por quem Deus mandou seu Filho. Quão longe está o nosso mundo do Natal! Quanto cinismo, quanta brutalidade, quanta ação desumana se instalou entre nós zombando do amor de Deus. Na verdade não temos o direito de festejar o Natal. Nosso mundo (aliás, com inclusão de nós mesmos!) age diferente de Deus. Maltrata aqueles que Deus destinou para serem seus filhos. Graças a Deus, porém, Natal independe dos homens e das mulheres. Independe inclusive de nossa fé! Se cremos ou não — a criança em Belém é realidade, todavia. Como já dissemos, esta criança coloca novos padrões.

3. O nascimento de Jesus é uma realidade que nenhuma ação humana (ou desumana) pode invalidar. Nem mesma a chacina de Herodes disto foi capaz. Ainda assim, Natal quer ser acolhido pela fé. Quer traduzir-se num novo Espírito. Este, antes de qualquer coisa, vai manifestar-se numa nova maneira de orar e de relacionar-se com Deus. O efeito primário da fé é o cumprimento do primeiro mandamento. Quem diz: Aba! teme e ama a Deus e confia nele acima de todas as coisas. Por isto deve negar o culto a outros pretensos deuses, aos rudimentos do mundo modernos a exemplo de produção e consumo, progresso e tecnologia, bem como de muitas outras coisas, boas em si, mas prejudiciais quando adoradas. Quem diz Aba! cumpre também os demais preceitos divinos, sobretudo o do amor. Quem se sabe feito filho de Deus vai respeitar seus semelhantes como igualmente amados por Deus. Já temos pensado uma vez sobre a revolução ética que iria resultar do Natal, se de fato fosse respeitado e acolhido?

4. Exatamente por isto a libertação de que fala o texto é mais radical do que a libertação do Egito. Ataca a raiz das opressões sociais, que é a desvalorização das pessoas: O negro — assim se diz — vale menos do que o branco, a mulher menos do que o homem, o pobre menos do que o rico. A negação da dignidade humana a estes ou aqueles (isso aí não ê gente!!!) é a premissa do homicídio e do genocídio. Natal declara santo o ser humano, seja qual for a sua condição. Este é o verdadeiro presente de Natal. Não há mais razões para complexos de inferioridade ou tentativas desesperadas de mostrar quem nós somos e o que podemos. Da mesma forma não se permite mais a discriminação que nega a grupos ou a pessoas a qualidade de gente humana, seja isto em nome do lucro, da nação, de uma ideologia, da raça ou de outro ídolo qualquer. O amor de Deus, manifesto no envio do Filho, liberta do jugo imposto por leis, poderes, sistemas, crenças, obsessões, pessoas, por nós mesmos. Como seria o mundo, se todos se respeitassem como filhos de Deus? É a pergunta que o Natal nos propõe.

III — Pistas para a prédica

l. A Igreja cristã, responsável pela divisão da história a partir de Jesus Cristo, afirma que com o nascimento de Jesus (Gl 4.4) inicia algo novo em nosso mundo? Em que consiste? Numa análise sóbria deve-se admitir que o comportamento humano antes e depois de Cristo continua essencialmente o mesmo. Natal não conseguiu evitar os horrores das duas guerras mundiais, por exemplo, nem está evitando os sangrentos conflitos sob os quais sofre o povo brasileiro. Qual é a mudança que o Natal veio trazer?

2. A prédica poderia começar com esta pergunta. Ela é constringente. Natal é a saudade de um outro mundo, é o anseio por uma existência sem medo e violência. Convém levar muito a sério tais anseios. Assinalam que as pessoas ainda são sensíveis e têm sonhos. As emoções tão fortemente despertadas pelo Natal indicam que a brutalização de nossa vida ainda não é total. Há esperanças.

3. A novidade trazida pelo Natal-é a própria pessoa do menino Jesus. Ê ele que divide a história num antes e num depois. Por quê? Ora, porque, através dele, Deus declarou que ama sua criatura, perdoa-lhe o pecado e a liberta da obsessão de justificar-se por obras. Isto antes não estava tão claro assim. Agora, porém, não mais admite dúvidas: Deus quer que sejamos e vivamos como seus filhos. O efeito do Natal não consiste numa transformação mágica de nossa realidade, mas na oferta de uma nova dignidade, a da filiação (4.5). A prédica deve falar muito do que Deus fez em nosso favor, e isto não por mérito nosso. A criança nascida na manjedoura é o presente de Deus à humanidade (com tudo o que ela viria a dizer, fazer e sofrer).

4. Este presente, porém, compromete. Quer ser aceito e traduzido em vivência. Vamos acolher a criança que nasceu em Belém? Ou vamos reservar-lhe o destino de um menor abandonado? Seremos colaboradores em sua crucificação ou aprenderemos com ela o que significa viver como filho e filha de Deus? Natal é um chamado, um convite. Da mesma forma, porém, é profecia. Não mais permite o cinismo com que vida humana está sendo prejudicada e assassinada em nosso mundo. Voltamos a dizer: Natal coloca novos critérios éticos. Depois de Cristo não há mais sombra de dúvida que a destruição e o desprezo à criação de Deus (com inclusão da natureza) é crime!

5. É exatamente assim que o Natal liberta. Dá uma nova visão das coisas, dá um novo Espírito, dá-nos a liberdade de quem pode considerar-se amado por Deus. Ë o início de todas as demais libertações.

6. Sugiro concentrar a prédica no milagre e no dom da filiação, talvez na sequência aqui seguida. Nenhuma prédica pode exaurir a riqueza dos textos. A liberdade cristã será tema explícito em outras oportunidades do ano eclesiástico. Numa prédica de Natal poderá ser apenas rapidamente tocado. Pois a prédica deverá ser de fato uma prédica de Natal. Deverá falar do nascimento de Jesus e seu significado. Deverá transmitir evangelho e dar força para novamente enfrentar o dia-a-dia. Por isto, cuidado com excessiva polêmica! Permanece válido o princípio estabelecido na história de Natal pelo anjo: … eis aqui vos trago boa nova de grande alegria. Sem alegria, Natal não é Natal.

IV — Subsídios litúrgicos

1. Confissão: Senhor, nós te confessamos que, na verdade, não merecemos o teu Natal. Somos fracos no amor. Não raro temos causado sofrimento e, inclusive, temos complicado a nossa própria vida. Deveríamos ser diferentes, mais justos em nossos juízos, mais misericordiosos em nossas ações, mais engajados na promoção da paz e da justiça. Perdoa-nos, Senhor, e dá-nos força para a luta contra nosso próprio pecado. Tem piedade de nós.

2. Coleta: Senhor, obrigado por não abandonares o teu mundo. Em Jesus, tu mesmo vens para resgatá-lo. Amas, para que nós amemos a ti. Dá que mais esta lembrança do Natal não passe em brancas nuvens. Ajuda para que mude este mundo tão imerso em sofrimento e dor. Vem implantar a paz. Amém.

3. Intercessão: Interceder em favor de todos e todas que pouco ou nada experimentaram do Natal deste ano, que não sabem ou não sabem mais o que é amor, que em vez de alegria sentiram amargura. Especialmente:
a. Em favor dos famintos, das crianças desnutridas, dos que são forçados a jejuar neste Natal.
b. Em favor dos abandonados, dos idosos que não recebem visita, dos menores que ninguém acolhe, dos enlutados que perderam uma pessoa querida.
c. Em favor dos injustiçados, dos que perderam suas terras, suas safras, suas propriedades, dos roubados e assaltados, dos empobrecidos, vítimas da violência.
d. Em favor dos desesperados, dos desempregados, doentes, drogados, por todos os que carregam um fardo pesado.
e. Em favor dos culpados, teimosos, cegos, egoístas, imprudentes, fanáticos para que descubram o que serve para a paz.
f. Em favor dos que estão em cargos de responsabilidade, direção e governo, para que resistam à tentação da corrupção, sejam movidos pelo amor e sigam a meta da justiça.
g. Em favor da Igreja de Cristo no mundo, para que seja forte no testemunho das maravilhosas obras de Deus e no serviço a Suas criaturas, especialmente necessitados e fracos.

V — Bibliografia

– KLIEWER, G. U. Gálatas 4.4-7, em: Proclamar Libertação IX, 1983, p. 144s.
– LÜHRMANN, D. Der Brief an die Galater, Zürcher Bibelkommentare NT 7, Zürich, 1978.
– SCHLIER, H. Der Brief an die Galater. Krit. ex. Kom. VII, 13a. ed., Göttingen, 1965.
– SCHMITHALS, W. Die Häretiker in Galatien, in: ZNW 47, 1956, p. 25s.
– VOIGT, G. Meditação, in: Die lebendigen Steine, Göttingen, 1983, p. 45s.

Proclamar Libertação 15
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia