Prédica: Isaías 2.1-5
Leituras: Romanos 13.11-14 e Mateus 24.37-44
Autor: Hans Alfred Trein
Data Litúrgica: 1º Domingo de Advento
Data da Pregação: 29/11/1992
Proclamar Libertação – Volume: XVIII
Tema: Advento
As eleições municipais não foram o fim de um processo, mas o advento de outro. O texto de Isaías nos propõe refletir sobre as nossas mais profundas utopias políticas. No diálogo com a imagem profética do monte, em que Deus coordena a justiça e a paz entre as diversas nações, somos provocados a formular novamente como imaginamos o céu aqui na terra.
O advento celebra a confiante esperança. Esperar o que vem em nome do Senhor nos anima a não sermos mesquinhos, a não nos darmos por satisfeitos com pouco em nossa visão. As diversas experiências pequenas de reino de Deus não desfazem a figura do reino em sua globalidade e plenitude, mas exatamente enriquecem o quadro total. Advento é tempo de sonhar grande!
2. Considerações exegéticas sobre Isaías 2.1-5
2.1 O monte é o lugar de onde se vê mais longe, de onde se pode supervisionar, controlar, governar, resistir. O monte, como lugar mais próximo da divindade, é uma das mais primitivas figuras religiosas. Numerosas são as tradições que falam de um monte sagrado no centro do mundo, cujo cume toca os céus e cujas raízes chegam até o mundo subterrâneo (Bauer, p. 727). É uma espécie de eixo que une entre si céu, terra e mundo subterrâneo. Montes têm tamanha importância, que chegam a desencadear brigas de posse (p. ex., entre Javé e Baal no monte Carmelo, l Rs 18).
Os montes tradicionalmente sagrados de Javé são apenas o Sinai-Horeb (Êx 3.1; 4.27; 18.5; 24.13; l Rs 19.8), onde ele se revelou, e Sião (l Rs 8.10-13; SI 2.6; 3.5; 15.1; 43.3; 99.9; Is 27.13; 56.7; 57.13; 65.11; 66.20; Jr 31.23), onde reside, tam¬bém chamado simplesmente de monte santo, que, nos tempos messiânicos, será elevado acima dos outros montes (Is 2.2; Mq 4.1). O Deus supremo está nessa cabeça dos montes — um status religioso e não geográfico —, e diante dele todos os ou¬tros montes são coxilhas e suas divindades, no máximo subalternas.
A tradição do monte Sião acabou se impondo, mas foi fortemente questionada. Uma das brigas mais antigas entre judeus e samaritanos é precisamente em torno do monte, onde deveria ser o templo central de Israel. No período da reconstrução do templo em Jerusalém, depois do exílio babilônico, os samaritanos chegaram a construir um templo no monte Garizim. Até hoje, os samaritanos (restam ao redor de 540) sustentam que Deus escolheu o monte Garizim (umbigo da terra — Jz 9. 37), na cidade atual de Nablus (antiga Siquém), para ser sua moradia. A primeira grande revelação de Deus a Abraão, segundo Gn 22.2, teria acontecido num monte na terra de Moriá, que está localizada aos pés do Gairizim. Nessa briga pelo poder (e não pelo serviço) venceu Sião.
2.2. Miquéas tem praticamente o mesmo texto (Mq 4.1-3). Como em Isaías, a perspectiva esperançosa de Jerusalém restaurada sobre o monte santo se encontra em meio a palavras duras de juízo. Jerusalém é uma prostituta, um covil de ladrões e corruptos (Is 1.21ss.). Os cabeças de Jacó arrancam a pele e a carne de cima dos ossos dos pobres, os sacerdotes ensinam por interesse e os profetas adivinham por dinheiro (Mq 3.1ss.). Os trabalhadores da terra passarão um arado por cima de Sião, Jerusalém será um montão de ruínas e o monte do templo vai virar tapera. Jerus¬lém não é um lugar qualquer (topos), mas é a cidade que vive do campo (polis). É o centro do poder.
2.3. Também a tradição cristã valoriza os montes. Localiza, p. ex., a transfigração de Jesus (Mt 17.1) no monte labor (tabur = umbigo). Significativa, em Mateus, é a localização do principal sermão de Jesus num monte (diferente em Lucas: sermão da planura). Contudo, um monte muito alto, que a tradição localiza perto de Jericó, é o lugar da tentação mais perversa de Jesus (Mt 4.8): um governo de dominação e exploração. Além disso, por ser de difícil acesso, o monte é lugar para resistir (zelotes em 70 d.C., Bar-Cochba em 135 d.C., no monte Massada), para refugiar-se (Jo 6.15) ou para fugir (Mc 13.14).
Hoje em dia, durante o período das festas móveis em Israel (set-out), há também a chamada festa das nações. O auge dessa é uma grande manifestação de rua, em que grupos de cristãos fundamentalistas de muitos países afluem para Jerusalém, inspirados nessa figura do monte santo, de onde Deus reinará sobre o universo. De passagem acabam favorecendo exatamente o inverso da visão de Is 2; acabam fornecendo a sustentação ideológica para um sionismo (vem de Sião) estatal terrorista e tirânico.
Confira outras informações excgéticas e análises de termos originais no Proclamar Libertação VI, pp. 225ss.
3. Os outros textos ajudam a desenhar os sonhos?
Os outros dois textos trazem para o desenho do sonho a dimensão temporal. O quando ninguém sabe. Mas há sinais indicativos.
3.1. Em Rm 13.11-14, Paulo traz a figura da noite que já vai alta e da aurora que se aproxima. Está se referindo à velha estrutura sócio-econômica e político-religiosa. Ela está gasta. Deu o que tinha a dar. Foi desnudada por Jesus. A aparente vitória da noite na cruz foi superada pelo dia da ressurreição. Os cristãos são solicitados a deixar de movimentar-se numa estrutura que produz a morte (a respeito de carne, cf. Estudos Bíblicos 7, pp. 73-85) e a revestir-se do Senhor Jesus.
3.2. Em Mt 24.37-44, as folhas que brotam na figueira são o sinal do verão chegando. Dores, grande tribulação e catástrofes ecológicas prenunciarão a vinda do Filho do homem. Interessante é a analogia entre a vinda repentina do Filho do homem e a situação anterior ao dilúvio, igualmente inesperado. Discípulos e discípulas de Jesus vivem em alerta vermelho, em prontidão para o novo que vem com o Filho do homem. Isso marca o seu modo de viver já agora.
Advento é tempo de sonhar grande! É tempo de celebrar a morada definitiva de Deus aqui na terra. É tempo de alegrar-se com a política de Deus. A irrupção repentina do novo contradiz nosso raciocínio lógico; este movimenta-se mais no lento e gradual. Será que conseguimos ver alguns sinais de superação do velho e prenúncio do novo? O que disseram as eleições?
4. Meditação
4.1. O monte comunica verticalidade, poder e rigidez. Bem diferente do deserto, onde tudo é mais horizontal, é possibilidade. O monte pode representar uma estrutura piramidal de sociedade. De cima desce a lei! Essa figura traduz o anseio de muitos que consideram impulsos igualitários o princípio da esculhambação.
O desconforto ainda aumenta quando lembramos que a passagem da tenda para o templo central simboliza a passagem do movimento para a instituição, de uma organização política popular para uma estrutura estatal. A tenda acompanhou o povo; o templo distanciou-se do povo. O que era democrático tornou-se autoritário. O que era inclusivo tornou-se exclusivo. A briga dos montes é uma briga de poder.
Estaria Isaías querendo apresentar-nos uma TEOCRACIA aceitável?
A profecia de restauração de Jerusalém e do monte santo como sede do governo de Deus tem cheiro de reformismo. Não se mexe profundamente na estrutura verticalista. Jerusalém, estabelecida como moradia de Deus desde os primórdios, legitimou o reinado, corrompeu-se, precisou ser restaurada, desviou-se, precisou ser novamente restaurada… assim como um governo se elege em cima da corrupção do anterior e, ao final, acaba evidenciando mais podridão ainda.
A sensação de mero reformismo praticamente se impõe quando a ideia de restauração se movimenta apenas dentro dos limites da sociedade de Estado. Uma teocracia concebida nesses moldes tem a fisionomia do Irã. No entanto, é preciso sonhar mais alto.
A tradição de teocracia, a que se refere esse texto, parece muito mais estar vinculada ao período anterior ao surgimento do reinado (l Sm 8; Jz 9.7ss.). Nessa direção indicam os termos julgar e corrigir e a diferenciação feita entre goyim (nação como grandeza política) e amim (povo como grandeza social). São os goyim (grandeza política = Estado) que não levantarão mais a espada um contra o outro, nem aprenderão mais a guerra.
O que estava concebido para ser provisório acaba se eternizando (cf. Houtart, pp. 16-20). A visão, o sonho de Isaías 2.1-5 imagina, então, uma espécie de ONU comandada por Javé, sem a vergonhosa desigualdade que nela existe hoje e sem a concorrência de chefetes de Estado?
4.2. Guerras são realizadas pelos Estados e não pelos povos. Quando chefes de Estado são apoiados internamente para a guerra, então isso tem razões claramente isoláveis, como a malograda tentativa política de coesão argentina em torno das Malvinas, ou razões econômicas (petróleo) e marketing mundial de artefatos militares no Golfo Pérsico.
Os povos sofrem as guerras que os Estados lhes impõem. Não preparar-se (v. 4 — Bíblia na Linguagem de Hoje) para a guerra apenas teria um efeito desmilitarizante. Mão aprender (v.4 — Almeida e Jerusalém) mais a guerra inclui os meios de comunicação, que então passariam a não dar mais sustentação ideológica à guerra, resumida naquela fofoca útil para a manutenção das sociedades de Estado — lamentavelmente também muito difundida entre cristãos: Se queres a paz, prepara-te para a guerra.
A teocracia autêntica só terá lugar quando a humanidade tiver superado o está¬gio de organizar-se em sociedades de Estado. Aí dá para imaginar tanques de guerra sendo transformados em tratores agrícolas, mísseis em ferramentas para a terra e ogivas nucleares em fontes exclusivas de energia.
E, então, a verticalidade da teocracia não significará uma sociedade piramidal de exploração e opressão. As coisas velhas já terão passado; tudo será novo.
5. Prédica
Suspeito que o desencanto com a política continue. Mas é apenas um desencanto, uma desesperança, é noite escura, ou está dando para ver algum sinal de alvorada ou deverão? A resignação diante da política suja nas sociedades de Estado, o pensamento dualista entre fé e política dificultam a reflexão política no culto. Mas Is 2.1-5 não permite fugir. A abordagem tem em vista o mundo, e é preciso cuidar para não decair em chavões momentaneamente de plantão. Os diversos textos eminentemente políticos mencionados acima sugerem como prédica uma abordagem bíblica da política de Deus.
5.1. Em primeiro lugar, eu tentaria ouvir e refletir o que o povo diz: A política é suja. Talvez seja interessante lembrar políticos saídos de organizações populares, que foram engolidos pelo Estado. Quando na história a Igreja de Cristo assumiu o Estado, seus melhores propósitos acabaram corrompidos: prevaleceu o poder e ficou suprimido o serviço. Revoluções fazem avançar a história, mas não realizam a finalidade última da história. O beco sem saída é que, nas sociedade de Estado, a política é essencial e estruturalmente suja e corrupta.
5.2. Em segundo lugar, eu tentaria mostrar que o Estado não é a única organização política possível. Os textos de l Sm 8 e de Jz 9.7ss. podem ajudar a ilustrar isso. A visão de Isaías retoma a organização política tribal, anterior à formação do Estado (Houtart, pp. 16ss.). Temos, ainda, o exemplo das sociedades indígenas sem Estado. Sem querer retornar na história, Isaías não deixa de firmar o pé diante do Estado de sua época, mas seu coração bate pela superação do provisório que teve a ilusão de eternizar-se.
5.3. Em terceiro lugar, é necessário afirmar que Deus, através de Jesus Cristo, entrou na política suja para superá-la. Jesus foi para a cruz, e o Criador exaltou-o como Senhor sobre toda a terra (Fp 2.5-11). Esse ato político de Deus faz estremecer as bases dos chefetes de plantão e de seu poder de trevas. Isso pode ser sublinhado biblicamente por textos como Is 11.1-10; 65.17-25; Zc 8.1-8 e Ap 21.1-8. Entre outras consequências aprazíveis, armas de morte são transformadas em instrumentos de trabalho para a vida.
E viva o reino de Deus, um conjunto de sociedades sem Estado! Está chegando aí, sem que se saiba a hora. Advento não é lembrança, mas alegre esperança pela realização dessa grande visão.
6. Subsídios litúrgicos
1. Hino: HPD 235
2. Intróito: Advento é a alegre esperança pelo reino de Deus, que vem vindo, e pela nova política, que Deus vai instaurar entre nós. Pois assim diz o Senhor: Eis que eu crio novos céus e nova terra; e não haverá mais lembranças das cousas passadas (Is 65.17). E o programa de governo de Deus é que não haverá mais choro nem clamor, crianças não viverão apenas poucos dias, velhos se alegrarão nas praças, trabalhadores e trabalhadoras aproveitarão a fartura do seu trabalho. Deus mesmo se alegrará conosco. Cantemos louvores ao Trino Deus!
3. Confissão de pecados: Misericordioso Deus! Todos nós fazemos parte de uma sociedade que está afundada na lama. Ao invés de sermos fermento para dentro da sociedade, deixamos que seus valores penetrem em nossos corações, diluindo o testemunho de sal e luz que Tu nos encarregaste de ser. Hoje Te pedimos perdão por nossa culpa de sermos tão passivos na política. Reduzimos nossa participação às eleições. Resignamos diante da corrupção e nos adequamos a ela, para resolver mós os nossos problemas mais imediatos. Assistimos inertes como um governo depois do outro rouba e ofende o povo. Perdoa-nos, Senhor, a nossa omissão. Perdoa, ó Deus, a nossa preguiça em sonhar com a vinda de Teu Reino e de viver já agora de acordo com essa esperança. Tem piedade de nós, Senhor.
4. Absolvição: Deus perdoa os pecados de todas as pessoas que se arrependem sinceramente e lhes dá condições de melhorarem o seu testemunho de fé. Pelo profeta Jeremias Deus nos garante: Na mente lhes imprimirei as minhas leis, também no coração lhas inscreverei; eu serei o seu Deus, e vocês serão o meu povo (Jr 31.33). Glória a Deus nas maiores alturas!
5. Oração de coleta: HPD, p. 376, último parágrafo. Orar em conjunto com a comunidade.
6. Leituras: Escolher um dos muitos textos bíblicos políticos mencionados. Por irem na mesma direção, não terão um efeito dispersivo. Sugiro que se façam duas leituras entremeadas pelo canto ou aclamação: (ensinar refrão de cor):
Refrão: Bendita, Bendita, Bendita a Palavra do Senhor! Bendito, Bendito, Bendito quem vive com amor!
A Palavra de Deus escutai, no evangelho Jesus vai falar: a justiça do reino do Pai procurai em primeiro lugar, (refrão)
7. Credo Apostólico em resposta à Palavra de Deus.
8. Hino: HPD 11.
9. Intercessão: Louvor a Deus pela esperança que renova em nós nesse Advento. Agradecimento a Deus pelo serviço que nos prestou com sua Palavra. Agradecimento pela razão para entender a Palavra e pela assistência do Espírito Santo para captarmos o que está atém da razão. — Intercessão pelos que sofrem opressão e violência de Estado, pelas vítimas de guerras oficiais e dos conflitos de baixa intensidade para controlar países do Terceiro Mundo. — Pedido para que Deus inscreva suas leis em nossas mentes e corações, para que eliminemos a violência de nosso agir; para que anime a crer e nos encoraje a vivermos desde já sob o seu governo.
10. Hino final: HPD 97.
7. Bibliografia
BAUER, Johannes B. Dicionário de Teologia Bíblica. São Paulo, Loyola, 1973. V. 2.
HOUTART, François. Religião e Modos de Produção Pré-Capitalistas. São Paulo, Paulinas, 1982.
KIRST, Nelson. Auxílio Homilético sobre Is 2.1-5. In: Proclamar Libertação. São Leopoldo, Sinodal, 1980. V. 6.
RICHARD, Pablo. O Fundamento Material da Espiritualidade. In: Estudos Bíblicos, Petrópolis, Vozes (7):73-85, 1985.
Para a reflexão sobre a quadrissemana de Advento, consulte também os pontos l e 5 da meditação para o 3° Domingo de Advento.
Proclamar Libertação 18
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia