Prédica: Mateus 3.1-12
Leituras: Isaías 11.1-10 e Romanos 15.4-9(10-13)
Autor: Carlos Musskopf
Data Litúrgica: 2º Domingo de Advento
Data da Pregação:
Proclamar Libertação – Volume: XVIII
Tema: Advento
1. João Batista
Escrevo este estudo nas vésperas da festa de São João. Essa festa tem a ver com pipoca, quentão, roupa de caipira, casamento na roça, fogueira. Esta é a única que tem relação com o João histórico; as outras são adaptações culturais que nós, no Sul, não conhecemos.
João seguramente foi uma decepção para seus pais. Tão esperado, tão desejado, tão demorado e, quando ele vem, torna-se adulto e rebelde. Filho de pais que ambos eram justos diante de Deus, vivendo irrepreensivelmente em todos os preceitos e mandamentos do Senhor (Lc 1.6), João tinha tudo para tornar-se alguém certinho, com futuro garantido como sucessor do pai no cargo de sacerdote. Quanto à discussão se ele chegou a participar da comunidade dos essênios em Qumran, ela é velha e interminável.
Importante é o caráter desalojado e despojado do profeta. Sobretudo, é importante o fato de João ter uma proposta clara, entendível. Naquela época (como hoje), havia diversos pregadores propondo meios, caminhos, soluções para as perguntas e angústias do povo. E o sucesso de João se deve à clareza de suas respostas. João apontava para os próprios erros das pessoas; não tinha medo de colocar o dedo na ferida. E tinha planos concretos, objetivos, como os apontados em Lucas 3.10-14. Não se preocupava tanto em falar do que não se devia fazer, mas dizia claramente o que se deveria fazer. Isto causou a preocupação, a inveja, a insegurança dos líderes sem moral e sem escrúpulos que reinavam sobre Israel. Causou também sua morte. João não enrolava, não usava de meias-palavras para evitar conflitos ou não ferir suscetibilidades. W. Barclay cita Diógenes: A verdade é como a luz em olhos irritados e acrescenta: quem nunca ofendeu ninguém jamais fez bem a alguém. A energia para tal coragem e ousadia João tirava de sua profunda e sincera humildade.
2. Texto
O texto é cheio de detalhes:
V.1: Naqueles dias = Mateus pressupõe que os leitores sabem que dias são esses. Lucas tem mais elementos (3.1). Estranha é a expressão no deserto, pois lá ele não poderia balizar. Com certeza, Mateus busca essa localização para harmonizar com o texto de Isaías, citado no v. 2. Mas se sabe que João batizava nas duas margens do rio Jordão, à altura das terras pertencentes à Judéia.
V. 2: Arrepender-se é a palavra-chave do texto, pois algo de definitivo e radical vai acontecer com esta experiência; afinal, o reino dos céus está próximo.
V. 3: Ao citar Isaías, Mateus e os outros sinóticos usam as palavras, mas não o sentido. O sentido de Isaías estabelece a ligação entre no deserto e preparai o caminho; afinal, fala do retorno do povo do exílio. Também o Senhor em Isaías é Javé, o Criador, enquanto que João aponta para o Filho, Jesus.
V. 4: Mesmo sem mencionar Elias, aqui é feito um paralelo com João.
Vv. 5-6: Mateus exagera um pouco, falando de toda a Judéia. Difere também de Lucas (3.3), que diz que João foi ao povo e pregou. Aqui é dito que o povo veio para ouvir. A confissão de pecados antes do batismo corresponde à velha ordem que está por ser extinguida.
Vv. 7-10: As diferenças entre os sinóticos são notórias. Marcos é o mais conciso; Mateus bebeu na fonte Q, mas Lucas deve ter tido acesso a ainda outra fonte. A figura que João usa, com víboras que fogem, vem da vida no deserto. Não só serpentes, como escorpiões e outros animais perigosos viviam em matas secas de pasto. Qualquer faísca provocava um incêndio e fazia com que esses animais fugissem em louca disparada pelo deserto para salvar suas vidas. O arrependimento vem ligado a uma mudança radical, sem volta, de atitude. Alguém já disse: O verdadeiro penitente é o que volta a ter a oportunidade de cometer o mesmo pecado, nas mesmas circunstâncias, e não o faz. Este câmbio é necessário para todos, inclusive aos filhos de Abraão. Da mesma forma, não há tempo a perder. O fogo era elemento constante na apocalíptica judaica e introduz a abertura do novo que o Espírito produz (v. 11).
Vv. 11-12: De uma forma muito clara, Mateus expressa o velho e novo batismo conforme João. O velho tem água, decisão própria, arrependimento. O novo vem e arrebata e não há mais lembrança ou relação com o velho: é diferente (limpará completamente a eira). O velho permanecerá queimando em fogo inextinguível, lembrando para sempre qual é a diferença.
3. Meditação
Está claro que o centro da mensagem do texto é o arrependimento. João clama no deserto, chamando para a necessidade de um novo pacto entre Javé e seu povo. O velho pacto, baseado na etnia, na eleição e na lei mosaica, tinha esgotado seu modelo, suas possibilidades. Etnicamente, Israel está exausto. As sucessivas derrotas políticas e militares criaram uma tremenda frustração no meio do povo. Hoje se fala em crise de identidade. O fato de ser da linhagem de Abraão não significava mais grande coisa. O povo está tão dividido em grupos, partidos e seitas, que reivindicavam cada um para si ser o verdadeiro Israel, que tudo virou nada. E João confirmou isso. Até das pedras podem surgir filhos de Abraão (v. 9). O considerar-se povo eleito de Javé também entrara em desgaste. O poder não estava em suas mãos. Somente à custa do servilismo humilhante dos saduceus é que Israel ainda está de pé e até tinha certas regalias: o culto ao imperador não era exigido, mas o culto a Javé tinha virado negócio e a pregação, ficado estéril. Cada um dos grupos rivais e radicais existentes obedecia a aspectos da lei mosaica, dogmatizando estes aspectos e anatematizando qualquer posição contrária ou diferente. Portanto, a lei não era mais critério de identidade, de conduta geral, mas era usada para acusai o um pó rival, para justificar um comportamento sectário e, muitas vezes, violento.
Dentro deste contexto aparece João Batista com sua santa maluquice. É uma pessoa ousada, que prega com tremenda ousadia e que vive o que prega. Tem um despojamento pessoal típico dos grandes profetas. Não dedica momentos ou partes de sua existência à pregação; ele corre o risco da aventura, do desprender-se absolutamente de tudo que significa segurança, proteção, conforto. Um tipo de atitude que nós admiramos, mas temos dificuldades em seguir. Hoje também existem pessoas que se dedicam integralmente à sua vocação, à tarefa que lhes foi proposta. Admiramos estas pessoas, sua coragem, bondade, humildade. Mas não conseguimos seguir-lhes os passos de perto. São passos muito ousados, mágicos, contestadores. Essa é a função, esse é o papel do profeta: ter uma atitude, uma prática que nós gostaríamos de ter, mas não conseguimos; uma atitude que joga a história para a frente. O profeta tem a capacidade de romper a barreira do que está dado, do que está estabelecido, com sua inércia, com seu jogo marcado, com suas regras rígidas e, normalmente, injustas. O profeta inspira o sonho dos que estão acordados — ou se deixam acordar. O profeta nos leva a olharmos para o ainda invisível, a acreditar mós no incrível.
A inquietude ousada do profeta chega ao ponto absurdo e sublime de afirmar o fim do arrependimento. O arrependimento chegará ao fim porque, na sua visão, vai se tornar desnecessário. Eu vos batizo com água, para arrependimento, mas aquele que vem depois de mim (…) vos batizará com o Espírito Santo e com fogo (v. 11). Na sua santa demência, João projeta um futuro de gente tão boa, tão maravilhosamente perfeita, que não terá do que se arrepender. As pessoas batizadas com o fogo sobreviverão na santidade e justiça, pois o que não presta ele queimará (…) em fogo inextinguível (v. 12).
Participar dessa nova realidade, do reino que está próximo, não é resultado da lei, não está vinculado à etnia ou eleição parcial. Deus, em Cristo, promove um novo veredito eleitoral e desta urna sai vitorioso o que for batizado com o Espírito Santo e com fogo.
João sabia que os velhos tempos estavam no fim. Sabia que algo radicalmente novo estava por aí. Algo que confundia a cabeça das pessoas. Que fazia multidões o procurarem no deserto e que provocou a ira de outros tantos que não ousa ram sintonizar com a visão. Algo que criava expectativas e esperanças, ao mesmo tempo em que despertava medo e receio quanto ao desconhecido. Algo que significou alívio, alegria, paz e conforto para as pessoas de coração e mente humilde e tremor aos soberbos.
As previsões de João se realizaram em parte. Jesus veio e mostrou, na íntegra, que a sua pregação era — e continua sendo — viável. Ou seja, Jesus, embora ser humano igual a nós, inaugurou o novo tempo. Isto significa que aquilo que João loucamente previa é possível. Mas, por outro lado, o poder do Espírito e o fogo santo têm encontrado barreiras internas e externas aos seres humanos para penetrar, dissolver, libertar. Preferimos a segurança do pecado à insegurança da salvação. Segurança e insegurança entre aspas, porque seu uso está invertido, pervertido. Como pais, tios/tias, padrinhos/madrinhas, avós, preferimos a segurança dos velhos métodos de educação e disciplina à insegurança de propostas inovadoras que apostam na construção de personalidades independentes e livres. Como cidadãos e eleitores, opta-se por propostas que não darão certo. Mas parece ser melhor investir em algo que já se conhece do que em algo que é desconhecido, Pode ser pior, dizem alguns. Esses mesmos que crucificaram Jesus.
4. Pregação
Apesar do tom negativo da meditação, a prédica deveria ter um tom positivo. Deveria ressaltar os aspectos santos das maluquices de João e traçar paralelos a maluquices atuais, seja no mundo como um todo, seja na comunidade em particular. Ressaltar os aspectos positivos de pessoas ou grupos da comunidade que ousam trabalhar, ouvir, falar, cantar, animar os outros, deverá ser útil na pregação. Neste particular, importa saber ouvir a juventude. Normalmente, é o grupo mais desinstalado da comunidade, que pode, com sua rebeldia, com sua inquietude, fazer com que os horizontes se ergam e se ampliem.
Uma pitada de humor sempre vem bem. Via de regra, nossas prédicas são sérias e tristes; nada impede que sejam sérias e alegres.
5. Bibliografia
BARCLAY, William. El Nuevo Testamento — Mateo I. Ed. La Aurora, Buenos Aires, 1973.
M. NEILE, Alan Hugh. The Gospel according to St. Matthew. St. Martin's Press New York, 1965.
MILLER, Madeleme.Harper's Bible Dictionary. Harper&Row, Publishers, Inc., 1973.
BORN, A. van den. João Batista. In: Dicionário Enciclopédico da Bíblia Ed Vozes, Petrópolis, 1977.
Proclamar Libertação 18
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia