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Prédica: Gálatas 4.4-7
Leituras: Isaías 63.7-9 e Mateus 2.13-15,19-23
Autor: Eduardo Gross
Data Litúrgica:  1o. Domingo após Natal
Data da Pregação: 27/12/1992
Proclamar Libertação – Volume: XVIII
Tema: Natal

1. A carta, o contexto e o texto

A Carta do apóstolo Paulo aos Gálatas tem a liberdade como tema fundamental. A motivação principal para o apóstolo escrever a carta parece ter sido a influência de teses judaizantes, que desvirtuavam a liberdade cristã na(s) comunidade(s). Havia quem pensasse na necessidade de circuncisão, por exemplo (5.2; cf. 2.3). Paulo pretende chamar a atenção para que não se retroceda da liberdade dada por Cristo a uma fé que se prende novamente a ritos, práticas exteriores, que exigem mais atenção do que fé e amor ao próximo.

Tendo essa situação como pano de fundo, a carta apresenta, nos dois primeiros capítulos, uma exposição histórica por parte de Paulo do seu ministério. O final desse capítulo já inicia uma discussão teológica, que perpassa o terceiro e o quarto capítulos. O quinto traz uma exortação final: que os gálatas permaneçam no evangelho da liberdade. Sua parte final e o último capítulo contêm admoestações generalizadas.

Nosso texto encontra-se, pois, na parte da discussão teológica propriamente dita. Para a correta compreensão de 4.4-7, é necessário ler ao menos de 3.23 até 4.11. Para a reflexão na prédica, no entanto, pode ser utilizado apenas 4.4-7, ainda mais considerando que se trata do primeiro domingo após o Natal. Esse contexto menor traz dois exemplos para a compreensão da mudança de realidade que ocorre com a vinda de Cristo. No primeiro, a lei judaica é comparada a um pedagogo (aio) que leva a criança a aprender até que possa, depois de certa idade, aprender por conta própria. No segundo, ela é comparada a um tutor que dispõe dos bens do herdeiro enquanto este for de menor idade. Essas comparações parecem dar a entender um caráter preparatório da lei judaica, como se até então não houvesse maturidade para uma liberdade plena, trazida pela fé em Jesus Cristo (3.25). As consequências para a vida e para as relações sociais são apresentadas em 3.28. O texto de 4.4-7 descreve um pouco mais minuciosamente a vinda de Cristo, enquanto os versos 8-11 indicam a queda da liberdade dos gálatas, caso se confirme seu desejo de se submeter aos preceitos rituais e legais judaicos. Ao invés de considerar essa atitude um crescimento na fé, Paulo a compara ao passado pagão da(s) comunidade(s).

O texto de 4.4-7 tem traduções bastante literais em Almeida e na Bíblia de Jerusalém. A Bíblia na Linguagem de Hoje interpreta bastante, mas corresponde ao essencial. Talvez se deva prestar atenção ao fato de que no tempo certo (v. 4 — BLH) é uma das interpretações de a plenitude do tempo (Almeida); no v. 6, a nota de rodapé da BLH corresponde mais ao sentido literal. Já há dois estudos que tratam desse texto: um no PL IX e outro no PL XV.

2. O tempo histórico

Jesus existiu. Ele foi gente. Isso é o que está escrito nos versículos 4 e 5. Os autores dos dois estudos anteriores nos PIs (Kliewer e Brakemeier) fala que não se deve dar atenção demasiada ao sentido da plenitude do tempo. Acho que isso está certo, no sentido de evitar discussões supérfluas sobre a razão de ser aquele o tempo da vinda de Jesus, e não outro. Mas acho que levar em consideração o tempo ajuda a dar real valor ao fato da encarnação.


Nesse sentido, também não posso concordar com Goppelt (Teologia do NT pp. 336-8), para quem Paulo não conhece 'história da salvação' como processo histórico (p. 338). Os próprios exemplos a que Paulo alude em nosso contexto vão contra essa ideia. Além disso, os textos de Paulo estão permeados por um pano de fundo apocalíptico, mesmo ele não sendo apocalíptico. Em todo caso, como o processo histórico é uma das preocupações centrais da apocalíptica, essa preocupação também deve ter influenciado o apóstolo. A ideia de uma plenitude do tempo justamente aparece em contextos apocalípticos/escatológicos (Tobias 14.4 ou 5; Dn 12.13; Lc 21.24; cf. Ef 1.9-10) e pressupõe uma concepção de processo histórico.

O que Paulo não faz — e o que nós também não devemos fazer na pregação — é tecer especulações sobre o tempo. Mas o que ele faz — e essa também é nossa tarefa no Natal — é apontar o sentido real de Jesus ser enviado na plenitude do tempo: o sentido é que o nosso Deus não é um Deus imóvel, apático. Ele se preocupa com o tempo (hoje dizemos com a história). Ainda mais: o nosso Deus se faz ser histórico. E isso de uma vez para sempre. Uma vez encarnado, nosso Deus não desencarna mais, como no espiritismo. Para Paulo, a plenitude do tempo está nesse momento em que esse nascido de mulher, nascido sob a lei, nos resgata da lei. O Natal nos lembra de que o nosso Deus Eterno é Deus histórico., Esse é um primeiro ponto sobre o qual podemos pregar.

3. O tempo mítico

Consequência do Natal, em nosso texto, é Pentecostes. O Deus histórico continua preocupado com o tempo. Ele faz de nós pessoas que agem no seu Espírito. Como seus filhos e suas filhas, também temos a herança da graça. Isso é o que dizem os versículos 6 e 7.

Que o Natal tenha sido um evento histórico, disso nenhuma pessoa cristã sincera pode duvidar. Em Jesus, Deus se fez pessoa humana, e isso aconteceu mesmo. Mas como lembrá-lo? De um lado, é fundamental descobrir a encarnação do Espírito de Deus na história atual. Esse era o ponto anterior. De outro lado, existe a festa de Natal. No domingo de hoje, ela já passou. Por isso dá para refletir com mais calma sobre ela.

Ultimamente, ouvem-se muitas reflexões nas prédicas de Natal sobre o que não é Natal. Natal não é pinheirinho; Natal não é Papai Noel; Natal não é dar presentes. Isso tudo é verdade. E o que a comunidade faz depois do culto? Enfeita o pinheirinho, fantasia-se de Papai Noel e troca presentes (quando dá). Acho que, ao invés de pregar contra o consumismo no Natal, a gente tem que começar a olhar se as pessoas das nossas comunidades ainda têm dinheiro. Os últimos dois Natais foram bem magrinhos. Se a ideologia capitalista quis transformar a mensagem revolucionária da encarnação pobre de Deus em fonte de lucro, por aqui ela se deu mal: os agricultores vêm se transformando, cada vez mais, de magos em pastores, e nem se pode mais festejar o Natal direito. Por isso, acho que o cristianismo tem que aprender um pouco das outras religiões não-históricas. Nós também temos os nossos mitos. O Natal, além de seu fundo histórico, também tem o seu fundo mítico.

Portanto, se para o apóstolo Paulo a experiência do Natal está profundamente ligada à de Pentecostes, por meio da filiação tanto de Cristo como da nossa em relação a Deus, por que a gente se esforça para tirar toda a graça do Natal com discussões racionalizadas? O texto nos convida a deixar o espírito (do Natal?) tomar conta da gente. É verdade que isso contraria um pouco a luta contra os fracos e pobres rudimentos (v. 9) por parte de Paulo. Mas ele também deu leite aos coríntios para beber, e não alimento sólido (1 Co 3.2; cf. Hb 5.12). A gente também precisa fazer mingau no Natal: falar um pouco do sólido, um pouco do líquido. É bom lembrar que todo mundo ainda está para receber a herança de filho e filha de Deus em sua plenitude (v. 7).

4. As leituras (Is 63.7-9 e Mt 2.13-15,19-23)

A leitura do Antigo Testamento só se revela plenamente compreensível se o texto é lido adiante. Então se vê que as benignidades e os atos gloriosos de Deus se referem aos eventos salvíficos do êxodo, após os quais o povo se rebelou, e agora o profeta pede que a aliança seja refeita. Há aqui boas ligações com o Natal:

a) o êxodo equivale no AT, como evento salvífico, a Cristo no MT;
b) a esperança por uma redenção nova em Isaías aponta para a plenitude do tempo (deve-se tomar aqui o cuidado de observar que o profeta se preocupa com o santuário maculado — v. 18 —, o que equivale a preocupações bem materiais, das quais ele espera redenção comparável à dos versos 7-9);
c) a ligação entre Deus e a história humana não é algo que começa em Cristo, mas já perpassa — de forma especial — a revelação de Deus na história do povo de Israel.

O Evangelho de Mateus nos lembra que o caminho da encarnação é um caminho de contradição com os poderes do mundo. No caso de Jesus, isso se transformou em conflito explícito desde o princípio. Jesus esteve não apenas sob a lei judaica, como dizia Paulo aos gálatas, mas também sujeito às arbitrariedades do poder. A perseguição de Herodes, como prefiguração da cruz, já revela o preço do resgate da lei e do recebimento da adoção de filhos de Deus, assim como mostra a consequência do assumir a história (Gl 4.5).

5. A reflexão na prédica

Pontos possíveis:

a) Refletir sobre a encarnação, o caráter distintivo do nosso Deus (que assume o tempo/a história) em relação a outros deuses (puros objetos de crença, não situados no real). Lembrar o paradoxo: em Jesus, o nosso Deus se tornou criança — brincou, chorou, correu, teve que ser cuidado por Maria e José.

b) Lembrar que o Natal quer nos animar, dar esperança, pela confiança de que a história humana é, afinal de contas, lugar da preocupação e da revelação de Deus; o que não é motivo de passividade, mas de esperança motivadora.

c) Refletir sobre nossas festas de Natal: o que nelas ainda lembra a mensagem de Jesus? Dar presentes pode lembrar a abertura para o amor ao próximo, por exemplo. Os corais que cantam em nossos cultos, grupos musicais e de teatro representam, além de pessoas, engajadas na comunidade, dons do Espírito que continua em nosso meio. Uma pregação moralista não vai mudar, com certeza, o jeito de as pessoas festejarem. Pode ser interessante buscar a essência por trás dos pálidos sinais que nosso mundo oferece.

d) Fazer um balanço das festas. Quem em nossa comunidade realmente festeja? Quem ainda consegue dar presentes? De quem ainda sobra o décimo terceiro? No ano passado, o salário mínimo subiu só em janeiro, de forma que, em dezembro o décimo terceiro nada mais era do que o indispensável para não morrer de fome com o salário de novembro. Por outro lado, sempre há algumas pessoas que ainda destoam completamente. Há dessas em nossa comunidade?

e) Refletir sobre o Espírito Santo: a adoção de filhos e filhas de Deus em Jesus Cristo faz de nós pessoas que recebem a força do Espírito. Isso tem consequências:

I — como filhos e filhas de Deus somos irmãos e irmãs; o Natal quer nos possibilitar viver a vida diária em favor das pessoas que nos rodeiam (cf. Gl 6);

II — o Espírito que nos une nos chama a nos empenharmos para que todas as pessoas possam festejar o Natal com alegria;

III — o Espírito quer nos libertar da lei, também da lei do mundo, que considera um Natal sem presentes um falso Natal; o Espírito nos lembra justamente que esses rudimentos do mundo são nada mais do que sombras diante da alegria repartida pela pessoa de Jesus Cristo.

6. Subsídios litúrgicos

a) Hinos: Do hinário Hinos do Povo de Deus sugiro o n° 19, baseado no texto da prédica e que ressalta a comunhão da cristandade; o n° 15, que ressalta a encarnação (o original alemão mais ainda, cf. Evangelisches Gesangbuch, n° II, estrofes l, 3, 5, 8, 9 e 10); o n° 23 serve bem para fazer um balanço das festas. O Cancioneiro da Pastoral Popular Luterana tem um canto que narra o nascimento de Jesus nas pp. 545s. O Cancioneiro Quero Cantar ao Senhor 3 tem vários cantos de Natal; na p. 48, A luz resplandeceu destaca a encarnação.

b) Uma de nossas comunidades distribuiu, em certo Natal, no fim do culto, suspiros (doces) a todas as pessoas que estavam presentes. Quem fez a distribuição foi o pessoal do Culto Infantil. Foi muito bonito e simbolizou bem a comunhão entre filhas e filhos de Deus, que o Espírito Santo quer promover por ocasião do Natal. Parece-me que essa sugestão estava em um Manual do Culto Infantil.

7. Bibliografia

BRAKEMEIER, G. Meditação sobre Gálatas 4.4-7. In: PL XV. São Leopoldo EST, Sinodal, 1989, pp. 106-11.
CALVINS, J. Der Galaterbrief. Neukirchen, Erziehungsverein, s.d.
GOPPELT, L. Teologia do Novo Testamento. São Leopoldo, Sinodal, Petrópolis Vozes, 1982.
KLIEWER, G. U. Meditação sobre Gálatas 4.1-7. In: PL IX. São Leopoldo, Faculdade de Teologia, Sinodal, 1983, pp. 144-9.

Proclamar Libertação 18
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia