Prédica: Mateus 5.1-12
Leituras: Miquéias 6.1-8 e I coríntios 1.26-31
Autor: Ivoni Richter Reimer
Data Litúrgica: 4º Domingo após Epifania
Data da Pregação: 31/01/1993
Proclamar Libertação – Volume: XVIII
1. Introdução
Há muito sofrimento e dor nas realidades de nossas vidas, inseridas num contexto maior de crises generalizadas. As bem-aventuranças (conforme Mt 5.1-12), lidas a partir e para dentro dessa situação, revelam-se como fonte de força, esperança e novas perspectivas de vida. Pois elas também nos mostram um jeito especial de Deus se manifestar, de agir e de se fazer presente nesse nosso mundo. É essa revelação de Deus que vamos poder celebrar também nesse 4° Domingo após Epifania. As duas outras leituras bíblicas previstas para esse dia (Mq 6.1-8 e l Co 1.26-31) auxiliam na interpretação, de maneira que o culto todo pode formar uma unidade temática, qual seja: o agir ao avesso de Deus na promessa de seu Reino e a prática da justiça como resposta ao amor e à graça recebidos de Deus.
Jesus chama de felizes justamente aquelas pessoas despossuídas de poder que sofrem várias formas de violência e opressão, e as que buscam reagir, praticando resistência solidária, mas não aquelas pessoas que praticam a violência e a opressão (é interessante observar que para essas encontramos, em Lucas, os ais). Na promessa do Reino, mostra-se o paradoxo das bem-aventuranças: as pessoas que, de acordo com o julgamento humano, são coitadas e bobas é que são escolhidas por Deus, a elas é prometida salvação, a força que tudo transforma. Uma bem-aventurança não é um mero desejo piedoso, mas se localiza entre o ato da bênção e a esperança em receber bênção; é norma e Evangelho, é indicativo e imperativo.
2. O texto e seu contexto
Mateus, assim como também Lucas, assume da fonte Q as bem-aventuranças das pessoas empobrecidas, tristes, famintas e perseguidas, complementando-as com mais outras cinco bem-aventuranças. O texto de Mt 5.1-12 está inserido no contexto literário maior do Sermão do Monte (5.1-8.1). O evangelista parece construir o Sermão simetricamente em torno de um centro, que é o Pai-Nosso (6.9-13). Há correspondência entre as unidades antes e depois desse centro (5.1-2; 7.28-8,1a = situação e reação; 5,3-16; 7.13-27 = introdução e conclusão do Sermão; 5,17-20; 7.12 = introdução e conclusão da parte principal; 5.21-48; 6.19-7.11 = parte principal; 6.1-8: 6.14-18 = justiça diante de Deus).
A história interpretativa das bem-aventuranças é controversa e, desde os primeiros séculos d.C. até os nossos dias, não há consenso na interpretação. Costuma-se dizer que Mateus, em contraposição a Lucas, espiritualiza as bem-aventuranças. Mas sei á que o próprio contexto sócio-histórico, a própria situação histórica de Mateus e sua(s) comunidade(s), não é relevante nisso? Será que não podemos esclarecer melhor a modificação das três primeiras bem-aventuranças através da própria mudança na situação bem concreta do povo, marcada também pela destruição do templo (70 d.C.)? Assim também poderíamos entender melhor por que Mateus, na segunda bem-aventurança, substitui o amplo chorar de Lc 6.2 1b pelo termo estar de luto, prantear (Mt 5.4): Mateus inclui nessa bem-aventurança a experiência do povo que chora por causa da situação de luto, surgida com a guerra dos romanos contra o povo judeu e também por causa da decorrente perda do templo. Portanto, bem-aventuradas são as pessoas que estão enlutadas, que sofrem/sofreram a experiência da morte, e por isso lamentam e choram. O luto, acompanhado de choro, é o sinal da inconformidade com essa situação de sofrimento e, ao mesmo tempo, sinal de que a esperança das pessoas enlutadas está depositada no Reino dos céus, e não nos poderes desse mundo. É por isso que essas pessoas têm a promessa do consolo, o qual transforma a situação do sofrimento atual.
Quem são as pessoas pobres de espírito (5.3)? Essa expressão é entendida geralmente como metáfora e caracterização de uma qualidade da pessoa diante de Deus: a pobreza real serviria apenas como imagem para uma pobreza espiritual. No entanto, também para Mateus, dentro da tradição judaico-veterotestamentária, espírito caracteriza a pessoa toda. Para uma interpretação não-dualista é importante observar que a palavra pobre, na expressão pobres no espírito, caracteriza uma situação de necessidade e de sofrimento abrangentes, e não um comportamento que deva ser avaliado como positivo. É certo que, dentro dessa compreensão que abarca a pessoa como um todo, deve haver espaço para refletir e incluir a questão da humildade, pois ela é a forma concreta de pessoas humilhadas demonstrarem sua solidariedade entre si e para com outras pessoas. Humildade, pois, não é um conceito que tenha necessariamente conotação negativa. Trata-se de uma postura crítica e de resistência frente ao mundo e aos poderes que geram humilhação e empobrecimento: ambos afetam o espírito. A promessa do Reino para pessoas que sofrem esse processo de empobrecimento amplo faz-se realidade já agora: delas é o Reino dos céus. A primeira e a oitava bem-aventuranças abrem e fecham o ciclo, afirmando que o Reino se faz presente, já, no reverso da história. Nas outras promessas, usa-se o futuro escatológico.
Mt 5.5 fala daquelas pessoas que são mansas, no sentido de não praticarem violência, de não se entregarem à ira e suas consequências. Mas isso não significa resignação frente aos sofrimentos, mas sim a prática da amabilidade como sendo essa a sua prática de resistência. O termo manso tem parentesco com o termo pobre. Nessa situação de pobreza real, as pessoas mansas se exercitam na auto-estima, e essa se demonstra então também no respeito e na amabilidade para com outras pessoas. Sua situação atual, no entanto, não as força a permanecerem na si¬tuação de sofrimento, mas há sinais e esperança de transformação. Trata-se de um futuro escatológico que já vai acontecendo: herdarão a terra. A promessa da terra mostra que o Reino dos céus também significa um novo aquém, e não somente um além.
Bem-aventuradas as pessoas que têm fome e sede de justiça, pois serão saciadas (5.6). Quem ardentemente almeja justiça são justamente aquelas pessoas que sofrem injustiça ou que sofrem por causa da injustiça praticada contra outras pessoas. Trata-se tanto de vítimas quanto de pessoas sensibilizadas e solidárias com as vítimas. E essas têm a promessa de que encontrarão abundância daquilo do qual agora têm saudades. Excluídas estão as pessoas que praticam a injustiça e que, portanto, estão distantes de Deus, pois justiça é a prática que Deus espera de seu povo.
As quinta, sexta e sétima bem-aventuranças (5.7,8,9) mostram o objetivo central da parênese judaico-cristã sapiência!. A prática da misericórdia (5.7), de colocar seu coração junto às pessoas que sofrem, apresenta a suma das obras de amor. Nisso há uma correlação entre o dar (humano) e o receber (de Deus); nenhum pressupõe ou antecede o outro. A misericórdia é a prática da justiça dentro de um mundo com estruturas injustas e acontece em prol das pessoas injustiçadas. De acordo com Mateus, praticar a misericórdia corresponde, para Jesus, à prática da vontade de Deus (9.13; 12.7,23,31.45). Para a piedade judaico-cristã, ter coração puro ou estar limpo/a de coração (5.8) significa estar totalmente em obediência a Deus, visto que o coração era entendido como sendo o centro da vontade e das decisões humanas. Assim, a pureza não é apenas cúltica, mas abrange a totalidade das relações humanas, no sentido de não agirmos com segundas ou más intenções, de sermos indivisíveis em relação a Deus e as pessoas. A pureza de coração e a promessa de ver Deus não conduzem a um isolamento em relação às coisas do mundo e a uma espiritualidade individualizante, mas se concretizam como obediência a Deus no mundo e como esperança profunda por novo céu e nova terra. Em 5.9 temos uma expressão que, no Novo Testamento, é usada apenas aqui, mas que é muito conhecida na teologia rabínica. Trata-se dos pacificadores, das pessoas que fazem paz. Paz significa a totalidade da salvação, é a integridade de vida.
Pacificadoras são as pessoas que promovem paz entre pessoas, situações e povos que estão divididos. Seja essa ação grande ou pequena, tenha ela proporções a nível pessoal ou internacional, importante é saber e ter a certeza de que ela carrega em si a grande promessa de que quem assim age será chamado filho de Deus (note-se, aqui, que a linguagem de Mateus é androcêntrica e que, a nível gramatical, inclui o feminino nas expressões masculinas). O verbo ser chamado/a se refere a um agir de Deus que suscita total novidade de existência.
Não é a toa que à bem-aventurança das pessoas que fazem paz segue a bem-aventurança das pessoas que são perseguidas por causa da justiça (5.10). A essa justiça, para Mateus, pertencem a práxis cristã e a confissão a Jesus. Ser perseguido/a por causa da justiça e por minha causa (5.11) se interpretam mutuamente: confessar a Cristo se manifesta em ações (7.21-23; 25.31-46). Ó uso do particípio perfeito (os/as que são perseguidos/as) aponta para uma situação real. O motivo da perseguição é a justiça que Deus quer.
É possível estruturar as oito bem-aventuranças (vv. 3-10) com vistas ao seu conteúdo da seguinte maneira:
[Veja anexo abaixo]
Mt 5.11-12 faz uso da alocução direta (2a pessoa pl.), diferente das demais bem-aventuranças. Isso pode estar acentuando que o tema ali abordado é quente e realidade determinante na(s) comunidade(s). O tema central continua sendo o da perseguição, o que é indício para a concreticidade da mesma para a(s) comunidade(s) de Mateus, que, principalmente no tempo de Domiciano (81-96), precisam contar com perseguição, injúria e calúnia. O motivo para tal era o modo de vida diferente que estava(m) vivendo no seguimento a Jesus, que devia estar marcado pela prática da justiça e solidariedade com as pessoas despossuídas de poder e riquezas. E é para dentro dessa situação que é feito o convite que interpreta os macarismos: alegrai-vos e jubilai. A alegria pode existir dentro da situação de sofrimento e dor, pois seu motivo está na reversão das relações que já agora começa a ser inaugurada, onde justiça é almejada e praticada, mesmo nos menores sinais. O salário será grande nos céus, cujo Reino, porém, já se faz presente (vv. 3 e ,10). A perseguição que está sendo experimentada pela(s) cofluinidade(s) é comparada à perseguição sofrida pelos profetas que viveram antes de vós. Portanto, não se refere apenas aos profetas veterotestamentários.
Concluindo: É importante perceber que o que é declarado como feliz não é uma interioridade religiosa, mas sim pessoas cristãs que vivem a sua fé no mundo em relação com outras pessoas. É importante, no preparo da prédica, levar em consideração a situação da própria comunidade, Sabemos que, na comparação com Lucas, Mateus modificou ou ampliou as bem-aventuranças contidas na fonte Q devido à situação da(s) sua(s) comunidade(s). Essa(s) já têm uma história de aproximadamente 50 anos de pregação cristã, mas a própria história mudou o perfil da(s) comunidade(s) de Mateus, marcando-a(s) com dor e perseguição. Com isso, o próprio texto mostra como a situação ajuda a interpretar e a configurar a pregação cristã.
O mesmo é válido para nós, hoje. O importante é manter-se fiel ao Cristo por nós confessado e tentar entender o seu Evangelho-mandamento, as suas bem-aventuranças para dentro do nosso contexto como uma ajuda para nós, a fim de permanecermos na aliança que Deus firmou conosco através de Jesus Cristo, o qual abriu e ampliou para nós o caminho da esperança em meio a um mundo que quer nos forçar a negar essa esperança.
É preciso, pois, atentar e se sensibilizar para situações de sofrimento e, ali, proclamar esse Evangelho que convida pessoas para o aprendizado da esperança atuante. A graça já está sendo experimentada, apesar de tudo, e nisso a pessoa que sofre é fortalecida para reagir ante o sofrimento, e não resignar: Felizes. É o anúncio da felicidade para dentro de situações injustas que parecem sobrepor-se — e sob o ponto de vista humano muitas vezes se sobrepõem — à possibilidade de uma vida íntegra, mas que são de fato para Deus o lugar da sua manifestação. É assim que Deus age ao avesso, ou no reverso da história.
3. Subsídios litúrgicos
1. Intróito: Vós tendes necessidade de perseverança, a fim de que, realizando a vontade de Deus, recebais o que Ele promete (Hb 10.36).
2. Oração de coleta: Pedir para que Deus faça uso daquilo que elaboramos, que seu Santo Espírito reverta em realidade os nossos anseios por paz e justiça e que nos auxilie na prática da esperança dentro das situações de crise e de sofrimento.
3. Intercessão: Pedir — se necessário e possível já antes do culto — que algumas pessoas da comunidade façam uma rápida descrição de realidades de sofrimento dentro e fora da comunidade e que elaborem o seu pedido junto a Deus para a reversão dessas situações.
Para a bênção, formular bem-aventuranças concretas para dentro da concreticidade dos sofrimentos levantados dentro da comunidade. E, segurando as mãos uns dos outros, dizê-las, em conjunto e em alta voz, uns/umas para os/as outros/as. E depois, numa linguagem simbólica internacional, batendo palmas e dirigindo as palmas ao céu, encher o espaço, os céus com esses novos anseios, pedidos e votos de felicidade, a fim de que ressoe no mundo a nossa inconformidade com a justiça e solidariedade para com as pessoas que sofrem. E que Deus ouça o nosso clamor! (Quem se sentir inseguro, deixe fora as palmas.)
Hinos/cantos: Jesus Cristo, esperança do mundo (Um cântico novo, p. 32) HPD 40; 1654.
4. Bibliografia
MESTERS, Carlos. Ouvi o clamor do meu povo! Estudos bíblicos de Mt 5-9 em: Estudos Bíblicos 26 (1990), 61-69.
MOSCONI, Luís. O Evangelho segundo Mateus. Pistas para uma leitura espiritual e militante. Série: A palavra na vida 29/30, 1990.
KRÜGER, René. A proclamação de uma inversão total: a estruturação de Lucas 6.20-26, em RIBLA & (1991), 23-32.
LUZ, Ulrich. Das Evangelium nach Matthäus (Mt 1-7) Evangelisch-katholischer Kommentar zum NeuenTestamentl/l, Zurique e outros, Benziger/Neukirchener Verlag, 1985.
Proclamar Libertação 18
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia