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Prédica: Mateus 5.20-37
Leituras: Deuteronômio 30.15-20 e I Coríntios 2.6-13
Autor: Dirk Oesselmann
Data Litúrgica: 6º Domingo após Epifania
Data da Pregação: 14/02/1993
Proclamar Libertação – Volume: XVIII
Tema:

1. As primeiras impressões

O texto assusta um pouco à primeira vista. Ele é comprido, abrange vários te mas, tem uma linguagem difícil, radical, cheia de ameaças. Poderiam ser feitas tranqüilamente três prédicas sobre ele. Onde está a melhor entrada, a chave com que se podem desdobrar os assuntos tratados ao longo do texto?

Ele inclui as quatro primeiras de um total de seis antíteses que retomam man damentos do Antigo Testamento e os radicaliza dentro do contexto atual. A escolha dos limites deste texto não me parece muito lógica, porque não trata nem de um tema específico, quer dizer, uma das antíteses, tampouco apresenta o conjunto das antíteses como bloco.

Por isso, é preciso decidir sobre a forma de trabalhar o texto. A nossa reflexão vai tratar mais da questão das antíteses em geral, partindo dos temas concretos encontrados no texto.

2. As primeiras descobertas

Enquanto a divisão da Bíblia inicia o novo trecho só no v.21, encontramos justamente no versículo anterior, v. 20, uma das chaves possíveis do texto. Sem dúvida, nele transparece o ponto de partida, ou melhor, o conflito concreto, que está por trás dessa fala de Jesus:

… se a justiça de vocês não superar a dos doutores da lei e dos fariseus, vocês não entrarão no Reino do Céu.

Este conflito com os doutores da lei e os fariseus acompanha e determina toda a estrutura das antíteses. Todas elas começam com vocês ouviram o que foi dito… e replicam com eu, porém, lhes digo…. Não é a Lei do Antigo Testamen¬to que Jesus quer colocar em dúvida, como ele mesmo afirma no v. 17, mas o uso e a interpretação da Lei pelos doutores e fariseus. Eles representam não somente autoridades religiosas, mas mantêm, de fato, um grande poder político e econômico. Aqui se encontra a disputa real. Parece que a Lei se tornou apenas um instrumento de poder para aqueles que se declaravam os donos dela. Dessa forma, ela está corrompida e, mais ainda, oculta os verdadeiros conflitos e raízes dos problemas.

Encontramos, então, no texto dois níveis: de um lado, manifesta-se o conflito com o poder dos donos da lei; do outro, o sentido da própria lei está sendo aprofundado.

Jesus entende a lei não simplesmente como um mandamento que tem que ser cumprido ao pé da letra. Ele reinterpreta o sentido dela na conjuntura momentânea, nos conflitos atuais: a falsa oferta diante do altar, o direito não concedido à mulher ou o uso do nome de Deus nos juramentos. Não é a lei que se impõe sobre as pessoas, mas são os problemas da convivência entre as pessoas que a lei pretende atacar na raiz. Pois, para Jesus, o ser humano está no centro do interesse, enquanto para os doutores da. lei, ao contrário, alei se torna instrumento de um interesse alheio.

… quem chama o irmão de idiota, merece o fogo do inferno. (V. 22), É melhor perder um membro do que o seu corpo todo ir para o inferno. (V. 30), O que você disser além disso vem do Maligno. (v. 37) Estas palavras deixam transparecer uma radicalidade difícil de entender. Mais ainda, porque as exigências ligadas a estas afirmações são quase impossíveis de cumprir. Temos que perguntar pela conjuntura daquela época, que levou a esta forma de expressão. Encontramos vários fatores que podem dar pistas para uma explicação:

1. Não se pode destacar uma visão apocalíptica nesta época. A década dos anos 60 depois de Cristo, quando o texto provavelmente foi escrito, está marcada por uma forte crise, tanto em relação aos romanos, quanto dentro do povo da cidade de Jerusalém e entre os próprios cristãos. A malograda revolta contra os romanos (anos 66/67) fez surgir divisões, traições e violências entre as pessoas da região (veja Pe. Luís Mosconi, pp. 34-37). Perseguição, fuga e até a consideração de um suicídio coletivo por parte da comunidade são os sinais que apontam para uma mentalidade apocalíptica. O fim dos tempos está chegando. A busca para se aperfeiçoar no seu comportamento marca uma tal época.

2. Um outro fator que, sem dúvida, influencia a formulação das antíteses é o conflito forte com os já mencionados doutores da lei. Jesus desmascara a falsa aparência daqueles que usam a lei como justificação, porém corrompendo o seu sentido. Esta polêmica determina o tom e a radicalidade da conversa.

3. Um terceiro ponto importante é que a radicalidade do discurso nos leva a descobrirmos as raízes da problemática. Num nível mais geral, a fala de Jesus ataca, de novo, a aparente justiça daqueles que se interessam apenas pela autopromoção de sua imagem.

Os temas tratados nestas quatro antíteses não são limitados a um certo grupo social ou específico. São temas que aparecem e determinam os problemas e conflitos do cotidiano. Eles falam para o coletivo de todas as pessoas que têm como referência do seu comportamento o Antigo Testamento, e justamente não só os doutores da lei e fariseus. A linguagem — alguns termos em aramaico no original — indica que é o povo simples, os pobres, que participa dessa conversa (Pe. Mosconi, p. 23).

3. Os temas

Da mesma forma como Jesus reinterpretou os mandamentos naquela época, temos que atualizar a ética passada nestas quatro antíteses. Pode-se perceber que o conteúdo é culturalmente limitado e determinado. O mesmo vale para a forma de expressão, que já foi analisada.

3.1. A partir da proibição de não matar, o discurso de Jesus detecta as raízes da problemática no ódio e na difamação de outra pessoa. Matar alguém é apenas o resultado final de um conflito que já começa com estas atitudes. Enquanto a primeira parte enfatiza os castigos como consequências do conflito e brigas na convivência, a segunda parte aponta para a resolução do conflito na raiz, no fazer justiça ao irmão cumprindo o seu dever.

Todas as referências desta primeira antítese giram em torno da questão judicial e do tribunal. Já na citação do Antigo Testamento no v. 21, a condenação pelo tribunal foi acrescentada indicando a direção em que esta questão está sendo trata da. O fogo do inferno (v. 22) aparece neste sentido como última instância mais severa de julgamento. Toda a segunda parte se dedica à reivindicação da justiça na vida cotidiana: se alguém deve alguma coisa, melhor entrar logo em acordo antes de chegar ao tribunal.

Por trás deste tema se escondem tanto brigas internas quanto acusações em que irmãos enganaram outros. A matança não apenas começa com difamações, como também no tirar proveito do outro ou, em outras palavras, na exploração, quando não se garante ao outro o que é seu direito.

Esta justiça, que não é a falsa justiça dos fariseus e dos doutores da lei, é pré condição para qualquer oferta diante do altar. Cumprir aparentemente as obrigações religiosas não vale nada, se isso não corresponder a uma atuação justa, que tenta resolver conflitos na raiz sem difamar ou explorar o outro.

3.2. A relação do homem com a mulher está sendo tratada na segunda e na terceira antítese. Especialmente esta questão está fortemente determinada pela cultura daquela época. Por isso, antes de falar sobre o que significa adultério, é preciso analisar o que era o matrimônio naquela época, quais eram as obrigações e direitos do homem e da mulher.

O matrimônio era muito mais um contrato do que uma relação de amor. Neste sentido, o que interessa — também neste trecho — era a garantia dos direitos, especialmente da mulher, que era totalmente dependente do homem. Não é por acaso que o nosso texto apenas se direciona aos homens, porque o matrimônio era existencialmente uma questão de proteção da mulher na sociedade. Só os homens podiam passar a carta de divórcio, mas eram as mulheres que perdiam com isso todos os seus direitos e a sua sustentação financeira. Só uma declaração de divórcio do marido permitia que uma mulher pudesse se casar de novo.

As antíteses pretendem, em primeiro lugar, garantir a proteção dos direitos da mulher, porém dentro das regras e do pensamento daquela época. O homem que deseja possuir a mulher de um outro a induz ao adultério, que tem como consequência o divórcio sem declaração para a mulher, enquanto o homem não sofre dano nenhum. Na segunda antítese, Jesus condena qualquer divórcio, porque sempre prejudica a mulher.

A limitação cultural desta questão deve nos prevenir de uma simples repetição desta ética nos dias de hoje. O texto fala de responsabilidade, proteção e direitos dentro de um matrimônio. É interessante e importante notar que Jesus não se refere ao amor entre marido e esposa. Um outro fator que dificulta a reinterpretação atual é que antigamente não existiam apenas matrimônios monogâmicos.

3.3. O terceiro tema abordado na quarta antítese do nosso texto trata da prática dos juramentos. Jurar é um ato público de comprometer-se e dizer a verdade ou de agir verdadeiramente da forma anunciada. Enquanto o Antigo Testamento insistia em não jurar falsamente ou cumprir o juramento para com o Senhor (v. 33), aqui está sendo proibida qualquer forma de juramento que use o nome de Deus ou de alguma coisa que ele criou. Devem ser suficientes apenas a palavra e a sinceridade que a própria pessoa transmite.

Também nesta abordagem transparece um problema grave daquela época, que tem as suas raízes no conflito com os doutores da lei e os fariseus. Eram especificamente eles que se manifestavam como os representantes de Javé. Quer dizer, a palavra pública e política deles sustentava-se no poder de Deus.

Sem dúvida, esta prática apareceu também em outros níveis e com outras pessoas. O texto se posiciona contra qualquer ato em que o nome do divino ou até coisas que representam esta dimensão são usadas para estabelecer e garantir o poder e os interesses de pessoas ou grupos sociais.

4. Considerações para a elaboração da prédica

4.1. Eixos do conteúdo

Pontos-chaves do texto para a elaboração da prédica se dão a partir do v. 20: (…) se a justiça de vocês não superar a dos doutores da lei e dos fariseus, vocês não entrarão no Reino do Céu.

4.1.1. A lei se tornou um instrumento do poder religioso e político. Este poder está representado nos doutores da lei e nos fariseus, porém se encontra da mesma forma dentro das pessoas, especialmente da comunidade cristã. De um lado, reflete-se um conflito de grupos sociais, entre os intelectuais ou donos da lei e aqueles que são explorados pêlos primeiros. Do outro, esta mesma problemática manifesta-se também na própria comunidade, nas denúncias e difamações, na privação dos direitos da mulher ou na luta pelo poder.

Desta forma, a lei oculta os verdadeiros conflitos que existem na sociedade, simplesmente dividindo a população entre aqueles que controlam a lei e aqueles que devem cumpri-la. A lei liga-se a seus donos e se desliga da justiça. O texto tenta desmascarar a forma como a lei está sendo administrada para restabelecer a sua relação estrita com a justiça.

4.1.2. A prática da justiça exige que se resolvam os conflitos na sua raiz. Por isso ela é radical. A justiça não entra em vigor só quando a violência chega ao ponto de matar, mas indica os atos que originam os verdadeiros conflitos. Por isso, ela questiona a aparência daqueles que apenas querem se destacar por serem mais corretos e mais ajustados à lei.

A justiça não pode ser reduzida a ordens ou mandamentos. Assim, ela se torna lei. Ela é movimento dinâmico, que necessariamente deve ser reinterpretado em cada conjuntura de novo. A justiça pergunta cm cada contexto social, político e religioso pelos explorados, massacrados ou privados dos seus direitos. A justiça procura as vítimas de um sistema para estabelecer de novo a sua dignidade de viver. A vida digna e plena de todas as pessoas ó a única intenção da justiça.

4.1.3. A partir deste esquema devem ser feitas atualizações da discussão de hoje como do contexto concreto — rural ou urbano. Um exemplo do ano de 1991 é a discussão sobre a pena de morte. Quer ser uma lei para garantir os interesses de quem? Ela resolve o problema — a violência social — na raiz? O que se deveria fazer para reivindicar a justiça neste conluio? Onde estão as verdadeiras vítimas?

4.2. Sugestões para a metodologia

Para despertar o interesse da comunidade, a prédica poderia começar com uma pergunta sobre a criação de alguma lei. Poderia ser um tema polémico na comunidade — como talvez a pena de morte — ou um absurdo — como, por exemplo, uma lei para proibir que crianças andem sem acompanhamento na rua. O tema depende do nível da discussão na comunidade, mas deveria retomar uma coisa já comentada entre as pessoas.

Num segundo passo, o pregador pode trabalhar em cima da reação da comunidade e partir dela ou simplesmente continuar as suas colocações, supondo diversos comentários possíveis e prováveis.

A passagem para o texto bíblico deve se dar a partir do v. 20, que introduz os temas como exemplos do esquema acima elaborado. Acompanhando a prédica, outras perguntas poderiam ser colocadas, em analogia à introdução.

O fim da mensagem deveria destacar o dinamismo da justiça em forma de bus cãs e questionamentos ou posicionamentos ao lado dos fracos e injustiçados. Eventualmente poderiam ser formuladas perguntas sobre as vítimas reais do exemplo abordado no início.

5. Subsídios litúrgicos

1. Confissão de pecados: Refletir como cada um participa do sistema de leis e ordens, que, afinal, são apenas um instrumento de seu próprio proveito ou poder. As nossas leis servem à vida e à justiça? — Sugestão: passar um espelho em que as pessoas podem se olhar.

2. Leitura bíblica: Dt 30.15-20 — Destaca a obediência aos mandamentos e às leis, porém sempre ligada e a serviço da vida que Javé propôs.

3. Oração final: Buscar e lembrar, em conjunto com a comunidade, das vítimas e injustiçados que as leis não protegem e ajudam. Pedir para encontrar de novo caminhos de justiça, as vezes contra aquilo que parece legal e certo.

6. Bibliografia

MOSCONI, Pe. Luis. Evangelho segundo Mateus. Em: CEBI, série: A Palavra na Vida, n°s 29/30.
Estudos Bíblicos 26 — O Evangelho de Mateus. Petrópolis: Vozes/ São Bernardo do Campo: Ed. Metodista/São Leopoldo: Sinodal, 1990.
STORNIOLO, Ivo. Como ler o Evangelho de Mateus. São Paulo. Paulinas, 1990.
LANCELLOTTI, Angelo. Comentário ao Evangelho de São Mateus. 2a ed. Petrópolis, Vozes, 1985.
MORIN, E. Jesus e as Estruturas de seu Tempo. 4. ed. São Paulo Paulinas, 1988.

Proclamar Libertação 18
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia