Prédica: Mateus 17.1-9
Leituras: Êxodo 24.12,15-18 e II Pedro 1.16-19 (20-21)
Autor: Harald Malschitzky
Data Litúrgica: Último Domingo após Epifania
Data da Pregação: 21/02/1993
Proclamar Libertação – Volume: XVIII
1. Observações do cotidiano
Quinta-feira Santa. Programa sobre Páscoa na Rádio Guaíba. Participantes: um padre, um jornalista, um espírita ativo e eu. No momento em que entra o assunto da crucificação de Jesus e das palavras da cruz, especialmente a conhecida palavra Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste? (Mt 27.46), o parceiro de diálogo espírita diz que é difícil aceitar um Cristo que grita por socorro, enquanto se conhecem tantos heróis e mártires que aceitaram a sentença e a execução sem pestanejar. Por isso, segundo ele, estas palavras devem ser atribuídas a um dos dois ladrões, que reconheceu em Jesus o próprio Deus.
Visita com um grupo de pessoas à igreja São Pelegrino, em Caxias do Sul (RS), com as famosas pinturas de Aldo Locatelli, retratando com traços muito fortes o calvário de Jesus. Alguém do grupo comenta que é muito difícil crer em um Deus que permite este tipo de atrocidade com seu filho e, por isso, consigo mesmo.
Em concílio distrital em nossa igreja: moções, palavras inflamadas, longa discussão sobre o boneco (conforme moção apresentada nos anos 80 em um concílio do Distrito Eclesiástico Norte do Paraná) na cruz. Questionava-se (como se questiona) o uso do crucifixo em lugar de uma cruz vazia. A cruz vazia lembra, afinal, que o crucificado não mais está aí, mas ressuscitou e vive.
Vou a um enterro. O pregador esforça-se para anunciar a vitória de e por Jesus Cristo sobre a morte. São lembrados muitos textos que falam da ressurreição. O fato de ser o domingo de Páscoa sugere o tema com ênfase. Que a morte causa sofrimentos por vezes imensuráveis foi mencionado perifericamente. Será que o Cristo sofredor, martirizado, crucificado, nada tem a ver com este nosso sofrimento? — perguntei-me o tempo todo.
Por outro lado, as semanas santas reservam também o reverso da moeda. Encenações, procissões, autoflagelos violentos, que procuram destacar o sofrimento e a morte de Jesus de forma tão acentuada, a ponto de se ter a nítida impressão de que aqui está toda a ação de Deus. Morte é a palavra última e definitiva.
Sempre que se absolutiza um dos dois lados, uma das duas realidades, divide-se o evangelho e, portanto, se tem somente parte dele. O mesmo vale para o Cristo, que é o sofredor e o ressurreto. Paulo sabe dizer: Nós anunciamos Cristo crucificado, que para os judeus é escândalo, para os gentios é loucura, mas para aqueles que são chamados, tanto judeus como gregos, é Cristo, poder de Deus e sabedoria de Deus (l Co 1.23-24) e Se Cristo não ressuscitou, vazia é a nossa pregação, vazia também é a nossa fé. (…) Se temos esperança em Cristo tão-somente para esta vida, somos os mais dignos de compaixão de todos os homens (l Co 15.14 e 19).
2. Contexto e texto
O texto da transfiguração está relacionado com a confissão de Pedro (16.16), confirmando, por assim dizer, as palavras dessa confissão de fé. Ao mesmo tempo, a transfiguração é uma espécie de enclave entre dois anúncios de sofrimento. Ao que tudo indica, isso não acontece por acaso, mas tem como objetivo justamente sublinhar que o Jesus sofredor é o Messias, o Cristo de Deus. Sabe-se, não só do após tolo Paulo, que nas comunidades havia problemas com relação a esta identidade do sofredor com o ressurreto em glória. Ser missionário de um Cristo glorioso seguramente tinha mais chance de sucesso do que sê-lo de um fraco sofredor, cujos dias terminam numa cruz, que, por si só, já era testemunho de que o punido boa gente não era. Mas este é o preço da encarnação; este é o caminho escolhido por Deus e seguido pelo Filho. À glória da ressurreição não altera em nada o caminho do sofrimento e nem lhe tira o impacto. Muito pelo contrário — e é isso que a colo cação deste texto no contexto de Mateus deseja expressar —, a transfiguração confirma e afirma que o sofredor é o Filho de Deus.
A pesquisa neotestamentária levantou a pergunta se este relato não seria uma outra edição, uma outra forma, de se falar da ressurreição de Jesus. Seria, pois, um relato de Páscoa. Há quem julgue afirmá-lo, mas a tendência é constatar que se trata de uma outra categoria de texto, sobretudo em se partindo das diferenças muito evidentes: Nenhum relato de Páscoa se reporta à voz de Deus, à presença de seres celestiais e à glória visível de Jesus. Por outro lado, falta aqui uma palavra de Jesus, a exemplo do que se lê em todos os relatos de Páscoa, bem como qualquer alusão à morte e ressurreição (E. Schweizer, apud Falkenroth, p. 86).
No entanto, tanto o relato da transfiguração como os relatos de Páscoa têm um impacto muito forte para dentro da realidade do dia-a-dia e, por assim dizer, levantam uma pontinha do véu que encobre tanto um como o outro, porque ambos vão além daquilo que podemos compreender e esmiuçar com a nossa razão e todas as nossas capacidades humanas.
Jesus leva consigo três dos seus discípulos — Pedro, Tiago e João — e vai para uma alta montanha (Bíblia de Jerusalém). Lugares altos, morros e montanhas têm um papel importante no testemunho bíblico, pois é ali que se pode estar só e é ali que acontecem manifestações extraordinárias de Deus (cf. Gn 22; Êx 19; 24; 34; Jn 4; Mt 5.1,14; 14.23; 21.1, para citar apenas algumas passagens), incluindo-se a luta entre o bem e o mal, Deus e o ser humano (cf. Mt 4.1ss ou Jonas). Poder-se-ia lembrar que os vales assumem aspectos ameaçadores, como o vale da sombra da morte (Sl 23.4) ou o vale de Hinom como lugar da idolatria (2 Rs 23.10; Jr 7.31-32 e outros) ou ainda o vale dos ossos na visão de Ezequiel, que sugerem que Israel está no fim (Ez 37.11), sendo, assim, o oposto dos morros e das montanhas, ou seja, a distância de Deus. A menção explícita de que se trata de uma montanha alta, a exemplo do que ocorre na tentação de Jesus (Mt 4.8), pode ser indicativo de que algo extraordinário está por acontecer (Falkenroth, p. 88).
O brilho de uma luz muito clara é característico de Deus e de seus anjos. Tanto o rosto de Jesus quanto as suas vestes assumem um brilho incomum, o que coloca Jesus claramente junto de Deus, anunciando que ele pertence ao mundo de Deus e seus anjos (Falkenroth, p. 89). Jesus é transfigurado, ele é todo brilho, mas não perde a sua identidade, não deixa de ser, ao mesmo tempo, o Jesus de Nazaré. Os discípulos não estão tendo uma aparição, mas estão vendo o seu Mestre envolvido no brilho celeste, indicativo de que eles estão participando de momentos ímpares e andando em companhia do esperado Filho de Deus. O Jesus do sofrimento e que caminha no caminho da fraqueza (o contexto se torna importante) é o Filho de Deus.
Jesus, transfigurado, tem ao seu lado Moisés e Elias, dois personagens conhecidos por seus papéis de destaque no Antigo Testamento. Aponta-se sempre de novo para o fato de que os papéis dos dois não são idênticos ou até iguais. No texto de Mateus, parece que eles não têm uma função muito clara. Eles simplesmente estão aí, conversando com Jesus. Para os discípulos fica a visão dos dois conversando, sem que lhes seja revelado o conteúdo do diálogo. Moisés, na comunidade cristã, mas sobretudo entre o povo judeu, é o representante da lei de Deus, um representante ímpar por sua proximidade a Deus, tanto que até do seu sepultamento é Deus que se encarrega (Dt 34.6). Não é por menos que Paulo (2 Co 3.12s) introduz Moisés na discussão e deixa claro que ele é menos do que Jesus (2 Co 3.12). Isso, porém, não lhe tira o papel e o brilho. A volta de Elias era esperada (Mc 9. 11s). Não é por menos que alguns suspeitam de que João Batista seria ele (Jo 1.21). O próprio Jesus é confundido com o profeta Elias, que está de volta, assinalando, assim, um momento marcante da história de Deus (Mc 6.15; Lc 9.8). A presença destas duas pessoas ao lado de Jesus revestido do brilho celeste deseja sinalizar aos discípulos e aos leitores que este Jesus é o Messias anunciado, que não elimina nem aniquila a história, mas a transforma. A lei e os profetas não estão fora da jogada. Por outro lado, no texto, já à primeira leitura, fica muito claro que o papel de Jesus (e não da lei e dos profetas) tem uma função última para a humanidade.
O que os discípulos vêem é de grande impacto para eles. Aliás, o encontro com o divino sempre causa um impacto, que leva as pessoas à beira do suportável (Êx 33.20: Is 6.5). Causa um deslumbramento que não se pode descrever (o personagem Moisés pode ser lido sob esta ótica e é elucidativo). E Pedro quem primeiro reage, primeiro qualificando o acontecimento e depois fazendo uma proposta (momentos de impacto tendem a nos levar a uma ação…). Ele diz que é bom estar aí. Momentos assim são raros. Uma visão assim deveria ser perene, pois ela é uma pontinha de eternidade e estado de graça. Uma forma de prolongar este momento de impacto tão grande é fazer o que o povo estava acostumado a fazer em suas caminhadas históricas: montar uma barraca, colocar tendas para que Jesus, Moisés e Elias estivessem abrigados. Poder-se-ia suspeitar até que esta seria uma forma de prender e manter aquela visão deslumbrante. Não resta a menor dúvida de que este traço humano está junto. Para Pedro, naquele momento, esta era a proposta mais sensata. Na discussão do texto, amiúde é lembrado que poderia haver uma alusão à festa das cabanas, o que já estaria indicado pelos seis dias (v. 1) (cf. Lv 23.33-36). Uma coisa não anula a outra, pois, de qualquer forma, o impacto da visão é que leva Pedro a agir e, de certa forma, perpetuar aquele momento de impacto e de enlevo. Pedro ainda está falando quando uma nuvem encobre Jesus, Moisés e Elias e ouve-se uma voz que faz uma afirmação muito clara: Este é o meu filho amado, em quem me comprazo; ouvi-o. A nuvem é um símbolo que anuncia a presença de Deus e, ao mesmo tempo, oculta esta mesma presença (Grundmann, p. 403). A voz é que vai definir, explicar e revelar o acontecimento. Em nosso caso se repetem as palavras de Mt 3.17, acrescentando-se o imperativo de ouvir a este Jesus, o que confere com Marcos (1.11). Os discípulos são arrancados de seu deslumbramento e se assustam (seguramente num misto de medo e decepção). Jesus, porém, os toca e lhes fala — assim como eles o conheciam —, usando uma expressão que é fundamental no testemunho bíblico, justamente quando o ser humano está desnorteado, assustado, meio perdido: (…) não tenham medo. Esta expressão tem toda a carga para dizer: Vamos em frente, apesar de tudo! Mas não só isso: Quando Deus diz para não temer, o motivo maior é a sua presença (cf. o Sl 23). Também aqui o motivo do não-temer é a presença de Jesus, o mesmo que os discípulos conheciam e que era o Filho de Deus, o Messias. Por ora, este acontecimento não precisaria ser contado a outros. O momento viria, não para contar uma história, mas para testemunhar que aquele crucificado, judiado, sofrido e morto é o tão esperado Filho de Deus (cf. At 2.22-24), a quem se deve ouvir, o que significa: seguir em obediência Falar sobre ele, contar histórias sobre ele, ainda que de heroísmo, é muito pouco O desafio é ouvir e segui-lo.
3. A caminho de uma atualização
Uma das perguntas é se ainda hoje é possível ter momentos de deslumbramento, nos quais é possível sentir a presença de Deus de forma ímpar e nos quais somos quase que arrebatados por Deus, por sua palavra, pela celebração de sua presença. De fato, eles existem. Verdade é que eles não podem ser fabricados, eles quase que acontecem. Penso principalmente em retiros, encontros em grupos não mui to grandes, acampamentos, mas também em congressos. Programas assim podem ter — nem sempre têm necessariamente — momentos de forte deslumbramento, de arrebatamento. E, não raro, a gente gostaria de prolongar estes momentos para dentro do dia-a-dia. Quando isso não funciona, entra a decepção. Lembro-me de alguém que participou de dois retiros espirituais, dos quais voltou tão deslumbrado, que pensou ser possível transferir aquelas experiências marcantes para dentro da es cola onde lecionava. Qual não foi a sua frustração quando se deu conta de que isso não funcionava!
Penso que os cultos deveriam ter um impacto semelhante ao que sentiram os discípulos naquele dia. Mas a todos é preciso dizer que esta experiência não pode ser simplesmente prolongada no sentido do é bom estarmos (ficarmos) aqui. Mui to pelo contrário. Assim como o deslumbramento, a experiência dos discípulos foi uma espécie de preparo, de aumento para levantar-se, ir e ouvir (obedecer) a Jesus, assim retiros, cursos, congressos e cultos deveriam ser momentos de uma realimentação espiritual para a vida do dia-a-dia. Às vezes, suspeito que nossos cultos são insossos e monótonos porque temos medo de que pessoas se sintam arrebatadas, enlevadas. São coisas, afinal, que fogem da nossa razão e do controle da razão. É claro que isso não pode ser programado e provocado, mas talvez a preparação de um programa devesse ser tão responsável que, automaticamente, surgissem espaços para o deslumbramento. Importante é, então, ajudar as pessoas a se levantarem e irem para a vida, que em sua dureza tem cada vez menos espaço para os sentimentos. O arrebatamento não tem e não deve ter uma função em si mesmo, mas deve ser a certeza de que, no caminho da vida, não se está só porque Deus está conosco e porque fazemos parte da comunidade na qual mais pessoas partilham a mesma experiência.
4. Pistas para a prédica
Poder-se-ia iniciar refletindo com a comunidade momentos especiais e gostosos da vida de cada membro. Penso no dia do casamento, na alegria pelo nascimento de um(a) filho(a), num encontro entre amigos num fim de semana ou num encontro com familiares. Dias e momentos marcantes que infelizmente não podem ser prolongados… Lembraria a inauguração da igreja em que se está ou algum encontro que foi marcante (particularmente sempre me lembro de congressos e retiros com jovens e com crianças, mas também com senhoras)… O programa termina, e cada um volta para sua casa e seu lugar. Momentos assim não podem ser prolongados infinitamente. Eles têm o seu fim. A experiência, porém, poderá ter seu efeito para dentro da vida de cada dia. Em seguida, poder-se-ia ler e recontar o texto, mostrando como os discípulos foram arrebatados por um acontecimento que estava fora de seu poder e de seu controle, mas lembrando também que Jesus, na sua simplicidade e pobreza, ficou de ir com eles, para que pudessem dar conta da tarefa de ouvi-lo para a vida e o testemunho.
5. O culto
Um culto que tem como centro este texto deveria ser muito celebrativo, começando por hinos de louvor muito conhecidos. Se houver um grupo de música ou um coro para participar, melhor ainda. Importante é que a comunidade não fique somente assistindo. Um Salmo, lido responsivamente, poderia marcar uma participação maior. A confissão de pecados poderia ser inicialmente em silêncio e, depois, se possível, ser articulada em voz alta por uma pessoa preparada para tal. Uma leitura do Antigo Testamento que também fala do deslumbramento e do envio é Isaías 6.1-8. Como confissão de fé se poderia usar o hino de Lutero (ou outro similar) ou então o Credo Niceno, desde que o texto estivesse na mão das pessoas e fosse explicado rapidamente antes de iniciar o culto. O Pai-Nosso poderia ser orado enquanto todos estão de mãos dadas, formando uma corrente entre todos os presentes. Em lugar das palavras tradicionais de bênção, poder-se-ia usar o Salmo 121 ou uma forma livre.
6. Bibliografia
BAKKEN, N. Meditação sobre Mateus 17.1-9. In: KIRST, N. et alii. Proclamar Libertação. V. 10. São Leopoldo, Sinodal, 1984.
FALKENROTH, A. Mattäus 17, 1-9. In: — et HELD, H. J. Hoeren und Fragen. v. l. Neukirchen, Neukirchener Verlag, 1978.
GRUNDMANN, W. Das Evangelium nach Matthäus. 5 ed. Berlin, Evangelische Verlagsanstalt, 1981.
SCHMUTZLER, S. Matthäus 17,1-9. Goettinger Predigmeditationen. Goettingen, 27(1): 100-106, set. 1972.
Proclamar Libertação 18
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia