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Prédica: Lucas 3.7-18
Leituras: Sofonias 3.14-18ª e Filipenses 4.4-7
Autor: Gottfried Brakemeier
Data Litúrgica: 3º Domingo de Advento
Data da Pregação: 14/12/1997
Proclamar Libertação – Volume: XXIII
Tema: Advento

 

1. Introdução

João Batista atuou nos anos 28/29 da nossa era (cf. Lc 3.1!). Foi pessoa de grande impacto, líder de um movimento de renovação, seguido por um grupo de discípulos (Mt 9.14; 11.2; Lc 11.1; etc.). Também Josefo, historiador judaico da época, a ele se refere. Por ter denunciado a corrupção na corte, João morreu cedo, martirizado pelo rei Herodes Antipas (cf. Mc 6.14 s).

A comunidade cristã viu nesse grande profeta (Lc 1.76) o precursor de Jesus. Conferiu-lhe um lugar singular na história do Advento: João anuncia a chegada do Cristo e prega a penitência que esta requer. O batismo que ele pratica é batismo de arrependimento para a remissão dos pecados (Lc 3.3). Destina-se a salvar da ira vindoura. Jesus mesmo a ele se submeteu, o que não deixou de constituir problema teológico: como pode o justo confessar pecado e necessitar do perdão? (cf Mt 3.13s.) Conforme o depoimento do Novo Testamento, porém, o batismo de Jesus adquire outro significado: passa a ser a manifestação da messianidade de Jesus e o início de sua carreira pública. Mesmo assim permanecem dúvidas em João quanto à identidade de Jesus. Quando já na prisão, manda discípulos perguntar: És tu aquele que estava para vir, ou havemos de esperar outro? (Mt 11.2s.; Lc 7.18s.) Seria Jesus aquele mais forte (Lc 3. 16), anunciado por João? A comunidade cristã disse que sim.

Houve, pois, um estreito vínculo histórico entre João e Jesus. De dependência não se deve falar. Ambos são personagens muito autônomos, mesmo que estejam extremamente próximos um do outro. E não há como negar: quem conheceu Jesus deve ver em João algo como um prelúdio. É o que a leitura atenta do texto em pauta poderá comprovar.

2. Observações exegéticas

A delimitação da perícope é arbitrária. A compreensão dos w. 7-18 pressupõe o conhecimento dos w. 1-6. Estes apresentam João Batista e explicam sua missão através da citação de Is 40. Lucas cita não somente o v. 3 daquele capítulo, como o fazem Marcos e Mateus. Cita também os w. 4 e 5, sendo para ele este último de especial importância. Ali diz.: …e toda a carne verá a salvação de Deus (versão da LXX). É a perspectiva sob a qual o evangelista coloca o testemunho de João Batista: ela é universal e evangélica. Ou seja, a pregação de João Batista se dirige a todo o mundo (não só ao povo de Israel) e ela quer ser entendida expressamente como evangelho (cf. Lc 3.18!). É aí que engatam os vv. 7-18. Ao bloco todo pertence ainda o v. 19, que noticia a prisão de João por Herodes. Com essa observação Lucas realça que ao tempo de João segue agora o tempo de Jesus. À dessemelhança do que acontece com os vv. 1-0, porém, a exclusão do v. 19 não prejudica a compreensão do todo. A estrutura do texto é clara e transparente:

Os vv. 7-9 têm por conteúdo a proximidade do juízo e a exigência do arrependimento que dela decorre. O ataque de João se dirige não só aos fariseus e saduceus (assim cm Mateus), e sim às multidões. Ele quer abalar a segurança que se fia em algo externo. O juízo iminente vai desconsiderar o privilégio da descendência e da filiação ao povo eleito. Vai perguntar por frutos, isto é, pela vivência da fé. Arrependimento ultrapassa um mero sentimento. É mudança de comportamento.

Os vv. 10 a 14 especificam a exigência. Penitência se concretiza num fazer que, aliás, difere de acordo com a categoria, a) A primeira recomendação é geral. Dirige-se às multidões, portanto, a todo o mundo. Importa distribuir os bens, pois a outra pessoa também tem direito à vida. b) Dos publicanos, ou seja, dos funcionários públicos se exige nada mais do que honestidade, c) Enquanto isso, os soldados são exortados no sentido de renunciarem à violência, tortura e rapina. Penitência é assunto extremamente prático.

Os vv. 15 a 17 tratam da questão cristológica. é quase natural que houvesse gente perguntando se João porventura não seria ele mesmo o Messias anunciado. João o nega. Entende-se a si mesmo como arauto do Cristo que está por chegar e em comparação com o qual se sabe imensamente inferior. A teologia de João Batista está profundamente marcada por sua expectativa messiânica. Aquele mais forte que vai balizar com o Espírito Santo e com fogo vai proceder à separação de maus e bons, recolhendo o trigo para o seu celeiro, enquanto a palha será lançada a fogo inextinguível.

O v. 18 é uma observação conclusiva. Lembra que a evangelização de João Batista incluía muitas outras exortações. O relato de Lucas não é exaustivo.

A comparação sinótica evidencia que Lucas, a despeito das flagrantes semelhan­ças com Marcos e Mateus, colocou ênfases específicas. O ensino ético de João Batista (vv. 10-14) é matéria exclusiva do evangelista. Da mesma forma o é a perspectiva universal a que já nos referimos. Mencionamos ainda a insistência com que Lucas quer ver entendida a mensagem de João como evangelho. O texto nos faz formular três perguntas teológicas que pedem a nossa reflexão:
a) Como se integra o anúncio do juízo no Evangelho?
b) Qual c o significado da concretização ética da penitência nos vv. 10-14?
c) Como se relacionam João Batista e Jesus em termos teológicos?

3. Reflexões teológicas

1) Falar do juízo de Deus que pune o pecado humano é tarefa ingrata. As pessoas preferem os profetas da sorte. De fato, o pessimismo é enfadonho. Ele mata a alegria e estraga as merecidas festas da vida. Existem pregações cristãs que antes produzem medo do que confiança. De tanto juízo esquecem o evangelho. Mas erra também quem cala com respeito ao juízo. Quem assim faz, nega a responsabilidade humana. Deus não é ingênuo. Ele exige prestação de contas de suas criaturas e impõe sanções. Se fosse diferente, a graça se tornaria barata. De Deus não se zomba. Jamais há perspectiva de melhora sem mudança de mentalidade, de comportamento, de estruturas. Quem promete cura sem diagnóstico e sem terapia é charlatão. É o que vale em todos os sentidos.

Assim sendo, a pregação do juízo é parte integrante do próprio evangelho. É o Deus juiz quem perdoa, e graça é concedida aos culpados. Na verdade, existe apenas um pecado mortal, que é a impenitência, ou seja, a recusa da confissão dos pecados, a segurança que se ilude dizendo: Temos por pai Abraão, respectivamente, outros privilégios. Raça de víboras, será, então, a reação. O Advento é época de arrepender-se, de arrumar a casa para o ilustre hóspede que chega, impenitência é um mal extremamente grave. É a incapacidade para corrigir erros. Ela navega direto em direção à ruína. Enfrentará despreparada o juízo de Deus.

2) Conversão é necessária porque o estado das pessoas e do mundo agride a vontade de Deus. Esta, na verdade, se resume a preceitos muito simples. Sua observação representa não só um ato de obediência como também de bom senso. O temor a Deus sempre foi o princípio do saber (cf. Pv 1.7; etc.).

a) Na pregação de João Batista está, em primeiro lugar, a adequada distribuição dos recursos (vv. 10-11). É um pressuposto que todo membro da sociedade tem direito à existência. A negação desse direito produz a violência. Justiça e seguridade social são condições indispensáveis para uma sociedade sadia.

b) Renovação não equivale à eliminação das estruturas sociais. João Batista não recomenda aos publicanos que troquem de profissão (vv. 12-13). Estruturas estatais, incluindo os impostos, são imprescindíveis. Importa que sejam usadas, não abusadas. O mal está nas fraudes, falcatruas, extorsões, no clientelismo, fisiologismo, burocratismo, ou seja, na exploração que os cargos e as instituições oportunizam. Como seria o Brasil, se todos os servidores públicos (acrescentando-se os empresários, os operários, enfim todo o mundo) fossem honestos?

c) No entender de João, também os militares e a polícia não são supérfluos. Ele não é pacifista. Sabe que às vezes é necessário resistir ao mal à força. Mas proíbem-se aos soldados os maus-tratos, a tortura, a rapinagem. O que se preconiza são os soldados a serviço da paz – um projeto antigo e, no entanto, ainda insuficientemente concretizado.

Conversão ampla, geral e irrestrita mudaria a face da terra. Mas esse eleito se dará somente se envolver todo indivíduo. Manifesta-se em comportamento ético, que não se produz por si. Tem a fé na vinda de Deus por fonte. São as convicções que, cm última instância, determinam a conduta humana.

3) João Batista é pregador de arrependimento. Ele vê o mundo sob a iminência do juízo de Deus. … já está posto o machado à raiz das árvores; toda árvore, pois, que não produz bom fruto é cortada e lançada ao fogo (v. 9). Também a imagem que João tem do mais poderoso, cuja vinda ele anuncia, é nitidamente a de um juiz. A sua pá ele a tem na mão para limpar completamente a sua eira… (v. 17). O Cristo aguardado por João separará o trigo da palha. Vai fugir da ira vindoura somente quem agora muda o rumo de sua vida e obtém o perdão dos pecados mediante a submissão ao lavar do batismo.

Jesus corresponde apenas em parte ao prenúncio messiânico de João. Sua vinda certamente significou juízo: perante ele as pessoas eram obrigadas a se definir. Além disso, são numerosas as referências de Jesus ao castigo que Deus impõe ao pecado. E, no entanto, antes de condenar o Filho do homem veio para buscar e salvar o perdido (Lc 19.10). O evangelista João vai dizer que Deus amou ao mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito por ele (Jo 3.16). O Cristo é juiz, sim. Mas ele o é como aquele que deu a sua vida em resgate por muitos (cf. Mc 10.45). Em outros termos, Jesus não revoga a pregação de João. Ele a assume. Acrescenta-lhe, porém, uma dimensão fundamental, a da graça de Deus que se compadece de sua criatura, adia o juízo e estende a mão redentora.

Sob tal perspectiva, João é o precursor de Jesus não só em termos cronológicos. Também o é em termos histórico-salvíficos. Em Jesus apareceu uma nova dimensão da salvação. Com o anúncio do juízo, João prepara o advento daquele em que o juízo de Deus se manifestaria de maneira inesperadamente salvadora. Deus envia o seu Cris­to não para castigar, mas sim para reconciliar o mundo consigo mesmo (2 Co 5,18s.). Ele não acaba com o ser humano. Muito pelo contrário, concede-lhe vida, justifica o ímpio, convoca o mundo a voltar a ser o reino de Deus. Isso não significa que o juízo final seja suspenso. O dia virá. Será este, então, o Advento no fim dos tempos. Cumpre não desperdiçar a chance oferecida pelo amor de Deus.

4. Sugestões para a prédica

Proponho desenvolver a prédica em quatro passos:

1) O discurso de João é duro. Começa com um insulto. Ao invés de querida comunidade ele diz raça de víboras. O que justifica tal ofensa? Certamente não é um pecado especial da gente de então. É um mal que se verifica em todos os tempos, a saber, a impenitência. O primeiro bloco da prédica deveria enfocar e desdobrar esse assunto, ou seja, a dificuldade de admitir erro, de mudar de vida, de autocorrigir-se. Pregação do juízo é legitimamente educação para a criticidade, primeiro com relação a si próprio, depois também com relação a outras pessoas, bem como ao sistema e às leis que nos regem. Diante da perspectiva do juízo importa pôr a casa em ordem. Isso tanto cm termos individuais quanto sociais.

2) Para identificar o que não está em ordem, a prédica deverá recorrer aos vv. 10-14. A falia de justiça (vv. 10-11), a desonestidade (vv. 12-13), a violência (v. 14) são i-x pressões fortes do pecado a ser confessado e eliminado, justamente no Brasil de hoje. Mas há também outras coisas a acusar, como a fraqueza da fé e, sobretudo, a indiferença com relação à vontade de Deus. Muitas pessoas já nem mais perguntam por ela. É a impenitência consumada, cujo fim só pode ser a ruína.

3) O mal costuma tomar embalo pela impunidade. Se o ladrão tivesse certeza de que vai ser flagrado e penalizado, não cometeria o crime. As pessoas desobedecem a Deus porque acham que suas responsabilidades não serão cobradas. Não acreditam no juízo final. Diante de tal atitude, cabe à prédica insistir em que os prenúncios do juízo final se fazem sentir nitidamente já no presente. É tolo quem o ignora e colabora na destruição de si e do mundo. Nosso bem-estar pressupõe o respeito à vontade de Deus. Ninguém se engane: Deus virá para fazer justiça.

4) Na verdade, Deus já veio. Ele apareceu naquele mais poderoso, anunciado por João. Veio em Jesus de Nazaré, assim como antes já tinha vindo na palavra dos profetas, por exemplo. Deus não permanece oculto. O período do Advento celebra a vinda de Deus em Jesus. Ele de fato a celebra (!), pois há motivos de alegria. Jesus Cristo não vem como carrasco e, sim, como médico. Quer curar os males sob os quais sofremos. O Deus juiz é, antes de qualquer coisa, o Deus salvador. A ameaça do juízo permanece, mas na verdade apenas para os impenitentes. Por isso …o reino de Deus está próximo; arrependei-vos e crede no evangelho (Mc 1.15). É o que a prédica deveria explicitar.

5. Subsídios litúrgicos

Confissão dos pecados: Senhor, por demais vezes temos falado e agido de modo irresponsável. Estamos em dívidas contigo e as pessoas a nosso lado. Não levamos em conta o teu juízo. Mas rogamos-te, queiras perdoar-nos as falhas e ajudar-nos a cami­nhar mais de acordo com a tua vontade. Sê misericordioso conosco, assim como nós queremos ser misericordiosos em relação aos nossos próximos e próximas. Dá que sejamos boa árvore, trazendo bons frutos. Tem piedade de nós, Senhor.

Oração de coleta: Senhor, nós nos alegramos com a tua chegada. Se estás perto de nós não mais precisamos ter medo. Tu nos levantas quando caímos. Tu nos consolas quando nos atinge a dor. Obrigado por te importares conosco. Vem, toma em nós mo­rada e ajuda-nos a enfrentar os desafios da vida. Amém.

Intercessão: Senhor nosso Deus! Nós intercedemos por este mundo que não des­prezaste, e, sim, amaste a ponto de lhe enviar o teu Filho. Volta para mais uma vez renovar a tua criação. Tem compaixão deste nosso país tão profundamente imerso em injustiça, corrupção, violência. Dá sabedoria, humildade e honestidade aos governantes, bem como a todas as pessoas que exercem funções de responsabilidade. Ansiamos pelo dia em que não haverá mais fome e violência entre nós e em que a paz social se tenha tornado realidade. Nós te pedimos por tua Igreja, para que não fique devendo a tua palavra e o exemplo evangélico às pessoas. Desperta em nossas comunidades o espírito missionário e diaconal, a fim de que sejam sal da terra e luz do mundo. Finalmente, Senhor, recomendamos-te as pessoas doentes, as moribundas, as desesperadas. Estende-lhes a mão e faze que enxerguem a tua luz em sua escuridão. Teu Advento, Senhor, é para todos. Cumpre em nós as tuas promessas. Amém.

6. Bibliografia

DREHER, Carlos A. Lucas 3.7-18 – auxílio homilético. In: Proclamar Proclamar Libertação. São Leopoldo : Sinodal, 1991. vol. XVII, p. 21-27.
NÖR, Ricardo. Lucas 3.1-14 – auxílio homilético. In: Proclamar Libertação. São Leopoldo : Sinodal, 1980. vol. VI, p. 76-80.
SCHÜTZ, Roland. Johannes der Täufer. Zürich : Zwingli, 1967. (Abhandlungen zur Theologie des Alten und Neuen Testaments, 50).
SCHWEIZER, Eduard. Das Evangelium nach Lukas. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1982. (Das Neue Testament Deutsch, 3).
WIGGERMANN, Karl Friedrich. Lukas 3.1-14 – Predigthilfe. In: Neue Calwer Predigthilfen : ano III, vol. A. Stuttgart: Calwer, 1980. p. 29-37.

Proclamar Libertação 23
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia