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Prédica: Lucas 2.1-20
Leituras: Isaías 62.10-12 e Tito 3.4-7
Autor: Louraini Christmann
Data Litúrgica: Natal
Data da Pregação: 25/12/1997
Proclamar Libertação – Volume: XXIII
Tema: Natal

1. Estou cansada de falar o óbvio no Natal

Estou cansada de falar o óbvio no Natal. Estou cansada de ouvir o normal. Aliena. Leva a que não mais se pense no revolucionário como o que nos traz, por exemplo, Lc 2.1-20, o texto previsto para a pregação neste Natal.

Não vou entrar em questões exegéticas. Tanto já se entrou em relação à mensagem natalina! Não vou comentar o livro do evangelista Lucas. Tanto já se comentou! Quero, isto sim, falar do que hoje parece óbvio, normal, na mensagem do Natal, mas que não é nada óbvio, nem normal. De tanto ouvir, de tanto repetir, de tanto falar, já não se presta atenção no profundamente radical do Natal.

Quanto à pregação, eu penso que os passos deste meu auxílio poderiam ser os seus passos. É preciso ver, é claro, as ênfases que você precisa dar conforme a situação o exigir.

2. Lugar bem definido, contextualizado, onde Jesus não tem lugar

A mensagem do Natal não pode ser compreendida fora da realidade social, econômica e política. Ela está bem localizada dentro do nosso tempo, assim como o autor faz questão de iniciar o texto, dizendo: Naquele tempo (v. 1).

E naquele tempo havia donos do poder, o imperador Augusto, o governador Cirênio. Hoje eles têm outros nomes. Naquele tempo havia ordens que visavam aperfeiçoar o controle da população. Hoje são outras ordens, mas o controle é o mesmo. Hoje o povo também precisa ir de Nazaré da Galiléia para a região da Judéia a uma cidade chamada Belém para responder aos apelos controladores do neoliberalismo e do Nordeste para o Sul, é do Sul para o Norte, é da roça para a cidade… O autor destaca bem os motivos políticos que levaram José e Maria para Belém naquele tempo, bem no período de Maria dar à luz.
Mas aquele espaço geográfico e cronológico bem definido contrasta com a falta de espaço para Jesus nascer, (…) pois não havia lugar para eles na pensão (v. 7b).

Também nos dias de hoje muitas vezes não há lugar para muitas Marias, para muitos Josés, para muitos meninos e meninas Jesus. E as Beléns atuais nem precisam estar tão movimentadas assim. Basta não ter boa aparência, basta não ter boa conta bancária, basta não estar na lista das pessoas que deram certo na escada do empurra-empurra que leva à sobrevivência dentro do esquema traçado pelos imperadores Augustos c governadores Cirênios da tal da globalização.

3. Manjedoura não é berço de seda e rendas

Uma jovem, futura mãe, um dia me convidou para ver a manjedoura, segundo ela, de seu bebé, que guardava toda enfeitada de seda e rendas. Aí eu me dei conta de que nunca havia pensado que é preciso dizer claramente certas coisas. Por exemplo: manjedoura não é berço de seda e rendas. Manjedoura é cocho de vaca. Nascer em manjedoura é o fim da picada. E isso precisa ser dito com todas as letras. Caso contrário corremos o risco da manjedoura se transformar de fato em um berço de seda e rendas.

Eu sugiro que seja exposto sobre o púlpito uma mantilha ou um vira-xale de bebe todo enfeitado de seda e rendas, ao lado da palha de milho e restos de pasto que normalmente sobra no cocho da estrebaria, envolto por um pano rústico. E dizer, então, que Jesus não teve o direito nem de ter um berço normal, muito menos um de seda e rendas, como o usado pelos nossos bebês. Terá que ser dito que foi de palha e resto de pasto o colchão em que Jesus foi colocado ao nascer, e que os panos, na certa, eram muito rústicos, panos de um casal migrante de última hora.

4. A Maria da qual nunca se fala

A gente sempre fala e ouve falar da Maria disponível, daquela que logo diz eis aqui a serva do Senhor, da mãe que enrolou seu filho em panos, da mulher muito quieta que guarda tudo no coração.

As Marias de hoje conquistaram muitas coisas. Elas querem e precisam ouvir o lado esquecido de Maria para terem mais capacidade de organização na conquista de mais espaço. Pois vejamos:

Maria é mãe solteira. Seu casamento estava apenas contratado. Deve ter sido vítima de muito preconceito, como são as mães solteiras de hoje.

Maria não é descendente de Davi. Descendente de Davi é José. E Maria que dá à luz o Filho de Deus. Não José.

Maria é mãe migrante. Teve o parto enquanto estavam em Belém. Ela não pôde ficar tranqüilamente em Nazaré para ter o seu bebê por causa de José, que nem era o seu marido. Ele precisava se registrar em Belém como descendente de Davi. Maria sofre, pois, as consequências da lei que atinge o seu companheiro.

Maria é mãe sem leito para dar à luz. Eu já tive dois filhos e uma filha. Por isso não consigo imaginar que alguém possa escrever a história do Natal sem mencionar este fato. Só pode ter sido caneta masculina que escreveu o texto, lembrando apenas que Maria enrolou o menino em panos e o deitou numa manjedoura. E ela? Maria ficou de pé? É só passar pela experiência do parto para saber.

Eu me arrisco a escrever o trecho que falta. Deve ser mais ou menos assim:

Lucas 2.7 – Então Maria deu à luz o seu primeiro filho deitada no chão da estrebaria. Ela enrolou o menino em panos e o deitou numa manjedoura, pois não havia lugar para eles na pensão.

Maria pensa, reflete, aprofunda sua compreensão sobre os acontecimentos. Não só medita piedosamente. Diz Lucas (2.19) que Maria ficou lembrando todas estas coisas, pensava muito nelas e guardava tudo no coração.

Por guardar tudo no coração, por pensar muito nelas, por lembrar todas essas coisas é que Maria foi aquela que desafiou Jesus a fazer seu primeiro milagre; foi ela que o acompanhou sempre, até mesmo ao pé da cruz. Disso não lembramos, via de regra, na noite natalina. A Maria do Natal parece não ser a mulher discípula da Sexta-Feira Santa. Isso precisa ser dito. Se não for dito, desaparece.

5. Da estrebaria do pasto de ovelhas ao pastoreio de pastores

Não dá para negar o aspecto popular da mensagem natalina. Da estrebaria a história enfoca um outro lugar de trabalho. Ela convida trabalhadores no desconforto de passar as noites nos campos, tomando conta dos rebanhos (2.8) para alegrarem-se.

Os virtuais candidatos a um convite dessa natureza, pelos critérios da nossa sociedade, estavam dormindo tranquilamente no conforto do templo e dos palácios. Mas os pastores de ovelhas são os escolhidos.

Não, não dá para negar o aspecto popular da mensagem natalina. Mas isso é dito costumeiramente nas nossas programações de Natal?

Esses escolhidos fazem jus à escolha. Eles dizem prontamente: Vamos até Belém, apesar de ficarem com muito medo. E eles foram depressa (vv. 15 e 16). A disponibilidade, o despojamento, é um ingrediente fundamental para atender ao convite. Não ter nada a perder parece ajudar muito. O texto nada fala sobre as ovelhas, como ficaram sem seus pastores quando eles foram depressa a Belém. Isso parece não ter importância. O importante é que eles foram depressa.

E aí aconteceu uma das coisas mais bonitas que ainda ocorriam muito no meu tempo de menina: visita de compadre c comadre. Eles foram depressa, encontraram Maria e José e viram o menino deitado em manjedoura. Então cantaram o que os anjos tinham dito a respeito dele. Todos os que ouviram o que os pastores diziam ficaram muito admirados (vv. 16-18). É desse jeito que a mensagem foi adiante, na visita e na conversa de compadre e comadre. Isso não é fantástico?

Essas visitas e conversas precisam ser incrementadas hoje para que a Boa Nova tenha onde se enraizar. É indo depressa, é contando adiante, é se admirando e, como Maria, lembrando tudo, pensando muito, guardando no coração e seguindo firme no discipulado (v. 19). Mas depois de cada empreitada, voltaram aos campos, cantando hinos de agradecimentos a Deus pelo que tinham ouvido e visto (v. 20).

A volta aos campos, o voltar para casa, para o seu lugar, é muito importante, porque ali existe o clima bem particular do grupo ou da pessoa para o agradecimento, para o louvor, para o reabastecimento.

6. Ser anjo – estar cercado de anjos

O anjo de Deus veio aos pastores de ovelhas, trabalhadores em seu local de trabalho. E a luz gloriosa do Senhor brilhou sobre eles (v. 9).

A luz gloriosa do Senhor veio trazer uma boa notícia, a notícia do menino nascido na estrebaria. Isso, na verdade, não é uma boa notícia. Isso é uma notícia trágica. Os pastores tiveram medo, mas não desconfiaram, não estranharam a notícia, de tanto que o anúncio do nascimento do Messias era aguardado.

Tem tanto para se dizer sobre o anjo e a notícia que ele trouxe! Isso geralmente se fala no Natal. Eu quero, no entanto, falar do que normalmente não se fala, também em relação aos anjos.
A boa notícia que o anjo traz não é só boa notícia para esse grupo de trabalhadores, mas para todo o povo também. Vejam só o que é a mensagem do anjo. É boa notícia para todo o povo: Não tenham medo. Estou aqui para trazer uma boa notícia a vocês e ela será motivo de grande alegria também para todo o povo (v. 10).

Aí dá para perguntar: as boas notícias para vocês, hoje, também são motivo de grande alegria para todo o povo? Esse poderia ser o critério para avaliar o nosso compromisso com Jesus. Outro detalhe: o anjo está consciente da realidade. Ele sabe exatamente o que aconteceu e está acontecendo lá na estrebaria: Hoje, na cidade de Davi, nasceu o Salvador de vocês – o Messias – o Senhor! Esta será a prova: vocês encontrarão uma criancinha enrolada em panos e deitada numa manjedoura (vv. 11 e 12).

Que detalhe bonito para, a partir dele, desafiar a comunidade a também estar por dentro da realidade, a fim de entendê-la e ser anjo no seu meio. E isso junto com uma multidão de outros anjos, como se fosse um exército celestial.

Ser anjo hoje é, portanto, uma missão grandiosa a partir da mensagem do Natal. Por outro lado, ser cercada(o) de anjos hoje é uma bênção graciosa.

Como os anjos, cantamos em cada culto o Glória. Eu sugiro que em especial na época do Advento seja lembrado que essa parte da nossa liturgia vem desse louvor de anjos. A gente é anjo e canta: Glória, glória, glória ; Deus nas alturas, Glória, glória, paz entre nós! Paz entre nós!

7. Passos litúrgicos

Sugiro fazer a confissão de pecados dessa maneira: pegar diversas fitas de papel de seda ou crepom, de diversas cores. Juntá-las, uma a uma, com um grampeador, formando elos entrelaçados. Assim se construirá uma corrente bem visível. Eu fiz as fitas com 10 cm de largura por 50 cm de comprimento. Usei seis cores. Ficaram bonitas! A cada novo elo acrescentado à corrente, confessar o pecado que cometemos por causa de nossas diferenças que rasgam a nossa unidade, como pastores desunidos, ovelhas desunidas, Marias desunidas, Josés desunidos, anjos desunidos. Terminar a confissão garantindo que o perdão a partir do Menino Jesus dá unidade para a corrente, apesar das diferenças de raça, de cultura, de sexo, de idade. Terminar dizendo, com os anjos e cantando com a comunidade: Glória, glória, glória a Deus nas alturas. Glória, glória, glória, paz entre nós, paz entre nós.

Para o envio, sugiro que a equipe de liturgia faça um pequeno anjo de cartolina ou isopor. Cada pessoa ganhará um anjo e será enviada para ser anjo no mundo e vai saber-se, assim, rodeada de anjos.

Não li nenhuma literatura para escrever este auxílio. Apenas passei o último Natal fazendo apontamentos toda vez que me deparei com as coisas óbvias que sempre dizemos no Natal, que não dizem mais nada.

Proclamar Libertação 23
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia