Prédica: Atos 10.34-38
Leituras: Isaías 42.1-7 e Lucas 3.15-17, 21-22
Autor: Clemente João Freitag
Data Litúrgica: 1º Domingo após Epifania
Data da Pregação: 11/01/1998
Proclamar Libertação – Volume: XXIII
Tema:
1. Palpites
Atos dos Apóstolos não é fácil para uma vida e Igreja exclusivistas. É altamente desconcertante. Traz experiências de fé que, no decorrer dos tempos, foram soterradas pelos escombros de alguns dogmas e práticas. Contudo, essas experiências de fé não foram e não estão mortas ou fora de ação. Disto nos fala At 10.34-38, texto de extrema periculosidade para com a religião da pureza e sua nova versão no cristianismo emergente. Sugiro, pois, mas com tempo, a leitura de Lc 3.15-17, 21-22 e Is 42.1-7 para melhor sentir os golpes dessa prática cristã. Além disso, a leitura do conteúdo de At 10.34-38 igualmente fará bem ao paladar de nossa prática cristã no apagar deste milênio.
Fazendo uma sintonia simultânea nos três textos indicado para o 1° Domingo após Epifania, podemos captar, além da mensagem e da prática do batismo, uma outra questão, que extrapola a nossa tendência em aprisionar certas práticas e ideias acerca do ser cristão. Bisbilhotando a história do cristianismo, descobrimos, até os dias de hoje, a infindável luta em torno da compreensão e da prática do batismo. Batismo de crianças e/ou adultos? Batismo no, com, do, sob e pelo Espírito Santo? Radicalizamos o certo ou o falso! Essa luta dinamizou a prática cristã ou trouxe rachaduras maiores?
Lendo Atos, fica evidente que enveredar por esse caminho é cair no poder da religião da pureza, prática contrária ao bem da fé cristã. Distanciamo-nos, assim, do poder propulsor do cristianismo. Os três textos indicados para o tempo da Epifania (At 10.34-38; Is 42.1-7; Lc 3.15-17 e 21-22), mais o contexto de At 10, nos empurram para fora das paredes do batismo. Provocam uma nova quebra de tabus. Passamos a ver, ouvir, apalpar e praticar uma antiga novidade. Essa novidade faz a interligação entre os textos, destronando o tema do batismo, que muitas vezes foi e é considerado a mola propulsora da fé e prática cristã. Essa novidade em poder é discutida como: …meu Espírito…; …o Espírito Santo desceu…; e …derramou o Espírito Santo….
Aí reside a periculosidade e o poder do ser cristão para com as ordens constituídas. Este poder, Espírito Santo, não é aprisionável pelas pessoas c instituições, como o é o Santo Batismo. Jesus batizado foi morto. O Espírito Santo não chegou nem a ser preso! Podemos até aprisioná-lo. Mas segue agindo livremente onde e como quer. O Espírito Santo é desconcertante. Implode estruturas viciadas, quer pessoais ou impessoais. Entra em conflito com o mundo organizado que massacra a vida dos/as humildes. Causa crescimento onde não esperamos. É ruptura! É ação! É consolo! É liberdade! É esperança! É amor! Tudo isso veremos nos versos que seguem.
2. Considerações
Nos primórdios, o ser cristão e o cristianismo já eram regidos pelo ir-vir; fazer-impor as mãos e olhar-ouvir. São práticas impulsionadas pelo poder do Espírito Santo e não regidas pelos detalhes e casuísmos das leis humanas, camufladas de divinas, demonstrando ser uma proposta de vida não atrelada ao status quo. Pelo contrário, é movimento, movimento que assusta. Além de ir ao encontro, fazia um trabalho contestador de gratuidade, impondo as mãos onde havia vida ameaçada e repartindo de graça. Mas o cristianismo não parava por aí. O ir, o impor as mãos eram complementados pelo ver e ouvir, e, esses, lapidados pelas palavras de ânimo: vinde-ide; trazer e receber! Essa dinâmica devolvia o valor aos desprezados e afastados do poder vigente, contrastando com a prática do templo, da sinagoga e de outras instituições coordenadas por leis rígidas e pessoas obcecadas pela certeza de sua compreensão e prática exclusivistas. Na sociedade da época do poder romano, o cristianismo surge como uma esperança diferente. Os sem-vez no poder se sentem acolhidos. As massas exploradas voltam a ser criaturas dinâmicas. O poder constituído e organizado sente, com o tempo, o avanço dessa valorização do humano em detrimento de suas postulações institucionalizadas.
O texto bíblico de At 10.34-38 e o seu contexto relatam esta novidade de ir e vir, com todas as suas implicações e rupturas, mostrando que a vida em seu todo é de valor para Deus. Assim temos:
V. 34: Pedro e seus acompanhantes chegaram numa casa. Não é templo sagrado. Não é arena. É casa de impuros, casa, então, considerada pagã por muitos cristãos (contento). Casa cheia. Sem controle e imposição de leis e regras de pureza para ouvir e entrar em contato com a palavra e o poder de Deus. Diferente dos outros deuses. Diferente das religiões conhecidas. Diferente dos poderes constituídos é o Deus que Pedro confessa. Agora eu sei que Deus trata a todos igualmente… Uma afronta para as leis romanas. Mensagem esquisita para uma sociedade que na prática era escravagista, classista ao extremo. Mensagem que contrariava o exercício diário no campo econômico-político e ideológico. Mensagem diferente das leis de pureza. Dir-se-ia hoje que é uma agressão. Para a maioria ouvinte, soava como receber o pão da vida e o direito à liberdade.
V. 35: Os critérios de aceitação por parte de Deus em nada lembram os ritos de iniciação de qualquer religião ou casta social. Na maioria das vezes os ritos são altamente excludentes na formulação de sua prática. Na maioria das vezes não visam o aprimoramento deste, mas antes a limitação do ingresso ou a impossibilidade de indesejados serem aceitos. Aqui os critérios são respeito e fazer o que é direito. Raça, cor, sexo, partido, classe e doença não contam e não são pressupostos para alguém ser aceito. Pelo que indica o contexto, caso Cornélio e sua família fossem ao encontro da igreja, necessitariam se submeter aos rituais vigentes. Aqui, no discurso de Pedro, na liberdade e longe de qualquer fiscalização, vale o que Deus ordena e fala. É a ação da Palavra e do Espírito como guardiães da liberdade salvadora. Pedro e sua caravana foram ao encontro dos necessitados do poder de Deus.
V. 36: De início, surpreende-nos que Cornélio e sua família conheciam a mensagem de Deus! Prepararam-se para receber mais conhecimento de Deus. Assim, a palavra lhes é repetida com alguns detalhes, ganhando destaque a boa notícia de paz e o senhorio de Cristo. Não é a paz dos judeus ou dos romanos. Mas é a paz da boa-notícia. Complica mais ainda quando a mensagem de Deus mexe na ideologia dos poderes vigentes e ficam gravados na cabeça de qualquer ser humano. Na época, o todo-poderoso é Jesus e o imperador. O templo e as leis de pureza. Fora disso é conspiração pura e exclusão. Pedro, sutil e claramente, diz que Jesus é Senhor de todos/as. Que boa notícia saber que há dentro Senhor, além de imperador. Suspeito que, na sinagoga, Pedro não se sairia assim sem sofrer perseguição ou contestações hostis.
V. 37: Pedro lhes oferece uma leitura resumida dos fatos e da história. Ressaltamos aqueles relacionados à Galiléia, falando do batismo praticado por João. Aqui, lembro o relato de Lc 3, em que aparece João balizando com água. Fez uma previsão profética que não se concretiza nos moldes da época. E Ele vos batizará no Espírito Santo e fogo. Jesus não batizou e o Espírito Santo não é cedido só no batismo. Conforme Lucas, nem Jesus recebeu o Espírito Santo no Batismo, mas quando orava. Isto é chamativo para o ser Igreja nos dias de hoje. Esta possibilidade real de o Espírito Santo estar desvinculado da prática do batismo ou vice-versa nos mostra a liberdade de Deus e a tendência contrária do ser humano. Atesta, assim, a tentação vigente, já na Igreja primitiva, de os seres humanos aprisionarem a ação de Deus com e em leis e costumes viciados. A história nos mostra que a prática do batismo é aprisionável pelos seres humanos e suas denominações religiosas. Já o Espírito Santo que desce, é derramado, é posto, vem, não está tão propenso a cláusula. Mesmo assim, tentamos prendê-lo a determinado grupo ou jeito de ser cristão. Pedro não fez do batismo o carro-chefe de sua pregação. É um elemento da vida cristã.
V. 38: Pedro valorizava os da casa, a ponto de lembrá-los que conhecem Jesus e o que Deus lhes fez. Em seu resumo da ação de Deus na história, Pedro menciona a presença do Espírito Santo em Jesus. Não supervaloriza o ato do batismo de João. Fala que Deus derramou o Espírito Santo sobre ele. Destaco, o que é derramado torna-se difícil de ser recolhido e posto em vasilhas. Sempre sobra algo onde não se quer. A vida de Jesus passa a ser algo livre e liberto. Não no batismo, mas sim no derramar o Espírito Santo. Vejo aqui o batismo, citado no verso anterior, apenas como um rito de identificação visível. Não é batismo que é enviado e desce sobre os ouvintes, mas sim o Espírito Santo (v. 44).
Já a presença do Espírito Santo nos capacita para a prática cristã. O Espírito cria novidades inexplicáveis. A partir e com o Espírito Santo Jesus passa a ter poder e age diferente dos outros deuses. Jesus com poder é uma afronta aos poderes vigentes, quer sejam poderes religiosos, políticos ou econômicos. Caso o cristianismo ficasse apenas na prática, no ritual, no batismo, ele não teria força suficiente, creio, para suplantar outras crenças e o poder vigente. O rito institucionalizado e fundamentado em leis mata ou inibe o poder da esperança. Já o Espírito Santo foi prometido e age com poder e saber escatológicos. Os desprezados e doentes passam a viver vida completa. Quando o Espírito Santo vem, ele é derramado e desce sobre toda e qualquer criatura de Deus, ultrapassa toda e qualquer religião. É implosão. É ruptura. Este mistério de pousar sobre qualquer um, capacitando-o/a para a ação, é algo novo em termos de crença e poder o receber do Espírito Santo não fixo a determinado gesto ou fato. Ele vem, é derramado e pousa normalmente quando anunciado, falando e ouvindo a Palavra de Deus, também na imposição das mãos e no exercício da oração. Contudo, não deixa de estar vinculado ao exercício do batismo em outras ocasiões. Em todo caso, extrapola nossa compreensão e delimitação de fé.
O Espírito Santo fez com que Jesus andasse por todos os lugares; que ele fosse ao encontro dos excluídos e permitiu que os sem-vez lhe mirassem como um referencial de vida. Essa dinamicidade de Jesus, via Espírito Santo, contrastava com o ritual vigente. Ritual esse que era estático e sujeito a inúmeros preceitos que de antemão já excluíam a milhares. Ao reintegrar doentes, Jesus mostra que os mitos de iniciação são um alentado, uma violência contra a vida.
No trabalho de Jesus, o dar o pão, a cura e a mensagem das bem-aventuranças contrastavam com o vender da pureza e a opressão impostos pelo Império Romano. A prática de Jesus era vista como uma libertação de todas as forças do diabo, que agiam nos seres e suas estruturas de opressão.
3. Opção
É tempo de Epifania! É revelação! É manifestação! É oposição, do divino. Mera. coincidência ou não, mas o carro-chefe desta época do calendário religioso é o batismo. Assim, ao menos, a tradição e a história normal das igrejas faz soar. É sintomático c questionável esse dimensionamento teológico. Ainda mais quando o texto fundante é Al 10,34-38 e seus guardiães Lc 3.15-17,21-22 e Is 42.1-7. Aparentemente nada impede de ser assim praticado e ensinado. Afirma que estamos pagando um preço elevado por demais ao permanecermos nesta linha. O preço é o marasmo e a estagnação. Desde os primórdios do cristianismo, o ritual e suas leis tentaram ser impostas como pontos básicos da fé. Para isso, a prática do batismo serviu como uma luva. A prática, a compreensão do ensino do batismo foram domesticados e moldados, atendendo a uma determinada ideologia. Não sou contra o batismo e seu poder como ordem de vida. Quero apenas, e simplesmente, chamar a atenção para o fato de que o carro-chefe da perícope e dos textos auxiliares indicados não é o tema do batismo, mas sim o Espírito Santo. Olhando assim, vemos o batismo como uma ordem divina que é executada por mãos humanas, sujeita ao impasse da prática e/ou adulto. Já o Espírito Santo é uma ordem c prática divinas. Não está sujeito ao impasse milenar do infante não poder recebê-lo. Adulto instruído pode recebê-lo. Ou vice-versa.
No andar da leitura e estudo desse texto também foi-me ensinado que a novidade prática do cristianismo aconteceu devido a presença marcante do Espírito Santo em pessoas e estruturas. Contrariando tudo e todos, inclusive o exercício do batismo, o Espírito Santo descia, causava e causa rupturas inexplicáveis. Essas rupturas afetam o alicerce do campo religioso, político e econômico das pessoas, suas leis e estruturas opressoras; criando um ar de novidade e esperança escatológica para os desprezados/ as; devolvendo o poder e a força mística aos oprimidos do anseio pela vida. Essa dinamicidade de Jesus e da Igreja primitiva veio pelo Espírito Santo.
Tal poder é verdade verdadeira em At 10.34-38. Presenciando a reviravolta que os novos movimentos religiosos propiciam na vida e prática das pessoas e nomes religiosos confesso a minha, a nossa inaptidão como Igreja na percepção da ação do Espírito Santo durante dias e até milênios. Especializamo-nos por demais nos ritos e na compreensão do exercício do batismo em detrimento do Espírito Santo. A perícope em pauta chama, clama e oferece o poder do Espírito Santo para dentro da nova estrutura e nomenclatura da Igreja. Que esta nova nomenclatura não iniba ou ofusque o Espírito Santo, que foi, é, e será derramado sobre todos/as.
Com o poder do Espírito Santo o cristianismo primitivo foi missionário, caminho de liberdade e de esperança. Foi alternativo. Se hoje estamos em crise de identidade e confessionalidade, precisamos buscar mais o derramar do Espírito Santo por sobre todos/as, não só o batismo, como ocorre hoje. Lidar, estar com e sob o poder do Espírito Santo não nos dá o direito de querermos ser mais puros, perfeitos e santos. Entrando nesse caminho, já não é mais o Espírito Santo que nos move, mas sim o espírito do mal, do diabo. Com o poder do Espírito Santo derramado sobre nós, muda a nossa prática. A ação passa a ser desenvolvida por toda a Igreja e na totalidade do ser humano. Necessitamos crescer no lidar e estar entre aqueles/as que aceitam a vinda do poder do Espírito Santo. É lógico e necessário que muitas ações e fatos escapem do nosso controle, leis e estruturas. Isso redimencionará o mundo da nossa fé.
4. Bibliografia
BRANDT, Hermann. O risco do Espírito. São Leopoldo : Sinodal, 1977.
COMBLIN, José. Atos dos Apóstolos. São Leopoldo : Sinodal; Petrópolis : Vozes; São Bernardo do Campo : Metodista, 1988.
LOHSE, Eduard. Introdução ao Novo Testamento. São Leopoldo : Sinodal, 1974.
SPELLMEIER, Arteno I. Auxílio homilético sobre Atos 10.34-38(10.1-11-11.18). In: Proclamar Libertação. São Leopoldo : Sinodal, 1993. vol. XIX, p. 49-54.
WULFHORST, Ingo. Discernindo os espíritos. 4. ed. São Leopoldo : Sinodal; Petrópolis : Vozes, 1996.
Proclamar Libertação 23
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia