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Prédica: Mateus 16.13-19
Leituras: Atos 9.8-13 e I Coríntios 10.1-5
Autor: Wanda Deifelt
Data Litúrgica: Dia da Confissão de Pedro
Data da Pregação: 18/01/1998
Proclamar Libertação – Volume: XXIII
Tema:

1. O texto e seu contexto

O texto previsto para a pregação é Mt 16.13-19. É um texto bastante conhecido, especialmente por se tratar da confissão de fé de Pedro. O relato inicia com a pergunta da parte de Jesus: quem diz o povo ser o Filho do homem? Os discípulos respondem arrolando uma série de personagens bíblicos, lideranças conhecidas na tradição judaica. Entre tais personagens estão João Batista, Elias, Jeremias e outros profetas. De acordo com os discípulos, o povo vê em Jesus um profeta.

Profetas são pessoas chamadas por Deus, vocacionadas para tarefas muito especiais. Denunciam injustiças, anunciam o dia do Senhor. Caracterizam-se pelo uso da palavra, chamando o povo de volta ao caminho. Não é casual que os nomes de João Batista, Elias e Jeremias sejam citados. Todos eles, em fidelidade à sua vocação profética, foram coerentes e sofreram perseguições. Alguns até foram assassinados. Elias, p. ex., quando estava no monte Horebe, exclamou a Deus: Tenho sido zeloso pelo Senhor, Deus dos Exércitos, porque os filhos de Israel deixaram a tua aliança, derribaram os teus altares, e mataram os teus profetas à espada; e eu fiquei só, e procuram tirar-me a vida. (l Rs 19.11.) O sofrimento faz parte da tarefa profética.

A comparação que o povo faz antevê que também Jesus deverá sofrer. Naturalmente o texto é escrito depois do evento propriamente dito, depois da morte e ressurreição de Jesus, de modo que o redator possa ter selecionado, entre a lista dada (o v. 14 diz: …ou algum dos profetas), aqueles profetas que tiveram histórias parecidas com a de Jesus. Visto de modo retrospectivo, também Jesus era coerente com a sua pregação e sofreu por causa dela. Também Jeremias foi traído, comparando a si mesmo a um cordeiro manso que é levado ao matadouro (Jr 11.18-19). Sacerdotes e profetas falaram aos príncipes e a todo o povo clamando pela sua morte, por ter profetizado contra a cidade de Judá. Jeremias, no entanto, defende a integridade de sua pregação: Sabei, porém, com certeza que, se me matardes a mim, trareis sangue inocente sobre vós, sobre esta cidade e sobre os seus moradores; porque, na verdade, o Senhor me enviou a vós outros, para me ouvirdes dizer-vos estas palavras. (Jr 26.15.)

O relato de Mateus continua com uma nova pergunta da parte de Jesus: Mas vós, quem dizeis que eu sou? Diferentemente da resposta à primeira pergunta, onde diversas respostas são registradas, o texto só menciona a resposta de Pedro. Não sabemos qual foi a resposta dos demais discípulos à segunda pergunta. Simão Pedro responde: Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo. Por esta resposta, Jesus o chama de bem-aventurado. Pedro identifica a diferença entre os profetas que atuaram antes de Jesus e a sua condição única de Filho de Deus. Jesus não só recebeu o Espírito, quando foi balizado por João Batista, mas no seu batismo também se estabeleceu a sua relação filial com Deus: Balizado Jesus, saiu logo da água, e eis que se lhe abriram os céus, e viu o Espírito de Deus descendo como pomba, vindo sobre ele. E eis uma voz dos céus, que dizia: Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo. (Mt 3.16-17.)

A confissão de fé de Pedro não é única, apesar de o texto dar ênfase a ela. No Evangelho de João, por exemplo, temos uma confissão de fé que usa as mesmas palavras que Pedro. Trata-se da confissão de fé de Marta. Diz ela: Sim, Senhor. Eu creio que tu és o Cristo, o Filho de Deus que devia vir ao mundo. Carlos Mesters, na apresentação que faz ao livro de Mercedes Lopes intitulado A Confissão de Marta, faz o seguinte comentário:

O que Pedro representava e fazia nas comunidades de Mateus, Marta o fazia e representava nas comunidades de João. Texto tão conhecido! E eu nunca me tinha dado conta desta semelhança, nem da importância que a pessoa de Marta ocupa no Evangelho de João e, por conseguinte, nas comunidades joaninas. A tradição clerical e patriarcal de séculos encobriu o texto, e não permitiu que seu sentido original aparecesse e incomodasse.(1)

Tanto a proclamação de Pedro como a de Marta são afirmações de fé que reconhecem Jesus como Messias, expressando que as expectativas judaicas se cumpririam nele. No entanto, a relação filial de Jesus transcende o horizonte da fé judaica, pondo em relevo a união especial de Jesus com Deus e sua missão neste mundo como seu enviado(2). Ambas as confissões compartilham o reconhecimento da natureza divina em Jesus Cristo e merecem destaque. No entanto, há uma diferença entre as duas confissões. Depois que Pedro profere suas palavras, Jesus o chama de bem-aventurado e lhe dá uma função especial, o que não acontece com Marta.

A confissão de fé não é obra de Pedro, mas remonta a Deus. Assim como a própria fé não é criação humana, mas é presente de Deus, a proclamação pública desta fé não depende de nossos próprios méritos. Mateus 16.17 deixa isto claro. Não é carne e sangue que o revelaram, mas Deus mesmo. Pedro não poderia chegar à compreensão da natureza divina, a relação filial com Deus, se não fosse por intermédio de Deus mesmo. Este conhecimento é dado como graça e é, por isto, motivo de bem-aventurança.

À afirmação da bem-aventurança segue-se a promissão. Simão Barjonas passa a ser tratado por Pedro. Pedro será a pedra sobre a qual se edificará a Igreja. Contra ela as portas do inferno não prevalecerão. Ele terá as chaves do reino dos céus. O que ele ligar na terra será ligado nos céus; o que desligar na terra será desligado nos céus. A construção do texto e o uso de determinados termos merecem algumas considerações. É evidente que há referências semíticas: carne e sangue para expressar ser humano, o jogo de palavras Pedro-pedra (Cefas, em aramaico), ligar e desligar como sinônimo de autoridade.

A análise comparativa dos textos sinóticos deixa evidente que os demais evangelhos não apresentam uma palavra de bem-aventurança nem tampouco de promissão a Pedro por causa de sua confissão. Tanto Mc 8.27-30 como Lc 9.18-21 (textos paralelos ao de Mt 16.13-19) apresentam a ordem de manter silêncio quanto à identidade de Jesus logo após a confissão de fé de Pedro. A promissão de Jesus a Pedro como pedra de edificação da Igreja não aparece, deixando uma grande pergunta com relação à historicidade deste texto.

Além disso, tem intrigado bastante certos/as exegetas o uso da expressão Igreja no v. 18. Naturalmente o Evangelho de Mateus é escrito em um período em que já existem comunidades cristãs e a Igreja está em formação. No entanto, é questionável que Jesus mesmo tenha empregado o termo. Exceto em Mt 18.17, que se refere à comunidade, a palavra Igreja não é proferida por Jesus em qualquer outra ocasião. Jesus pregava o reino de Deus e não uma sinagoga especial. O reconhecimento da Igreja antes da morte e ressurreição de Jesus Cristo parece no mínimo anacrônico, se não uma redução do sentido escatológico da paixão, afirmado com veemência no v. 21.

É evidente que Mateus coloca a promissão de Jesus a Pedro na forma de um relato histórico para assegurar a liderança, na comunidade, à tradição petrina. As primeiras comunidades não tinham uniformidade doutrinária: cada qual se sentia movida pelo Espírito e agia em conformidade com os ensinamentos de Jesus, que ainda lhes estavam na memória. Assim, havia comunidades que seguiam a tradição de Paulo, de Pedro, de Marta, de Maria Madalena, etc. As cartas de Paulo mostram que essas tradições nem sempre coexistiam pacificamente, sobretudo quando havia diferenças de opiniões e de interpretações.

Também entre nós o texto de Mt 16.13-19 é polémico. Por um lado, este texto tem sido central para a tradicional eclesiologia católica, muito em especial para a fundamentação bíblico-teológica do papado. No catolicismo tem sido utilizada a palavra de Jesus a Pedro, nos vv. 17 a 19, como justificação para uma estrutura hierárquica e autoritária da igreja, qual pirâmide com seu ápice decisivo no papado.(3) É um tipo de interpretação que dificulta o diálogo ecumênico. O protestantismo, por sua vez, a começar por Lutero, também tem violentado o texto, eclipsando o apostolado, minimizando a figura de Pedro, desprezando o aspecto institucional da igreja e reduzindo o escopo da perícope à fé em Jesus Cristo.(4) Também este tipo de interpretação da promissão de Jesus a Pedro é problemático.

O ponto de equilíbrio para a compreensão do texto está na sequência (não prevista para a pregação). Seria normal incluir também o v. 20, para abarcar toda a perícope, mas a ênfase no segredo messiânico certamente tiraria a atenção da confissão de fé de Pedro e da posterior promissão. Os vv. 21-23 apresentam outra perspectiva acerca de Pedro. O personagem da confissão e da promissão, pedra de edificação, é identificado como pedra de tropeço (v. 23) porque desvirtua a fé e a promessa, querendo evitar o sofrimento de Jesus. A pedra de tropeço só pode se tornar pedra de edificação mediante a graça de Deus. Por isso a promessa não pode ser entendida como posse de Pedro, como propriedade de um indivíduo histórico, mas está relacionada à sua missão e ao seu apostolado, ou seja, anunciar o reino de Deus e sua vivência.

2. As outras leituras previstas

Atos 9.8-13 e l Co 10.1-5 são as leituras previstas para o Dia da Confissão de Pedro. A escolha dos versículos dos dois textos não se enquadra dentro da estrutura de perícope, o que pode dificultar a compreensão dos textos. O texto de Atos relata a conversão de Saulo no seu caminho para Damasco. Como consequência de sua experiência, Saulo temporariamente perde a visão. Em contraste à perda de visão de Saulo está a visão de Ananias, um discípulo a quem Jesus ordena, em forma de visão, que procure Saulo, que se encontra orando na casa de Judas. Ananias, em contrapartida, responde ao Senhor relembrando que Saulo perseguia a muitos, tanto mulheres como homens, a quem levava presos (cf. At 9.2): Senhor, de muitos tenho ouvido a respeito desse homem, quantos males tem feito aos teus santos em Jerusalém. (At 19.13.)

No entanto, os desígnios de Deus não são os mesmos do que os humanos. Jesus escolhe seguidores entre as pessoas aparentemente menos merecedoras, até mesmo perseguidores do cristianismo. Assim, Paulo se torna um instrumento escolhido para levar o meu nome perante os gentios e reis, bem como perante os filhos de Israel(At 9.15). Tanto Paulo como Pedro são exemplos da limitação humana: são seres finitos, passíveis de pecado. Pedro, mesmo após a sua confissão de fé, nega Jesus três vezes e ainda assim recebe perdão e assume sua tarefa apostólica. Paulo passa de perseguidor a proclamador da Boa Nova Também ele experimenta a aceitação de Jesus Cristo e assume sua tarefa. Jesus escolhe lideranças que nem sempre seguem a lógica humana, como reflete a observação de Ananias acerca de Paulo.

O texto de l Co 10.1-5 traz exemplos da história de Israel. Nesta passagem são relembrados eventos comuns à tradição de Israel, em especial aqueles associados a Moisés. Todos estiveram sob a mesma nuvem, passaram pelo mar, foram batizados, comeram de um só manjar espiritual e beberam da mesma fonte espiritual. O ponto de conexão com o texto previsto para a pregação (Mt 16.13-19) é a identificação de Cristo como a pedra espiritual que seguia o povo de Israel. No entanto, Deus não se agradou da maioria deles e, por isto, ficaram prostrados no deserto. Aqui a pedra é Cristo mesmo, em contraste à afirmação de Mateus de que Pedro é a pedra. Para a teologia paulina é difícil afirmar a centralidade de um personagem histórico, pois a ênfase deve recair sempre em Jesus Cristo mesmo, de quem vem a nossa salvação.

3. Pistas para a pregação

A pregação poderia apontar para a necessidade de confessar a fé ao invés de enfatizar a promissão apostólica. Neste caso, outras confissões de fé, como a de Marta (em Jo 11.27) ou a elaboração dos credos na Igreja primitiva, poderiam servir como ilustração. Uma prédica que enveredasse por este caminho poderia ser elaborada sob a seguinte pergunta: por que confessar a fé em Jesus Cristo? Por um lado, a confissão de fé representa uma postura de autenticidade e coerência com a mensagem de Cristo por parte de quem crê. Por outro lado, fazemos nossa confissão de fé publicamente (cm geral, usando as palavras do Credo Apostólico). Dizer eu creio significa dizer que a fé não é obra humana, mas é presente de Deus. Professar a fé e, em última análise, não só o reconhecimento de tudo o que Deus opera em nós, mas essencialmente um reconhecimento de nossa dependência de Deus, como suas criaturas.

Outra possibilidade de pregação é a ênfase em Pedro como pedra de edificação da Igreja. Ao invés de priorizar a fundamentação bíblico-teológica do papado, remontando assim à tradicional eclesiologia católica, a prédica poderia abordar o modelo de liderança que é proposto a partir de Jesus Cristo mesmo. Neste caso, seria recomendável a inclusão dos w. 20-23, que apresentam uma contrapartida ao modelo hierárquico de liderança que causa tantas disputas entre os discípulos. Os discípulos são notórios por sua preocupação sobre quem deveria sentar à direita e à esquerda de Jesus quando ele se tornasse rei. Assim, mais uma vez Jesus mostra a necessidade do serviço, do testemunho consequente que pode levar à perseguição e morte. Naturalmente, o sofri-mento não é a vontade última de Jesus Cristo, mas ele é visto como decorrência de uma opção, um estilo de vida e uma coerência com a pregação do reino de Deus. Liderança autêntica é aquela que serve, senão ela se torna pedra de tropeço ao invés de edificação.

Notas

(1) Mercedes LOPES, A confissão de Marta : leitura a partir de uma ótica de gênero, São Paulo : Paulinas, 1996, p. 5.
(2) ID., ibid., p. 75.
(3) Walter ALTMANN, Mateus 16,13-20(-23), in: Baldur van KAICK (Org.), Proclamar Libertação I-II/, São Leopoldo : Sinodal, 1979, p. 239.
(4) ID., ibid., p. 239-240.

Proclamar Libertação 23
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia