Prédica: I Coríntios 12.12-21, 26-27
Leituras: Isaías 61.1-6 e Lucas 4.14-21 (22)
Autor: Valdemar Lückemeyer
Data Litúrgica: 3º Domingo após Epifania
Data da Pregação: 25/01/1998
Proclamar Libertação – Volume: XXIII
1. Uma fábula
O historiador e orador romano Menenius Agripa contou a seguinte fábula ao seu povo, a fim de mostrar a importância do Senado romano, por um lado, e a necessidade de união do povo, por outro lado:
“No tempo em que as diferentes partes do corpo humano não estavam em unidade, conforme se encontram agora, mas antes, quando cada membro tinha seu ofício separado e um idioma distinto, todos ficaram descontentes, porque tudo quanto se fazia para cuidar deles, em trabalho e indústria, era gasto pelos intestinos; mas os próprios intestinos, à vontade no meio do corpo, nada faziam senão desfrutar do que se provia para ele. Portanto, conspiravam entre si e concordaram que as mãos não deveriam levar o alimento à boca, e que a boca não deveria receber o que lhe era oferecido, e que os dentes não mastigassem qualquer coisa que entrasse na boca. Agindo nessa base da vingança, e esperando reduzir os intestinos pela fome, todos os membros, e o próprio corpo inteiro, finalmente foram levados a um estado de completa fraqueza. Foi então que ficou claro que os intestinos não produziam um pequeno serviço; que ele não contribuía menos para a nutrição geral do que seus apoiadores, mas, antes, distribuía para cada porção aquilo que eles derivavam em forma de vida e vigor; pois, preparando apropriadamente os ali¬mentos, era produzido um sangue puro, que era levado pelas artérias a cada membro em particular.” (Cit. ap. R. N. Champlin, O Novo Testamento Interpretado Versículo por Versículo, p. 195.)
2. Um alerta
É necessário uma boa dose de cuidado para não simplificar a interpretação da figura do corpo humano e a relação dos vários membros. De forma reacionária pode ser dito e interpretado que cada membro tem a sua função específica e que precisa cumprir naturalmente com essa sua função para o bem do corpo todo, para o bem da sociedade, ou até para o bem da comunidade. De forma revolucionária, por outro lado, pode ser enfatizado que cada membro tem o seu lugar e sua função no corpo na medida em que ele ocupa, ativamente, o seu lugar, na medida em que vive e está em função do todo. l Co 12.12ss. revela mais do que apenas um apelo para o ativismo, para a unidade orgânica da Igreja ou para a unidade na pluralidade.
O apóstolo Paulo aborda, nos caps. 12 a 14, questões práticas e existenciais na comunidade de Corinto: as tensões entre os vários grupos na comunidade por causa da compreensão dos dons do espírito. O grupo de membros que se dizia detentor de dons espirituais se sobrepunha aos demais, se vangloriava desses dons especiais e menosprezava os outros. A rivalidade e a concorrência entre as diversas facções são uma consequência inevitável e, ao mesmo tempo, destruidora.
3. Um comentário exegético
O v. 12 inicia com uma ruptura. Se antes, nos vv. 4 a 11, é relatada a atuação do Espírito (o pneuma) e, querendo interpretar a ação do Espírito na comunidade usando para tal a figura do corpo humano, a comparação deveria concluir: Assim também os diversos membros da comunidade formam um só corpo. O apóstolo, no entanto, abandona a comparação lógica e, ao invés disso, aponta para Cristo. A presença e a atuação de Cristo, através do seu Espírito, tornam a comunidade um corpo específico e único, o corpo de Cristo. A comunidade, pois, não é um grupo de pessoas, uma soma de indivíduos que formam uma unidade, mas é o próprio corpo de Cristo que tem sua origem na atuação do Espírito. Esse Espírito dá vida aos mais diversos membros, na medida em que eles se unem e atuam no corpo. Sozinhos ou isolados eles não são nada.
Vv. 13ss.: No batismo Cristo une a todos num só corpo. As diferenças sociais, culturais, étnicas, políticas, que antes eram motivo para distanciamento e separação, agora desaparecem para dar lugar à nova realidade, que é a participação no corpo de Cristo. Esse corpo de Cristo não é apenas uma ideia, mas é uma realidade, é algo concreto.
O corpo é criação de Deus. Ele coloca cada membro num determinado lugar e lhe dá funções específicas. Não é possível alterar uma ordem criada pelo próprio Deus!
Na comunidade, criação de Deus, um membro não pode se isolar ou querer viver para si, com outras funções, assim como isso não é possível no corpo humano, também criação de Deus! Na medida em que o apóstolo argumenta com a impossibilidade de um membro querer ter essas funções ou de trocar de funções, fica evidente que na comunidade cada membro tem o seu lugar e que há lugar para todos os membros na comunidade. Se um membro quer ocupar o lugar do outro, ele está agindo contra a vontade de Deus! Dessa forma, não há lugar na comunidade para arrogância e tampouco para resignação (ou complexo de inferioridade).
Vv. 21 e 26: Assim como no corpo os membros vivem em função do todo e todos são interdependentes, um dependente do outro, assim também na comunidade, nenhum membro pode se isolar e querer ser independente, auto-suficiente. Isso contradiz radicalmente a figura do corpo. Não pode haver membros isolados e auto-suficientes.
É interessante observar que o apóstolo Paulo não exige atenção e cuidado dos membros mais fortes para com os mais fracos, mas ele aponta claramente para um cuidado mútuo. Um cuida do outro. Um se interessa pelo outro. Um membro tem mais dons? Isso é bom para o corpo todo, e todos se alegram com esse fato, pois vem em benefício do corpo todo. Um membro é fraco? Isso não é bom para o corpo todo, que sofrerá e que, por isso, se empenhará em prol desse membro.
A ideia do corpo não permite, pois, divisões na comunidade (veja 11.18); elas são contrárias à vontade de Deus. A sua vontade é reconhecida e vista no cuidado recíproco dos membros, no cuidado do corpo. O grupo de membros que se dizia detentor de dons espirituais apenas se empenhava por melhores dons, mais nobres, mais valiosos. Isso provocava a concorrência e excluía a solidariedade, o cuidado pelo outro.
V. 27: A figura do corpo, usada pelo apóstolo para falar da comunidade, só se torna completa no momento em que ele aponta para o corpo de Cristo: ele une os mais diversos e diferentes membros e os torna o corpo de Cristo, a comunidade.
Sob corpo o homem grego compreende a matéria formada. Paulo usa a expressão no sentido de organismo de membros em atividade. (…) Baseado nesse conceito, Paulo não compara a Igreja simplesmente com um corpo no sentido corrente da época (l Co. 12,12- 26), mas declara: Vós sois corpo de Cristo: e individualmente, membros deste corpo (l Co 11.27). Os discípulos são membros de Cristo (l Co 12.4-6), sua boca e mãos auxiliadoras, e dessa forma, em conjunto, seu corpo. Através deles Cristo atua na história (l Co 12.4-6). Os discípulos estão unidos entre si porque Cristo é o único que atua através deles, e não através de uma associação de serviço que organizam. (Leonhard Goppelt, Teologia do Novo Testamento, vol. 2, p. 412.)
4. Uma pista para a pregação
a) O Terceiro Domingo após Epifania é um tempo em que meditamos sobre textos bíblicos que apontam para a revelação de Deus em Jesus Cristo: Deus se mostra em Jesus Cristo!
b) As duas leituras bíblicas indicadas para o domingo (Is 61. l -6 e Lc 4.14-21 [22]) destacam de forma clara a atuação de Deus através de Jesus Cristo: O Espírito do Senhor está sobre mim… enviou-me… Hoje se cumpriu a Escritura que acabais de ouvir (Lc 4.18 e 21); Jesus é o enviado de Deus; o Espírito de Deus o incumbiu da tarefa de evangelizar os pobres, proclamar libertação aos cativos, pôr em liberdade os oprimidos e anunciar o ano aceitável do Senhor (Lc 4.18).
c) Esse mesmo Espírito cria comunidade através do batismo e de membros isolados e diferentes, forma um corpo vivo e dinâmico. O Espírito criador, que vivifica ossos secos (Ez 37.1ss.), une os diferentes e os capacita para uma vida em conjunto. Creio que por minha própria razão ou força não posso crer em Jesus Cristo, meu Senhor, nem vir a ele. Mas o Espírito Santo me chamou pelo evangelho, iluminou com seus dons, santificou e conservou na verdadeira fé. (M. Lutero, Catecismo Menor, explicação do 3° Artigo.)
d) O corpo, um organismo, sempre é mais do que apenas a soma de diversas partes, a união de vários membros. Isolados, os membros não têm utilidade por si só. Juntos, no entanto, eles formam uma nova unidade, formam um corpo com vida, um corpo dinâmico. A comunidade sempre é mais do que apenas o conjunto e a união de várias pessoas = membros. Ela é a união de pessoas que saem da realidade na qual cada uma vive para si, e entram na nova realidade, na qual a participação e a solidariedade são expressões naturais da nova vida.
e) O corpo e os vários membros também são uma figura da nossa comunidade local. A ela pertencem as mais diversas e diferentes pessoas: de idades diferentes, de situação económica diferente, de profissões diferentes, de experiência e vivência de fé diferentes. Juntas formam, como diz o apóstolo Paulo, a comunidade de fé, na qual há tensões, dificuldades, concorrência, desprezo, marginalização e exclusão.
Onde estão os motivos e quais são as razões para que em nossa(s) comunidade(s) ocorram marginalização, desprezo e exclusão? Os dons de falar em línguas e profecias não são motivos de concorrência, hoje, em nosso meio? Há outros motivos? Há membros que se julgam mais importantes e melhores do que os outros? Há membros que se julgam auto-suficientes?
f) A ideia do corpo, com sua unidade, torna a comunidade cristã um estranho no ninho em nossa sociedade, na qual a competição e a exclusão são as notas marcantes. Qualidade total, eficiência, produtividade não cabem no conceito de vida definida a partir do corpo humano. O Espírito de Deus cria unidade e elimina o que separa. Cristo cria a unidade e elimina o que separa; pelo batismo nos tornamos membros do seu corpo.
5. Bibliografia
CHAMPLIN, Russel Norman. O Novo Testamento interpretado versículo por versículo. São Paulo, 1995. vol. 4.
EICHHOLZ, Georg. Hören und fragen : Meditationen in neuer Folge. Neukirchen : Neukirchner. vol 4.
GOPPELT, Leonhard. Teologia do Novo Testamento. São Leopoldo : Sinodal; Petrópolis : Vozes, 1982. vol. 2.
RASCHZOK, Elfriede und Klaus. Meditação sobre l Co 12.12-14, 26-27. In: BORNHÄUSER, Hans (Ed.). Neue Calwer Predigthilfen : 6° ano, vol. B. Stuttgart : Calwer, 1984.
Proclamar Libertação 23
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia