Prédica: I Coríntios 14.12b-20
Leituras: Isaías 6.1-8 e Lucas 5.1-11
Autor: Eduardo Gross
Data Litúrgica: 5º Domingo após Epifania
Data da Pregação:
Proclamar Libertação – Volume: XXIII
1. Contexto
A perícope em questão faz parte de um contexto maior, em que Paulo responde a questões colocadas pela comunidade. Nos cap. 12 a 14, ele trata da reunião cúltica da comunidade: os dons que ela pressupõe, o critério que deve orientar esses dons e a organização, que é consequência disso. Em grandes traços, pode-se dizer que a diversidade de dons do Espírito e a dependência mútua entre eles são expostas no cap. 12; o amor é estabelecido como critério que orienta a efetivação prática desses dons no cap. 13 e a hierarquização das manifestações espirituais conflitantes na prática cultual da comunidade de Corinto é apresentada no cap. 14. Assim, o cap. 14 revela de maneira mais concreta os problemas internos da comunidade, os quais motivaram essa questão, e a resposta de Paulo a ela.
2. A comunidade de Corinto
A leitura das duas cartas de Paulo aos coríntios, preservadas no Novo Testamen¬to, revela uma comunidade com características profundamente humanas. Destruindo qualquer tentação de se idealizar a vida comunitária do cristianismo primitivo, essas epístolas mostram como os dilemas morais, os conflitos teológicos, as disputas de poder e mesmo ciúmes mesquinhos faziam parte daquela comunidade, assim como continuam presentes em comunidades cristãs da atualidade.
Várias tentativas já foram feitas no sentido de se elaborar uma tipologia dos grupos em disputa na comunidade de Corinto, tanto do seu ponto de vista teológico quanto de sua configuração sociológica. Para aprofundar essa questão é conveniente consultar comentários e literatura especializada. Vamos apresentar, aqui, apenas uma discussão, referente, de modo específico, ao conflito presente na perícope em análise e no cap. 14, na qual ela está inserida: o papel da glossolalia na comunidade cristã de Corinto. Para essa discussão, privilegiamos a perspectiva adotada por Wayne A. Meeks, Os Primeiros Cristãos Urbanos (cf. p. 183-6, 203-7 e 218-23).
A abordagem que Meeks apresenta está no contexto da busca pelas formas de liderança presentes na comunidade de Corinto e manifestadas nas epístolas de Paulo. Para Meeks, transparecem três modelos de liderança: a que se baseia em alguma forma de vinculação com determinados apóstolos (cf., p. ex., os partidos citados por Paulo em l Co l. 12); a que é consequência do poder econômico (cf, p. ex., a questão da ceia do Senhor, l Co 11.21-2); e a que se fundamenta na manifestação de dons espirituais (cf. toda a temática dos capítulos 12 e 14). A discussão de Paulo sobre o falar em línguas, para Meeks, é um reflexo da existência de atritos entre essas três formas de liderança presentes na comunidade.
O modo como Meeks apresenta essa questão é interessante pela sua cautela. Ele não afirma simplesmente a existência de três grupos bem delimitados, mas aponta para a possibilidade de manifestações de mais de uma forma de liderança numa pessoa concreta. Assim, alguém que se vincula a determinado apóstolo pode também falar em línguas, ou alguém que apresenta uma situação econômica favorecida pode também fundamentar sua autoridade a partir de algum outro modelo. Em todo o caso, a partir de estudos antropológicos do fenômeno da glossolalia, Meeks tende a privilegiar a visão de que o falar em línguas geralmente se manifesta em grupos marginalizados do poder. A reivindicação de um contato direto entre a pessoa e Deus, assim como a glossolalia enquanto manifestação espiritual que comprova esse contato, é um modo de superar mediações hierárquicas ou entraves econômicos no acesso a Deus. Evidentemente, não se trata de um processo consciente, mas de uma forma de liderança carismática. Para Meeks, a superação de inibições produzidas socialmente é uma das consequências das manifestações diretas da presença do Espírito na pessoa. Com isso, é inevitável que surjam atritos com outras formas de liderança.
Isso pode ser combinado com a interpretação que Conzelmann e Wendland apresentam da questão debatida em l Co 12-14. Em traços gerais, pode-se dizer que Paulo está reagindo a um conflito de lideranças estabelecendo, primeiro, a diversidade de dons espirituais e o seu caráter mutuamente complementar. Por isso que uma liderança fundamentada em critérios históricos, como o apostolado, é considerada dom do Espírito, o que possibilita sua justaposição com a glossolalia (l Co 12). Em segundo lugar, Paulo coloca o amor como o maior dos dons do Espírito, de modo que todos os demais dons devem se revelar como instrumentos do amor (mesmo a profecia e a glossolalia -cf. l Co 13.1-2). Por fim, Paulo apresenta a edificação comunitária como orientação prática para solucionar o conflito entre a pregação profética e a prática da glossolalia, embora ele privilegie a compreensibilidade da profecia como instrumento dessa edificação.
3. Texto
A delimitação do texto da perícope para a pregação não pode isolá-lo do contex¬to. Ele deve ser entendido dentro de toda a discussão' que iniciou no cap. 12. Principalmente o cap. 14 deve ser levado em conta na interpretação dos w. 12-20, a não ser o controvertido texto dos versículos 33ss. Talvez seja para ressaltar essa unidade da discussão que o texto proposto inicie com o final do parágrafo anterior e termine com o início do parágrafo seguinte. É evidente que há uma pequena mudança do v. 12 para o v. 13, assim como do v. 19 para o v. 20. Não se trata, no entanto, de um tema distinto, de modo que não faz mal manter o texto sugerido para a pregação.
O v. 12 serve para inserir o centro da perícope na temática geral do cap. 14: o objetivo das manifestações dos dons espirituais é a edificação da comunidade.
O v. 13 introduz o tema específico da perícope, que é o acento na importância da compreensibilidade das manifestações do Espírito. Por isso há necessidade de se interpretar o sentido dessas manifestações, pois elas não são só objeto de contemplação.
Os w. 14-15 apresentam exemplos da necessidade de conjugação entre as manifestações extáticas do Espírito e a compreensão consciente delas. Os exemplos citados, a oração e o canto, mostram que o êxtase pode se dar em vários momentos do culto.
Os w. 16-17 especificam o motivo da necessidade de compreensibilidade racional. O que a introdução do tema tratava como edificação da comunidade, esse texto concretiza na figura da pessoa que não é iniciada na prática do êxtase. Não há edificação da comunidade sem edificação pessoal de cada um de seus membros, ou sem a compreensibilidade da mensagem cristã para a pessoa não-cristã a ser evangelizada (conforme os autores consultados, idiotes pode ser interpretado tanto como a pessoa não-iniciada na glossolalia, como o catecúmeno ainda não plenamente introduzido na comunidade, ou como o visitante não-cristão presente ao culto). Como diz Weber, a edificação não é um processo individualista, interiorizado. Ela é um processo comunitário.
O v. 18 é uma concessão de Paulo à importância que o falar em línguas recebe na comunidade. Ele afirma conhecer essa experiência na prática. E evidente que, no contexto dos atritos em relação às formas de liderança presentes na comunidade, essa afirmação também serve para fortalecer a autoridade do próprio Paulo – autoridade essa que será questionada explicitamente por parte de determinados grupos mais tarde, como mostra 2 Co. Todos os autores consultados, porém, são unânimes em afirmar que Paulo em nenhum momento coloca em dúvida o fato de a glossolalia poder servir como manifestação do Espírito. Ela não é, para ele, o critério e nem o meio mais próprio para tal manifestação, mas o Espírito pode usar qualquer recurso humano, também o êxtase lingüístico, para se revelar.
O v. 19 repete na primeira pessoa o que já havia sido exposto nos vv. 16-17, resumindo a mensagem central da perícope.
O v. 20 serve novamente de ligação com o contexto. Ele introduz o parágrafo seguinte, que aprofundará dois temas já tocados neste auxílio: a necessidade de compreensão consciente da mensagem e o caráter evangelizador da pregação cristã. Ele serve também de ilustração para o que foi dito. Quem quer uma auto-edificação individualista ainda tem um juízo infantil (egocêntrico, narcisista), não compreendeu bem o caráter comunitário da vida cristã. É com relação ao mal que devemos ser como crianças, mas com relação à vida comunitária devemos dar a devida importância para a reflexão consciente de suas implicações.
4. Reflexão
4. l. Êxtase religioso
O êxtase é um elemento importante de toda manifestação religiosa. Trata-se da experiência da pessoa sair de si mesma, encontrando-se com o que a transcende. Embora toda forma religiosa apresente elementos extáticos, esses são privilegiados em determinadas manifestações religiosas e relegados a segundo plano em outras. O teólogo Paul Tillich defendeu uma tipologia religiosa que apresentava o misticismo como manifestação extrema de uma religiosidade extática e o personalismo como manifestação extrema de uma religiosidade ética. Para ele, toda religião concreta se manifesta no espectro delimitado por esses pólos ideais. O protestantismo, no entanto, era visto por Tillich como uma forma religiosa que desprivilegia exageradamente o aspecto místico ou extático, dando ênfase demasiada ao aspecto racional e ético (cf. Teologia Sistemática, vol. III, p. 565-70). Algo semelhante poderia ser dito sobre algumas formas de recepção da Teologia da Libertação.
O texto em questão serve, em princípio, de justificação para o privilégio do elemento consciente e ético em detrimento do místico-extático. Não se pode fugir dessa evidência. No entanto, é importante observar que Paulo não reprime o êxtase. Ele lhe dá uma função comunitária. A espiritualidade não precisa ser negada. O êxtase não é o centro da vida cristã, mas pode fazer parte dela. Em Cristo foram redimidas também as práticas religiosas humanas. Caso não sejam vistas como meio ou condição de salvação essas práticas místicas não precisam ser banidas. Também o luteranismo não baniu as cerimônias religiosas, mas considerou-as adiáfora (indiferentes, não imprescindíveis, mas permitidas – caso não conflitassem com a centralidade de Cristo).
4.2. Razão e formas de sua superação
De maneira curiosa, Tillich também tratou longamente da relação entre razão e êxtase (cf. Teologia Sistemática, vol. I, p. 52-7, 73-5, 99-102). Para ele, a razão é uma capacidade importante, mas parcial, que o ser humano tem para compreender a realidade. Só através do êxtase é que se pode superar essa limitação compreensiva. Evidentemente, tal êxtase não pode ser entendido como uma obra humana – ele é manifestação de uma revelação.
A perícope em análise também apresenta a questão da relação entre razão e êxtase de modo semelhante. Todos os comentaristas consultados coincidem na advertência contra tentativas de se compreender a defesa que Paulo faz da racionalidade da pregação como se ele fosse um racionalista. Paulo não era filósofo. Ele valorizava a razão como forma de compreender as manifestações simbólicas do Espírito. Na linguagem de Tillich, pode-se dizer que a razão defendida por Paulo não é a razão autônoma, fim em si, mas aquela razão que busca transcender a si mesma e por isso procura pela revelação. Em todo caso, é claro que há uma valorização da razão por Paulo. O irracionalismo representado por práticas extáticas como um fim em si é tão prejudicial quanto a arrogância de uma razão que se pensa dona da realidade.
5. Pregação
5.1. Edificação da comunidade
O contexto imediato da perícope, assim como o v. 12 e os vv. 16-17, aponta para a edificação da comunidade como o objetivo a ser perseguido na organização dos dons espirituais. Na pregação pode-se apresentar esse mesmo objetivo como o alvo da vida comunitária na atualidade. Importante é notar que edificação da comunidade não é simplesmente igual ao crescimento de um sentimento de santidade individual. O texto aponta justamente para a outra pessoa – cf. o amor, no capítulo 13 – como critério desse crescimento.
Outro elemento importante é que no texto a edificação não é sinônimo nem de um crescimento patrimonial nem de um aumento numérico dos membros da comunidade. Nesse sentido, ele aponta para a necessidade de se relativizar tanto os bens materiais quanto a atividade proselitista enquanto objetivo da edificação comunitária. O patrimônio da Igreja nunca pode ser mais do que um instrumento, já a evangelização é uma consequência natural de um ambiente acolhedor e que respeita as diferenças individuais.
5.2. Êxtase, glossolalia, inculturação
Há alguns círculos protestantes que, mesmo não praticando a glossolalia, consideram-na uma manifestação extática mais próxima do cristianismo do que o transe presente, por exemplo, nos cultos afro-brasileiros. É necessário observar que, do ponto de vista do estudo das religiões, trata-se de fenômenos claramente paralelos. Nesse sentido, o texto em questão pode servir como ponto de partida para um debate da função das manifestações extáticas na religiosidade da comunidade. O próprio texto fala do êxtase na oração e no canto.
A relativização que Paulo faz da glossolalia enquanto manifestação do Espírito deve ser entendida como relativização de todas as formas de êxtase à medida que se entendam de modo exclusivista ou privilegiado. Nenhum grupo humano pode se arrogar a propriedade da forma correta de adoração. Ao mesmo tempo, a não-proibição dessa prática religiosa culturalmente localizada (provavelmente característica do helenismo) aponta para a necessidade constante de inculturação das práticas litúrgicas. Para comunidades religiosas oriundas do protestantismo histórico, o texto em questão representa um desafio a aprender criticamente das formas cultuais do pentecostalismo, das religiões afro-brasileiras e mesmo dos novos movimentos místicos. As manifestações extáticas desses cultos podem representar uma fuga do mundo, uma ilusão individualista ou uma busca por auto-salvação, e nisso elas devem ser criticadas. Mas elas também questionam a racionalidade protestante, a limitação da religiosidade a um determinado ambiente e uma moral limitada a prescrições individualistas.
5.3. Diálogo e compreensão mútua na comunidade
O texto da perícope visa oferecer sugestões para a superação de desavenças entre grupos em Corinto que se manifestavam explicitamente por ocasião do culto. As sugestões apresentadas por Paulo não representam uma receita a ser seguida no que se refere à sua forma. O importante é o objetivo colocado por ele – a valorização de cada participante da comunidade.
Ainda hoje ocorrem desentendimentos ocasionados pela busca por formas de celebração renovadora. O critério do amor ao próximo também deve presidir as discussões comunitárias a respeito do tema. É notável que Paulo apresente como critério não o conhecimento superior dos iniciados nos mistérios do cristianismo, mas a compreensibilidade das formas cultuais por parte das pessoas simples, não iniciadas. Assim como ele falava a quem se considerava conhecedor de mistérios (cf. l Co 2-3) e livre para o consumo de carne sacrificada (cf. l Co 8), também no que se refere ao culto, instrui para que se evite de fazer tropeçar os mais fracos.
5.4. Participação comunitária na liturgia do culto
Independentemente das formas concretas que o culto assume, o contexto da questão examinada pela perícope convida à realização de uma assembléia participativa. Não é um grupo especifico de iniciados e nem uma autoridade hierárquica que devem servir de critério para a verdadeira forma de adoração. Por outro lado, também é necessário contestar a passividade completa manifestada por algumas pessoas no culto. O texto pode motivar o desafio à busca por uma forma cultual participativa e democrática, fundamentada no amor.
5.5. Relação com os demais textos previstos
O texto de Is 6.1-8 apresenta uma outra forma de êxtase religioso por ocasião da adoração. O caráter extático aparece aqui não na fala, mas na visão simbólica. Essa visão simbólica, por sua vez, também implica o anúncio profético compreensível. Por outro lado, o relato do chamamento dos discípulos pescadores, em Lc 5.1-11, aponta para o elemento evangelizador da mensagem de Jesus (que segue uma experiência extática, representada aqui pelo milagre e pelo espanto dos discípulos diante dele). É esse caráter evangelizador, anunciador de uma boa notícia, que implica a necessidade de tornar compreensível o culto cristão.
6. Bibliografia
CONZELMANN, Hans. Der Erste Brief an die Korinther. 1. Aufl. Göttingen : Vandenhoeck & Ruprecht, 1969.
MEEKS, Wayne A. Os primeiros cristãos urbanos. São Paulo : Paulinas, 1992.
TILLICH, Paul. Teologia sistemática. São Paulo : Paulinas, São Leopoldo : Sinodal, s. d.
WEBER, Bertoldo. 2e Domingo após Trindade- l Co 14. 1-3, 20-25. In: KIRST, Nelson (Coord.). Proclamar Libertação. São Leopoldo : Sinodal, 1981. vol. VII, p. 158-64.
WENDLAND, Heinz Dietrich.Die Briefe andie Korinther. Göttingen : Vandenhoeck & Ruprecht, 1968.
Proclamar Libertação 23
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia