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Prédica: Jeremias 17.5-8
Leituras: I Coríntios 15.12,16-20 e Lucas 6.17-26
Autor: Cledes Markus
Data Litúrgica: 6º Domingo após Epifania
Data da Pregação: 22/02/1998
Proclamar Libertação – Volume: XXIII
Tema:

1. Introdução

Os textos indicados para este 6° Domingo após Epifania (Sexuagesimae) são lidos a partir e para dentro de uma realidade marcada por sofrimento e dor, opressão e violência, que afetam e agridem a vida, o direito e a justiça. Nessa situação se contrapõem os agressores da vida e os que sofrem as agressões. Os textos nos mostram a opção e a ação de Deus nesse contexto.

Vejamos:

Em Jr 17.5-8 vemos essa opção e esse agir quando são considerados bem-aventurados aqueles que confiam em Javé, e amaldiçoados os que confiam na carne mortal e apartaram o seu coração de Javé.

Em Lc 6.17-26 Jesus chama de felizes aquelas pessoas despossuídas de poder e que sofrem várias formas de violência e opressão, como fome e pobreza (v. 20 e 21); também chama de felizes as pessoas que buscam reagir praticando a resistência solidária (v. 22) . Entretanto, estão excluídos os ricos e os abastados, e ai deles (23ss.).

Em l Co 15.12,16-20 Paulo fala da ressurreição como um evento certo e feliz. A ressurreição de Jesus Cristo aponta para a vitória da vida e a derrota das estruturas injustas e opressoras, que causam morte. É a possibilidade de vida nova e feliz, recriada por Deus.

Esses textos, portanto, a partir da opção e ação de Deus neste mundo, nos animam em nossa fé em Deus e na prática de sua justiça.

2. Contexto

O texto da pregação nos remete à atuação de Jeremias no reinado de Jeoaquim (609-590). Esse governo havia sido precedido por Josias, rei que fora introduzido pelo povo da terra após o fracasso dos assírios, quando Judá se reergueu com vigor nacionalista. Nesse reinado existiram certa liberdade e justiça. O ponto culminante de suas realizações foi a reforma interna, de 622 a.C., que tinha, entre outros acentos, a defesa dos mais fracos (Jr 22.15-16) e a centralização do culto sacrificai em Jerusalém (2 Rs 22.23).

Com a derrota dos assírios, Egito e Babilônia disputaram o domínio do território de Judá. Os últimos se impuseram, mas os reis e toda a elite de Judá buscou apoio no Egito como forma de livrar-se da Babilônia. Jeremias era contra essa posição.

Jeoaquim foi imposto ao povo pelos egípcios e sob todos os aspectos ele foi o oposto de seu antecessor. O seu governo foi extremamente repressivo. Caracterizou-se pela violência, extorsão, derramamento de sangue, serviço sem contrapartida financeira, esbanjamento de dinheiro em construções luxuosas (Jr 22.13-17).

Jeremias se opôs de forma veemente ao rei, denunciando as injustiças com palavras de julgamento e ameaças muito radicais, conforme 22.18-19. Em sua fala e ação Jeremias tomou a defesa dos mais fracos, exortando para a prática da justiça. Nesse seu discurso, lembrou Josias como um rei justo, que optou pelos empobrecidos e necessitados, e declarou que essa opção significava conhecer a Javé (Jr 22.16). Nesse argumento ele se assemelhou a outros profetas, que declararam que confiar e conhecer a Javé tem a ver com a prática da justiça e do direito.

Aspecto relevante na atuação de Jeremias durante o reinado de Jeoaquim foi a crítica ao templo. A reforma josiânica centralizara os cultos sacrificais em Jerusalém. Nesse governo, a centralização foi enfatizada ainda mais e de uma forma unilateral, evidenciando o poderio do templo de Jerusalém. Ele tinha uma função espoliativa. Dali partia a exploração e a opressão (a dos egípcios perpassava o templo). O templo não passava de um covil de salteadores. Era, portanto, um empecilho para a prática da justiça de Javé.

Jeremias posicionou-se contra o templo, representando a mesma posição' do campesinato judaíta, que de longa data vinha criticando Sião. Ensejo para tanto foi o discurso do templo, nos capítulos 7 e 26, que anuncia a destruição de Jerusalém e do templo. Javé já mostrou uma vez na história que pode liquidar um lugar de culto venerado de longa data (Silo) e poderá fazê-lo novamente. Afinal, que valor tem um lugar de culto quando as pessoas que lá estão desprezam os mandamentos e a justiça de Javé?

Essa posição de Jeremias levou-o a sofrer duras perseguições e prisões (Jr 19.20), inclusive processo com pena de morte. O profeta só se livrou por intervenção de um grupo de camponeses, os anciãos da terra, que usaram como argumento a profecia de Miquéias, que já teria ameaçado Sião (Mq 3.12). Com esse precedente Jeremias teve que ser absolvido.

A crítica ao templo e a Jerusalém, portanto, tem a função de exortação, dirigida a um povo que punha sua confiança em seguranças ilusórias, baseadas na existência do templo com toda a sua estrutura de exploração. A crítica traz à memória o senhorio de Javé e a prática de sua justiça.
Nesse contexto surgem as palavras de julgamento de Jr 17.5-8, que proclamam bem-aventurados os que confiam em Javé, e malditos os que apartam o seu coração de Javé.

3. Texto

A introdução do texto de Jr 17.5-8 se apresenta como oráculo: Assim fala Javé. O que segue tem a forma de sentença de sabedoria com estilo poético, que é comum na literatura sapiencial do Antigo Testamento, onde aparece o estilo de oposições elementais e as comparações vegetais, como podemos observar nos Salmos 1.1-5; 52.6-8; 92.9-13 e em Provérbios 11.28-30.

O nosso texto lembra o Sl l, inclusive com palavras similares, opondo uma maldição a uma bênção. Entretanto, os acentos são diferentes. O autor do Sl l considera bem-aventurado aquele que põe o seu prazer no estudo da lei de Javé, enquanto que em Jeremias, bem-aventurados são os que põem sua confiança em Javé. Quase todos os comentaristas colocam o Sl l como sendo posterior ao escrito de Jeremias.

Em relação ao conteúdo do nosso texto, ele é apresentado em duas construções de frases idênticas, nas quais é contraposto a maldição de se confiar na carne mortal à bênção de se confiar em Javé.

Quem confia na carne mortal e aparta o seu coração de Javé será tão sem valor e sem perspectiva quanto um arbusto solitário no deserto. Ele nem perceberá quando vier o bem. O infortúnio será a sua herança. A palavra malditos, aqui usada, tem uma força elementar.

Por outro lado, quem confia em Javé será tão bem-aventurado como uma árvore plantada junto às águas, com uma frondosa copa e deliciosos frutos que nem mesmo em épocas de seca deixará de frutificar. Para esses, há perspectiva, abundância e fartura. A confiança em Deus é uma fonte de bênçãos que, também em épocas de necessidades, não se esgota. Essa figura da abundância lembra a escatologia agrária do Antigo Testamento, que apregoa fartura quando vier o Reino (Êx 3.8; Is 65.21s.).

Na primeira construção frasal a expressão fazer carne mortal o seu braço nos lembra Is 31.1-3 e 2 Co 32.8. Em ambos os textos essa expressão se refere à confiança depositada no poder político dominante e opressor, sendo que este poder é relativizado com o argumento de que são carne mortal.

Na segunda construção frasal, confiar em Javé está intimamente ligado com a prática da justiça e opção pelos aflitos, conforme Jr 22.16, assemelhando-se, assim, aos demais profetas do seu tempo.

4. Mensagem

Gostaria de ressaltar dois aspectos que me chamam a atenção e que poderão ser pistas para a prédica.

a) Está claro que, para Jeremias, assim como para outros profetas do AT, confiar e conhecer a Javé se dá na justiça entre as pessoas e na compaixão para com o necessitado. Através do apelo do oprimido e injustiçado irrompe no mundo uma exigência por justiça, que é a voz de Deus. Se ouvimos essa voz, estamos conhecendo a Deus mais profundamente do que podemos tematizar em nossos conceitos sobre um Deus transcendente, diz o padre Benjamín G. Buelta. Quem deixa de praticar o direito e a justiça é porque não ouviu a voz de Deus e seu coração se afastou dele. Este não conhece a interpelação do Deus que quer realmente um mundo justo e fraterno, com abundância de vida para todos.

Desta forma, quando Deus chega até nós, quando se manifesta neste mundo, Ele faz opção a favor do desvalido e oprimido, contra o opressor; pela justiça, contra a injustiça. Daí o tom forte que os textos dos profetas, incluindo o de Jeremias, usam para anunciar que Javé derrotará os injustos da terra, e que nós, ao espiritualizá-los demais, fizemos perder todo o seu aspecto provocador.

Esse pensamento dos profetas do AT chega à sua plena compreensão na pessoa de Jesus Cristo, que anuncia precisamente bem-aventurados aqueles que estão destituídos de poder e que sofrem alguma opressão ou injustiça, ou que são perseguidos por causa da justiça, conforme o texto de Lucas. Em Mateus ele ainda acrescenta bem-aventurados os que têm sede e fome de justiça, porque ficarão satisfeitos (Mt 5.6). Jesus não só anunciou essa nova realidade, mas inaugurou-a com suas ações e opções, com sua vida, morte e ressurreição. Em Jesus Cristo, Deus assumiu a história conosco. Por isso, a opressão já não é invencível; as estruturas injustas já não prevalecem; o que vence é a vida, o direito e a justiça.

Se Deus, pai de Jesus Cristo, intervém na história humana também como palavra de justiça, é na práxis de situações novas, na luta pela justiça, que nós podemos nos encontrar com ele de maneira original, pois ali Deus se manifestará de maneira nova, com rosto inédito.

Portanto, o resignar-se à injustiça porque ela sempre existirá no meio de nós é contrário à mensagem do AT e também do NT, da pregação de Jesus sobre o reino de justiça como possibilidade real que avança na história. Mas essa é, muitas vezes, a tentação de nossas vidas e da vida das comunidades em nossa igreja. Refugiar-se em si mesma e esquecer a caminhada pela justiça é, em verdade, afastar o seu coração de Deus.

b) As opções e ações de Deus demonstradas nas bem-aventuranças nos animam. Elas se revelam como fonte de esperança, força e novas perspectivas de vida. Não estamos sozinhos na caminhada pela vida, pelo direito e pela justiça. Deus está conosco. Ele está do nosso lado, nos animando e animando nossa irmã e nosso irmão. Ele está comunicando e anunciando que bem-aventurados serão os que nele colocam a sua confiança e praticam a sua justiça. Isso é motivo de alegria e esperança.

Vai ser tão bonito se ouvir a canção,
Cantada de novo, no olhar da gente
A certeza do irmão, reinado do povo.
Quando o dia da paz renascer,
Quando o sol da esperança brilhar,
Eu vou cantar.
Quando os muros que cercam os jardins,
Destruídos, então os jasmins
Vão perfumar.
Quando as armas da destruição,
Destruídas em cada nação,
Eu vou sonhar.
E o decreto que encerra a opressão,
Assinado só no coração,
Vai triunfar.
Quando a voz da verdade se ouvir
E a mentira não mais existir,
Será enfim tempo novo de eterna justiça,
Sem mais ódio, sem sangue ou cobiça,
Vai ser assim.
Vai ser tão bonito…!

5. Bibliografia

BUELTA, Benjamín González SJ. El Dios oprimido : hacia una espiritualidad de la inserción. Santo Domingo : Amigo del Hogar, 1987.
RAD, Gerhard von. Teologia do Antigo Testamento. São Paulo : ASTE, 1973. vol. II. SCHWANTES, Milton. Sofrimento e esperança no exílio.

Proclamar Libertação 23
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia