Prédica: Apocalipse 22.12-17,20
Leituras: Atos 16.6-10 e João 17.20-26
Autor: Roberto Ervino Zwetsch
Data Litúrgica: 7º Domingo da Páscoa
Data da Pregação: 31/05/1998
Proclamar Libertação – Volume: XXIII
Exultemos: Vem, Senhor Jesus!
1. Apocalipse é revelação
Quando temos de pregar sobre o Apocalipse, geralmente sentimos um frio na barriga. Sua linguagem nos parece estranha. Suas figuras, imagens, símbolos aproximam-se muito da pregação literal de certas igrejas e grupos com os quais não temos contato. Dos quais, aliás, preferimos manter boa distância.
E aí vem o nosso lecionário ecumênico obrigando-nos, em boa hora, a trabalhar com o Apocalipse. Mais uma vez esta prática da Igreja cristã de não escolhermos nós mesmos os textos para a pregação se mostra oportuna. Claro, temos de ser flexíveis e em certas ocasiões a vivência comunitária clama mais alto e indica textos relevantes para aquele momento. Mas hoje é dia de pregar e anunciar o evangelho conforme as visões do vidente de Patmos. E isso acontece no desterro e num dia de domingo, dia do Senhor (1.10)!
Por que esta nossa dificuldade? Fico pensando que isso pode acontecer pelas seguintes razões: a) não estamos vivendo um tempo de perseguição e crise como aquele das sete pequenas comunidades da Ásia Menor (1.11,20), às quais o vidente escreveu o seu livro. A nossa crise é de outra natureza; b) nós, pregadoras e pregadores, passamos por um tipo de formação científica que – se nos ajuda em muitos aspectos -nos atrapalha em outros, como aqui é o caso; c) fazemos questão de não sermos confundidos com grupos sectários; d) temos dificuldades para pensar de forma simbólica c alegórica.
Talvez tenha razão o antropólogo Otávio Velho, do Museu Nacional do Rio do Janeiro, ao nos alertar, no artigo O cativeiro da Besta Fera, que existe no Brasil, sobretudo em certas regiões, uma certa cultura bíblica que permite a camponeses e gente pobre articular sua visão de mundo com razoável coerência e sutileza, justamente com categorias bíblicas apocalípticas. Na Amazônia, é comum o povo da floresta usar a categoria do cativeiro para descrever sua situação. Desse cativeiro, só Deus é suficientemente grande e poderoso para salvar. Estamos, pois, de imediato e sem grandes dificuldades num terreno bem próximo ao Apocalipse, ao seu mundo e cosmovisão.
Quero dizer com isso que a dificuldade é mais nossa, de pregadores e pregadoras, que do povo. Talvez por isso a mensagem dos pentecostais seja mais popular que a das igrejas evangélicas históricas. Não defendo que agora tenhamos de copiá-los ou imitá-los. Em certas comunidades, a imitação fica tão grosseira e fora de lugar que prefiro o original! Registro apenas o fato para que apuremos o nosso olhar e a nossa percepção tanto da realidade como do texto bíblico.
Algumas informações gerais podem ser úteis na interpretação do texto. O Apocalipse geralmente é associado a catástrofe. Mas etimologicamente não é verdade. Certamente, encontramos nos diferentes apocalipses que pululavam no mundo judaico e judaico-cristão, entre os séculos II a.C. e II d.C., muitas descrições terrificantes dos últimos dias. Mas esse não é o tema principal. Apocalipse quer dizer revelação! Remete a uma mensagem dita por um personagem divino que tem endereço certo e objetivo claramente histórico. A questão não é tanto o fim da história, o fim do mundo, mas como viver hoje com os olhos do fim, do qual o vencedor já é conhecido (cf. texto de G. Wolff).
Pablo Richard, teólogo chileno, nos adverte que o Apocalipse de João é um livro popular cheio de esperança e consolo. Ele é a revelação dada por Jesus Cristo ressuscitado a um discípulo seu para fortalecer suas comunidades em situação crítica de perseguição e desfalecimento, na qual algumas podem estar esfriando enquanto outras estão se afastando do primeiro amor. Se Jesus ressuscitou, então a ressurreição dos mortos é possível e o tempo da ressurreição já começou (Richard, p. 38). O que importa é crer que este Jesus – o Cordeiro imolado que está junto de Deus em seu trono- está atuando hoje e aqui, assim como o fez no passado e o fará no futuro. Hoje ele vem! E quem crê nele diz: Vem! É nesta história presente que a mensagem apocalíptica quer ser ouvida, assumida e reverenciada. E tal audição fortalece a resistência aos poderes da besta que ameaça engolir as pequenas comunidades, persegue-as e até pode matá-las. Quem resistir obterá a coroa da vida!
2. A teologia do Apocalipse
A teologia do Apocalipse é teologia crítica. Ela se articula contra as tendências helenizantes e espiritualistas que já no fim do século I penetravam fortemente nas comunidades da Ásia Menor. Esse helenismo era típico de certos grupos da elite e gnósticos mais interessados na filosofia helênica, ambos distanciados do povo simples da comunidade cristã. Paulo enfrentou-os com veemência (cf. l Co), assim como João também o fez no Apocalipse (2.6).
A tradição apocalíptica da fé cristã remonta à apocalíptica judaica (cf. o livro de Daniel), mas não a copia. Ela está ligada principalmente à tradição profético-apocalíptica de Jesus, que vamos encontrar também em Paulo e nas primeiras comunidades (cf. Mt 24-25; Lc 21; Mc 13; l Ts 4.13-5.11; l Co 15; Gl l; Rm 1-8; Ef 6.10-20). Tanto isso é assim que E. Käsemann entende ser a apocalíptica o verdadeiro começo da teologia cristã primitiva, a forma e a interpretação mais antiga do kérygma. Mais tarde, a teologia ortodoxa da Igreja procurou afastar e quase eliminar a apocalíptica. Felizmente, os Pais da Igreja foram suficientemente sábios para nos guardar no Cânon pelo menos o Apocalipse de João, como já antes se fizera com o livro de Daniel.
Se Paulo bebeu nessa fonte e afirmou a sua teologia da cruz contra os arroubos dos espirituais, João nos oferece, no Apocalipse, a sua teologia do martírio, a teologia do testemunho que proclama fidelidade a Cristo diante dos poderes deste mundo que se mostram idólatras e enganadores, mágicos, ilusórios e assassinos. Temos aqui uma teologia francamente histórica e política! Uma teologia de resistência para tempos obscuros, incertos e marcados por muito sofrimento. Käsemann escreveu que possivelmente o preço que a teologia pagou pelo afastamento da fonte profético-apocalíptica dos inícios da teologia cristã foi muito alto, pois teria feito dos teólogos os herdeiros do pensamento grego sistemático (cit. por P. Richard, p. 38). Justamente o fato de aqui na América Latina privilegiarmos a ótica dos pobres e das minorias para uma releitura do texto bíblico seja, quem sabe, um dos caminhos para rompermos com a helenização do cristianismo.
Outra característica do Apocalipse é o seu conteúdo profético. Como na antiga profecia, esse é um livro escrito para um povo oprimido. Ele é o verdadeiro sujeito da apocalíptica. Numa circunstância em que tudo na realidade parece fechado, o Apocalipse reafirma que Deus é Senhor da história e que esses poderes aparentemente invencíveis, como o da besta e a grande prostituta, não são maiores que o Deus Todo-Poderoso, que reverenciamos no culto! Assim como Deus libertou o seu povo do Egito, Ele o fará de novo no tempo do poderoso Império Romano! P. Richard considera que o Apocalipse é uma reconstrução do Êxodo no coração do Império Romano! Proclamando tal sobe¬rania no culto, a comunidade se vê confortada e fortalecida para viver a diaconia do primeiro amor, a resistência da fé e o testemunho do senhorio libertador do Cristo até o fim, até a morte se for o caso. Sabe-se que no fim do século I houve perseguição e morte de muitos cristãos que ousaram negar o culto ao imperador romano, proclamando que Senhor é Cristo! Essa confissão foi considerada subversiva na época, pois, além de questionar o culto oficial do Império, que começou com Domiciano (81-96), propunha um tipo de vida comunitária que questionava a cultura dominante patriarcal, escravagista e idolátrica. J. Pixley informa que justamente na época em que foi escrito o Apocalipse de João é que o Império, sob o reinado de Trajano (98-117), se inteirou da existência dos cristãos. Entretanto, só bem mais tarde ocorreram as perseguições mais sangrentas, sobretudo em meados do século III e início do IV, sob Décio e Diocleciano.
Apocalipse como revelação significa desocultamento de uma realidade dura demais e até aparentemente sem saída, sob opressão, perseguição e morte. Numa tal situação, o vidente diz algo que interessa sobretudo aos justos, aos que não dobraram seus joelhos diante da besta, aos pobres da comunidade. Ele desfaz a cortina de fumaça que o sistema criou sobre a vida dessas pessoas impotentes e reafirma que a dimensão profunda da realidade não é esta, mas a do poder libertador de Jesus, o ressuscitado, aquele que agora revela uma boa notícia para nós! O céu não está distante, mas vem até nós. O céu é capaz de renovar a face da terra. Ele vem! Haverá novo céu e nova terra. E o Deus de toda terra habitará no meio de nós, como um verdadeiro sol de amor e de justiça, como o grande Consolador que enxugará toda lágrima vertida, apagando o pecado e a morte que nos querem destruir. Quem crê neste Senhor pode experimentar um pouco do céu já agora, nesta vida de dores e tribulações, mas também de testemunho, solidariedade e esperança.
Esse é, ao meu ver, o sentido do Apocalipse. O fundamental é que na presente situação, neste kairós, Cristo está presente para animar o seu povo e fortificar o seu testemunho, a sua martyría. O fim da história ninguém conhece, nem mesmo o autor do Apocalipse. Mas o que ele sabe, pois o ouviu do próprio Jesus, é que Cristo vem sem demora. Na verdade ele já está aí junto à sua comunidade, pondo fim aos sofrimentos e angústias.
3. Uma chave de leitura: a liturgia profética
Se observarmos o cap. l, vamos perceber que esta revelação acontece num domingo e numa forma litúrgica. Os primeiros oito versículos estão inseridos numa liturgia. João diz (1.4): Graça e paz a vós da parte d’Aquele que é, que era e que há de vir… E a comunidade responde: Àquele que nos ama e nos libertou de nossos pecados com seu sangue e de nós fez um Reino, sacerdotes para o seu Deus e Pai, a Ele glória e poder pelos séculos dos séculos. Amém. João diz: Eis que vem com as nuvens e todo o olho o verá… A comunidade responde: Sim. Amém!
Esta mesma estrutura se repete no cap. 22. Desde o v. 6 Jesus está falando. Há um diálogo entre Jesus, João e o anjo, que é um simples mensageiro, portanto não passível de adoração. Sua função é meramente apontar para Deus (v. 9: Não faças isso [prostrar-se], sou conservo teu, dos teus irmãos e irmãs, dos profetas [!] e dos que guardam as palavras deste livro. Adora a Deus!). No v. 8 João fala, o anjo o corrige (v. 9) e do v. 10 até o v. 16 é Jesus quem fala. Ele anuncia a sua soberania, a sua primazia desde sempre e reafirma a bem-aventurança dos que se lavaram na água da vida. Fora ficam os que repudiaram a fé, os idólatras e mentirosos. No v. 17 continua o diálogo litúrgico entre o espírito e a comunidade que clama pela vinda de Jesus: Vem! Ao mesmo tempo, a comunidade convida outros para que também venham e bebam gratuitamente da água da vida. João dá o seu testemunho (v. 18-19) e termina anunciando novamente a palavra de Jesus (v. 20): Sim, venho sem demora! E a comunidade termina: Amém. Vem, Senhor Jesus! A bênção do final da carta é praxe neste tipo de escrito (cf l Co 16.22s.).
4. Jesus diz: Eis que venho sem demora!
No final do Apocalipse a ênfase não é o fim do mundo, mas a presença já agora do Cristo ressuscitado. Ele vem agora, sem demora, para estar junto, comungar, participar da vida do seu povo, da sua comunidade. Há aí também um forte acento profético. Deus é o Senhor dos espíritos dos profetas (v. 6). P. Richard assinala que Deus pode ser entendido, nessa passagem, não só como aquele que inspira os profetas, mas também como o que vive no coração dos profetas. A gente poderia dizer que se trata do Deus que se manifesta por meio dos seus profetas, no seu testemunho corajoso e na vivência do ágape primeiro. Poderíamos entender o anjo e João como fazendo parte dessa comunidade profética a quem a revelação se destina, as sete igrejas que são notificadas das coisas que em breve deverão acontecer.
O verbo principal aqui é vir. Jesus afirma: Venho logo! Venho sem demora! Não se trata, porém, da segunda vinda, mas da vinda atual e presente de Cristo. Cristo vem para junto da sua comunidade profética e orante, para que ela resista aos encantos, mentiras e perseguições da besta. E sua presença é vitoriosa, tanto agora como no futuro, como foi no passado no dia de Páscoa. Trata-se de uma escatologia presente. E, ainda assim, não se trata de um Christus Victor, como no tempo das Cruzadas ou dos projetos imperialistas ocidentais. Trata-se, sim, do Cordeiro de Deus, cujo domínio se revela pelo amor, pela palavra, pelo testemunho e pela revelação da graça de Deus. A este Cristo vitorioso na graça é que o autor do Apocalipse se refere e a nenhum outro.
Há um perigo nessa comunidade, diante do qual o próprio profeta João pode se enredar. É o perigo da idolatria na comunidade! Não só diante da besta, mas na própria comunidade existem pessoas que podem desviar da verdadeira adoração. Adora a Deus!, diz o anjo. Na fala de Jesus, a partir do v. 10 fica-se sabendo que o Apocalipse não é palavra esotérica que deve ser segredada. É palavra para ficar aberta diante da comunidade, da própria vida e da história. É palavra pública e notória. Com muita sobriedade, Jesus afirma que no tempo presente o injusto continuará fazendo injustiça, o imundo continuará com suas imundícies, mas, em contrapartida, o justo continuará a praticar a justiça, e o santo, a santificar-se.
Nos w. 12-14 temos o adiamento da parúsia, do fim. Porque Jesus é o Senhor da História, o princípio e o fim, os bem-aventurados que lavaram suas vestes no batismo e no martírio (testemunho) terão direito a desfrutar da árvore da vida e entrarão na nova Jerusalém, na cidade liberta de toda opressão e maldade, de toda tristeza e pranto. Quem permanecer fiel receberá o galardão, a possibilidade de participar dessa felicidade maior, compartir da companhia do próprio Jesus no Reino futuro. E a prática de cada qual será examinada de acordo com o testemunho que tiver dado.
No v. 15 aparece uma palavra de juízo: fora da comunidade ficam os cães, feiticeiros, mágicos, idólatras, impuros, assassinos e mentirosos. Aqui, porém, não se trata ainda do juízo final, mas do juízo daqueles que, por suas obras, não têm mais direito a fazer parte da vida comunitária. São aqueles que, por sua prática, renegam o testemunho do evangelho. Palavra dura, como toda palavra profética.
Adiante, Jesus volta a falar. Ele é a raiz do povo de Deus, a videira verdadeira ou o luzeiro radiante que anuncia a alvorada de um novo dia (Vênus), isto é, a vitória sobre as trevas da noite. 2 Pe 1.19 também usa a mesma metáfora: confirma-se a palavra da profecia e fazeis bem em atendê-la, como a uma lâmpada que brilha em lugar tenebroso, até que o dia clareie e a estrela da alva (Vênus) nasça/se levante em vossos corações.
Esse Jesus que padeceu por nossos pecados, que foi morto, crucificado, ressurgiu e por meio de sua presença hoje e aqui inicia-se a libertação da comunidade que lhe é fïcl no testemunho e no amor.
A esse Jesus…
5. A comunidade responde: Vem, Senhor Jesus!
Penso que se poderia atualizar esse texto convidando a comunidade a vivenciá-lo liturgicamente. A liturgia pode se tornar uma experiência de fé, de conversão e de profecia, caso deixe o Espírito conduzir a comunidade do testemunho para a adoração e desta novamente para a prática da justiça aqui e agora.
A comunidade que responde à palavra de Jesus com o Vem, Senhor Jesus! não pode se resignar e encolher como se a parúsia estivesse aí, às portas. A comunidade que clama: Vem! – é a mesma que usa do discernimento para não se deixar enganar por falsos profetas. Esses são os que procuram torná-la dócil aos encantos da besta. É como se hoje a comunidade sucumbisse à idolatria do consumismo, do individualismo, do concordismo. A comunidade fiel é aquela que se firma na palavra da profecia e escuta aquele que é, que era e que há de vir. A esse ela se dirige e clama: Vem, Senhor Jesus! A revelação anunciada pelo vidente João vai nesta direção: suscita adoração verdadeira e prática consequente.
Aqui está o teu povo, o povo do teu testemunho, que te é fiel. E Jesus responde: Sim, venho sem demora! Venho já! E a comunidade diz: Amém. Vem, Senhor Jesus!
6. A mensagem do Apocalipse
Nestor P. Friedrich escreveu que a mensagem do Apocalipse reafirma o senhorio de Jesus Cristo e que o faz recontando a história. O Apocalipse mostra como o momento presente (o kairós) fica iluminado pela história passada que nos atesta a obra de Deus e de seu cordeiro pascal. Não por acaso, a fórmula verbal que mais aparece é a do passado (505 casos). Importa ressaltar, porém, o seguinte: esse passado, ao modo de uma releitura do Êxodo, a primeira experiência de libertação, aponta para o presente (241 casos), está em função da transformação do presente em direção à fidelidade ao Deus da vida (o futuro aparece em apenas 124 casos). Senão a mensagem do Apocalipse seria uma fuga, uma apelação para se abstrair das lutas do mundo e da própria história. As mensagens apocalípticas sempre foram vistas com certa desconfiança na história da Igreja justamente por seu inconformismo e sua crítica radical ao poder mundano de reis e príncipes. Apesar dos excessos de certos grupos, caberia verificar até onde esses grupos não estavam com boa dose de razão. O Apocalipse de João é um desses textos que chama à fidelidade do testemunho do evangelho em condições adversas e pouco olimistas.
Verdade é que muitas leituras do Apocalipse fazem justamente uma leitura literalista, sem captar as sutilezas simbólicas do texto, desvirtuando seu potencial crítico. São as interpretações fundamentalistas, dispensacionalistas ou neoconservadoras contra as quais precisamos nos insurgir. Li importante que a comunidade perceba que, com o Apocalipse, não dá para se brincar de vidente. A sua revelação indica um embate contra as estruturas econômicas, sociais, políticas, religiosas, culturais que cobram um tipo de integração conformista e não solidária no presente. Ele anuncia que este Jesus – cordeiro de Deus que nos oferece perdão de pecados e libertação – nos chama para o testemunho fiel neste mundo. Quem o ouvir estará compartindo do que ele promete. E quem o escuta continuará a praticar a justiça, o direito, a verdade, a solidariedade, ainda que a injustiça, a mentira e as promessas ilusórias sejam proclamadas incessantemente pelos incrédulos, feiticeiros e adoradores da besta, promessas essas anunciadas como o caminho mais vantajoso, belo e lucrativo. Claro que aquela fidelidade não é possível sozinho. Por isso é que a bem-aventurança se dirige à comunidade toda (v. 14). É a essa comunidade que a revelação anunciada por João vem animar e fortalecer com vistas ao testemunho e à prática da justiça no momento histórico que estamos vivendo. Tal comunidade conhece o alcance do seu compromisso quando afirma: Vem, Senhor Jesus! Pois começou a aprender e a tirar dessa oração a sua consequência. Ao clamar pela presença do ressuscitado, ela está disposta a segui-lo passo a passo neste chão brasileiro, juntando-se a grupos e pessoas que também não se conformaram nem se ajoelharam diante da besta.
Hoje vivemos um tempo de sombras e de um funesto consenso. O sistema neoliberal, que domina o mundo e se espalha a todos os cantos do planeta, se diz a única via para a felicidade. Os possíveis problemas são parte da solução. Se muitos milhares morrem, isto é necessário e até esperado. Se milhões de pessoas caem no desemprego estrutural e não têm mais chance de voltar à economia oficial, paciência. É assim mesmo. Resta-lhes a luta renhida do mercado informal (aprenderão a competir!), a ilegalidade ou a exclusão pura e simples.
Um romance lançado no ano passado conta a história trágica de Alberto, um fiel funcionário de uma empresa que, ao ser despedido, viu ruir dia após dia toda a sua vida, meticulosamente construída desde muitos anos. Sua esposa o abandona por outras razões. Sem perceber, ele pára na rua e vai decaindo sempre mais até o instante extremo da loucura e da morte violenta, absurda e sem sentido (cf. Tânia Zagury, A rampa, Rio de Janeiro, Record, 1997). O principal problema que o romance levanta, a meu ver, não é tanto a queda em si, mas a incapacidade que o personagem demonstra ao longo de toda a tragédia de viver e aceitar receber a solidariedade, a simples e humana solidariedade que, por exemplo, uma pobre e miserável mendiga lhe ofereceu quando ele agonizava na sarjeta. Essa personagem negra é de uma força sem igual no romance, não obstante a mesma desgraça que vive. Ela é uma das tantas boas samaritanas que transitam pelas ruas de nossas cidades, anônimas, desprezadas e sem ninguém que as reconheça como máscaras do Cristo ressuscitado.
A mensagem do Apocalipse – neste texto, pelo menos – não fala diretamente de solidariedade. Mas acena para ela ao anunciar a palavra de Jesus, aquele cuja solidariedade foi até o fim, a ponto de morrer por nós para que recebêssemos vida de graça! Que os injustos continuem a praticar a injustiça, que os mentirosos e idólatras continuem vendendo suas ilusões… Quanto a nós, façamos a justiça aqui e continuemos no cami¬nho da santidade, no caminho da vida que promove vida. Pode-se esperar menos do que isso dos seguidores do Cordeiro, do Cristo crucificado, da comunidade que exulta e canta Vem, Senhor Jesus!?
A vivência orante dessa solidariedade hoje em dia é quase um escândalo, para não dizer retrógrada. Pois é justamente aí que a comunidade cristã se diferencia do marasmo circundante. Ela ousa viver a solidariedade dos crucificados porque recebeu do Cristo crucificado e ressuscitado uma revelação muito clara e pública. Quem tem ouvidos para ouvir, ouça o que o Espírito diz hoje à Igreja!
Atos 16.6-10: A leitura de Atos nos coloca diante de algo estranho. Há momentos na história e na vida cristã em que o Espírito impede que se anuncie o evangelho. São períodos de muita opressão? Ou de indecisão? Ou inoportunos, simplesmente (cf. Mt 7.6)? O Espírito de Jesus pode nos fazer calar por vezes, impedindo o anúncio da boa nova? Parece que sim. Mas noutro momento ele surpreende o próprio apóstolo e aparece na pele de um jovem que conclama: Vem à nossa terra, e ajuda-nos! Então é chegada a hora de anunciar novamente o evangelho com toda intrepidez. Testemunho tem hora. É preciso saber discerni-la confiando no Espírito de Jesus ressuscitado!
João 17.20-26: A leitura do evangelho nos remete à oração messiânica de Jesus, na qual ele pede ao Pai que os seus amigos e amigas sejam um com ele como ele e o Pai o são. Que essa unidade indissolúvel seja inspiração e motivo para a unidade do povo de Deus! A resistência ao poder da besta e à força do mal neste mundo como expressão do testemunho cristão não pode acontecer de forma atomizada e fragmentária. Esta luta é de tal monta que o povo de Deus só conseguirá levá-la adiante unido ao Filho. Foi para isto que Jesus foi enviado. Testemunho e unidade, essas duas palavras ligam o texto da prédica ao texto do Evangelho de João.
7. Subsídios litúrgicos
No PL X (1984) o colega Leonídio Gaede havia formulado uma confissão de pecados e uma oração de coleta que me impressionaram por sua atualidade. Isso mostra que boas orações ultrapassam tempos e épocas. Não por acaso, ainda e sempre de novo nos voltamos para os Salmos como nosso manual de oração permanente e fecundo. Sugiro que se escolha algum Salmo apropriado para uma liturgia profética como a de Ap 22. Indicações possíveis: Sl 59 ou Sl 82.
A comunidade poderia ser convidada a recitar o texto, respeitando os diversos sujeitos que nele aparecem: Jesus, o anjo, João, a comunidade. Isso exigiria reescrever o texto para ser distribuído, ou, quem sabe, relido por um grupo previamente preparado.
O enfoque da pregação poderia centrar-se na questão: o que significa ser a comunidade deste Cristo – Primeiro e Último, A e Z, Princípio e Fim – nesta cidade? Que relação tem o nosso canto: Vem, Senhor Jesus! com a vida que levamos no dia-a-dia? Como vamos testemunhar hoje e aqui este evangelho da água da vida, da prática da justiça e da solidariedade, justamente num tempo que despreza a ajuda mútua e conspira contra o amor solidário e gratuito?
Seria bom chamar a atenção para o seguinte: o Apocalipse c um livro aberto; ele não deve ser fechado nem por nossas ideias nem por nossas ações e muito menos por nossos preconceitos. Também não necessita de acréscimos. Ele convoca, sim, para a adoração e o testemunho: quem tem sede que venha e quem quiser que beba de graça da água da vida! Em tempos de neoliberalismo vil essa mensagem pode causar muitos transtornos. Mas é isso que o Apocalipse não teme, porque ele confia nAquele que é, que era e que há de vir!
Cantos: HPD 182, 125. De O Povo Canta: 214, 152, 64, 47, 32. Por fim, transcrevo uma versão de um Salmo que ficou assim:
Dos justos será a terra
Esta é a promessa:
Os que esperam no Senhor
possuirão a terra.
Mais um pouco, e não haverá mais injusto;
você buscará o lugar deles,
e não existirá.
Mas os pobres vão possuir a terra
e deleitar-se com paz abundante.
Eu vi, Senhor, como o povo da terra
sonha com essa promessa.
Será que vais decepcioná-los?
Impossível!
Por isso, Senhor,
reúne este povo disperso
pelas beiras das estradas,
pelos cantos de mato
e infunde-lhe ânimo e muita fé.
Um dia, o injusto pagará por sua gula,
e os grilhões da escravidão
serão definitivamente quebrados.
Porque o Senhor é justo
e é apoio dos injustiçados.
A injustiça brada aos céus,
e tu não vais responder, ó Deus?
Nós confiamos em ti,
não como quem escreveu assim
nas notas do dinheiro.
Nós confiamos colocando-nos
ao teu serviço
em tempos bons e ruins,
na alegria e no sofrimento.
Ajuda-nos a manter a vigília!
Contra o medo, nós te pedimos:
aumenta a nossa fé!
Não nos deixes vacilar.
(Vigília, p. 18).
8. Bibliografia
CROATTO, J. Severino. Apocalíptica e esperança dos oprimidos (Contexto sócio-político e cultural do gênero apocalíptico). Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana, Petrópolis/ São Paulo/São Leopoldo : Vozes/Metodista/Sinodal, n° 7, p. 8-21, 1990/3.
FOULKES, Ricardo. El Apocalipsis de San Juan : una lectura desde América Latina. Buenos Aires/Grand Rapids : Nueva Creación/W. B. Eerdmans, 1989.
FRIEDRICH, Nestor Paulo. Faça as primeiras obras: Apocalipse 2.1-7. Estudos Bíblicos, Petrópolis/São Leopoldo : Vozes/Sinodal, n° 49, p. 71-80, 1996.
PIXLEY, Jorge. As perseguições: o conflito de alguns cristãos com o Império. Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana, Petrópolis/São Paulo/São Leopoldo : Vozes/Metodista/Sinodal, ns 7, p. 76-88, 1990/3.
RICHARD, Pablo. Apocalipse : reconstrução da esperança. Trad. Attílio Brunetta. Petrópolis : Vozes, 1996.
VELHO, Otávio. O cativeiro da Besta Fera. Religião e Sociedade, Rio de Janeiro : ISER/CER, vol. 14, n. l, p. 4-27, mar. 1987.
WOLFF, Günter. A utopia do fim e não o fim da utopia. Estudos Bíblicos, Petrópolis/São Leopoldo : Vozes/Sinodal, n° 49, p. 81-89, 1996.
ZWETSCH, Roberto E. Vigília : salmos para tempos de incerteza. São Leopoldo : Sinodal, 1994.
Proclamar Libertação 23
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia