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Prédica: Provérbios 8.22-31
Leituras: Romanos 5.1-5 e João 16.12-15
Autor: Valdemar Schultz
Data Litúrgica: 1º Domingo após Pentecostes (Santíssima Trindade)
Data da Pregação: 07/06/1998
Proclamar Libertação – Volume: XXIII
Tema:

1. Introdução

Trazemos como motivação para a reflexão deste texto o tema da X Assembléia Geral da Comissão Evangélica Latino-Americana de Educação Cristã (CELADEC), realizada na Cidade do México em 1994: Pelas ruas e avenidas a Sabedoria faz ouvir a sua voz (Pv 1.20). Partindo de uma leitura da realidade de sofrimento, pobreza e exclusão em que vive a grande maioria dos povos da América Latina, e tomando em conta as lutas e esperanças desses povos por uma sociedade mais justa e igualitária, a Assembléia tematizou o livro de Provérbios, estabelecendo uma relação com a sabedoria popular que permeia nossas ruas, mercados, praças e parques. Os conteúdos de Provérbios, bem como os métodos e a didática nele presentes, são de grande importância para a prática educativa, cristã e popular no nosso continente.

2. Contexto geral

Provérbios pertence a um dos três grandes blocos do AT: os escritos sapienciais, isto é, relativos à sabedoria. O livro combina duas correntes distintas de sabedoria: popular e profissional. Aquela provém do povo, do clã, e esta provém da corte, do templo. Que implicações pedagógicas uma tem a ver com a outra?

A literatura sapiencial desenvolve-se principalmente no período intertestamentário, pós-exílio babilônico (537 a.C.), quando a voz profética já não tem mais tanta força e a lei não determina mais o cotidiano da vida do povo. Já não há mais governo próprio, a terra está desolada e o templo destruído. A dominação política e cultural do Império Persa e depois do Império Helênico é muito forte. O contato internacional intenso e a instabilidade social promovem mudanças na forma de pensar e conceber a fé e a vida. Nesse contexto, o livro de Provérbios toma a forma de um manual para as novas gerações que vivem em uma época totalmente nova. Ele tem a função de instruir as novas gerações da sociedade israelita em meio aos desafios de um meio cultural secularizado e uma situação política de dominação econômica e cultural.

A sabedoria como conhecimento da experiência vivida, transmitida de geração em geração, adquire grande importância na vida do povo. Ela irrompe como eixo articulador, integrando elementos seculares e religiosos. A educação do povo veio a ser fundamental para a preservação dos valores e da fé israelitas em tempos de reconstrução (Pv 1.1-7).

3. O texto

O texto de Provérbios 8.22-31 pertence ao bloco dos primeiros capítulos do livro (1-9), cuja origem remete, provavelmente, ao século V. Nesse bloco se destacam dois temas: a educação do povo orientado pelo temor de Javé (1.7) e a sabedoria como uma personificação feminina de Deus. A sabedoria serve como instrumento de união entre Deus e os seres humanos e o mundo criado.

Provérbios 8.22-31 é um poema didático que fala do sentido colocado por Deus na sua obra criadora. O poema se vale de uma linguagem simbólica importada, mas traduzida para o momento histórico no qual os israelitas se encontram – comunidade da restauração. O ensino, neste poema, centra-se na experiência vivida e se alimenta do cotidiano e da observação do mundo criado. A vida diária não é um vazio; existem uma ordem, uma origem, um sentido para todas as coisas. Este sentido precisa ser conhecido e respeitado. A linguagem simbólica presente no texto tem finalidade didática: desperta interesse, provoca a reflexão e desafia à reação dos sujeitos educativos.

A simbologia feminina é usada para falar do mistério de Deus. A hokmah (sabedoria), bem como a ruah (espírito) e a torah (lei), são substantivos femininos. No caso, a sabedoria não o é apenas pelo gênero gramatical, mas é apresentada como uma personificação feminina de Deus. É apresentada como irmã, mãe, bem amada, dona-de-casa, pregadora, juíza, libertadora, promotora da justiça e outros papéis femininos com os quais se simboliza o poder de Deus.

Em Pv 8.22-31 se apresenta uma detalhada relação com a criação: a sabedoria existe antes do início do mundo como a primeira coisa criada por Deus (w. 22-26); ela encontra-se ao lado de Deus, em momentos fundamentais da criação (w. 27-29) e, por fim, está presente como arquiteta da criação e predileta de Deus (w. 30-31). Qual é o significado teológico e pedagógico da sabedoria?

Os caps. l, 8 e 9 falam da sabedoria como uma figura personificada. No primeiro capítulo, ela é a pregadora nas praças públicas, que transmite vida e exige justiça. No oitavo capítulo, é a arquiteta da criação. No nono, ela passa a ser a açougueira, vinhateira, aquela que envia profetas e age com força. A sabedoria é apresentada, por um lado, como uma figura transcendente; por outro lado, como mediadora entre Deus e a huma¬nidade, anunciadora da vida e promotora da justiça. Na concepção da fé judaica, a sabedoria não é um atributo divino, nem uma hipótese divina quase independente, intermediária entre o mundo e Deus, mas, provavelmente, mais uma personificação feminina do próprio ser de Deus na sua obra criadora e no seu agir com o mundo. A idéia de falar de Deus por meio de uma personificação feminina tem como objetivo demonstrar a intimidade de Deus, que é único e transcendente para com o mundo. As atividades da sabedoria são entendidas como a própria atividade de Deus.

Outra preocupação israelita é a de universalizar a ideia do Deus criador e libertador sob o impacto globalizador do imperialismo daqueles tempos. O culto helenizado à deusa Ísis é uma constante tentação para os judeus da diáspora. A sabedoria personificada é uma resposta a essa ameaça. O Deus de Israel é quem possui os méritos que se atribuem a Ísis. A sabedoria é, por isso, uma forma de revitalizar o potencial bíblico dentro de um novo contexto cultural. Ao usar elementos simbólicos do culto da deusa, os israelitas não estão cedendo em sua autodefinição religiosa, mas permitindo, pelo menos pedagogicamente, um contato social mais intenso e, ao mesmo tempo, neutralizando o fascínio causado pelo culto à deusa.

4. Jesus e a sabedoria

O cristianismo do primeiro século assimila a linguagem da sabedoria, entendendo a atividade e missão de Jesus como a de um profeta e filho da sabedoria enviado para anunciar o Deus libertador. Como mensageiro da sabedoria, ele chama a todos os que estais cansados e sobrecarregados e lhes promete alívio e descanso. Apresenta o seu jugo (discipulado da sabedoria) e diz que o mesmo é fácil, que o seu fardo é leve de ser carregado (Mt 11.28). Assim como, por vezes, aparece uma identificação de Jesus com a torah, também palavras e características da sabedoria eram associadas a Jesus. Um paralelo mais estreito com Pv 8.22-31 encontramos em Cl 1.15,16: Ele é a imagem do Deus invisível, o primogênito de toda a criação; pois nele foram criadas todas as coisas, nos céus e sobre a terra, as visíveis e as invisíveis (…) Tudo foi criado por meio dele e para ele. Ele é a luz da glória de Deus (Hb 1.3). Como a sabedoria, Jesus transforma as pessoas em amigas de Deus (Jo 15.15). Ele tem autoridade para doar vida a todas as pessoas que o amam (Jo 17.2).

Uma relação mais direta com a sabedoria e um confronto com o helenismo encontramos em uma das cristologias de Paulo em l Co 1.22-24: judeus pedem sinais, os gregos buscam sabedoria, mas nós pregamos a Cristo crucificado, escândalo para os judeus, loucura para os gentios. Apesar da aparente fraqueza e derrota (morte na cruz), Cristo crucificado é potência de Deus, sabedoria de Deus e fonte de vida. Em Jesus se encarnou a sabedoria de Deus, a fim de que ele manifeste a finalidade da sua criação e a profundidade da sua obra redentora. A simbologia da sabedoria presente em Jesus ajuda a nos libertarmos de um determinismo androcêntrico de Deus e de Jesus.

5. Pensando na proclamação

– Fazer um levantamento das imagens de Deus presentes cm ditos populares que mais se escutam. O que elas expressam?
– Existe uma relação dessas imagens com o texto de Pv 8.22-31?
– Como fazer uma revisão das verdades e tradições, dadas como revelação do passado, à luz de novas situações que o povo de Deus experimenta?
– Como a sabedoria, instrumento de união entre Deus e os seres humanos e o mundo criado, está ou poderia estar agindo na preservação da criação de Deus e na defesa da vida?
– De que forma a sabedoria, como dom de Deus, pode nos ajudar a devolver a voz e a vez dos que nada tendo são, e nada podendo sabem? Quais são os grupos excluídos, não valorizados?
– As mulheres têm uma presença marcante e uma atuação decisiva em todas as atividades da Igreja. Qual é o espaço de poder que elas ocupam? Seu saber está sendo valorizado? Sua sabedoria é integrada na proclamação e na missão da Igreja?
– Como uma cristologia que contempla uma simbologia feminina pode nos ajudar num encontro com Deus de uma forma mais ampla, íntima, igualitária e libertadora?

6. Referências bibliográficas

CASCANTE, Fernando A. Provérbios : un manual pedagógico para nosotros hoy? San José : CELADEC, 1994. 42 p. (Cuadernos de Estúdio, 29).
FIORENZA, Elisabeth Schüssler. As origens cristãs a partir da mulher: uma nova hermenêutica. Tradução por João Rezende Costa. São Paulo: Paulinas, 1992. 400 p.
JOHNSON, Elizabeth A. Aquela que é : o mistério de Deus no tratado teológico feminista. Tradução por Attílio Brunetta. Petrópolis : Vozes, 1995. 396 p. (Coleção Teologia Feminina, 4).
RAD, Gerhard von. La sabiduría en Israel: los sapienciales, lo sapiencial. Madrid : Fax, 1973. 426 p.

Proclamar Libertação 23
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia