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Prédica: Gálatas 3. (23-25) 26-29
Leituras: Zacarias 12.7-10(11) e Lucas 9.18-24 (25-26)
Autor: Cláudio Schubert
Data Litúrgica: 5º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 05/07/1998
Proclamar Libertação – Volume: XXIII
Tema:

1. Considerações introdutórias

No livro aos Gálatas Paulo adota um estilo de comunicação bem específico. Ele é abundante no uso de figuras de linguagem. Fala, por exemplo, da função do aio (3.24); de revestir-se de Cristo (3.27); de sofrer as dores do parto (4.19); de correr bem (5.7). Paulo traz também um bom número de perguntas retóricas, distribuídas especialmente nos cap. 3 e 4, nos quais encontram-se sua exposição doutrinária central. Os cinco primeiros versículos do cap. 3 são apresentados em forma de cinco perguntas. Outra característica de Paulo é que ele adota, em diferentes momentos da epístola, uma linha dura (2.4; 3.1); é enfático (1.6; 4.17); mas todavia amoroso (3.15; 4.12, 28).

2.0 conflito de fundo

Na Epístola aos Gálatas existe um conflito de fundo facilmente perceptível. A carta surgiu motivada, em boa medida, por causa desse conflito estabelecido na comunidade dos Gálatas. Paulo fala da existência de pessoas que estão se inclinando para o outro evangelho (1.6). Esses cristãos que proclamam esse outro evangelho perturbam a paz constituída e querem perverter o evangelho de Cristo (1.7). São pessoas que pre¬tendem que a Igreja adote normas antigas, como a circuncisão e a obediência à lei (3.2; 5.4; 6.12), mas eles mesmos não as obedecem (6.13). Na sua intervenção, Paulo não fornece novos elementos doutrinários daqueles anteriormente apresentados, mas reafirma e enfatiza o que já havia dito às pessoas que estão deixando se levar por esse outro evangelho. Segundo Kümmel (p. 389), os adversários gálatas representavam o legalismo judaico e eram judeus cristãos que queriam que as leis judaicas fossem observadas também no cristianismo.

Mais especificamente, o que existe é um conflito evidente entre o pensamento dos cristãos de origem judaica e a interpretação de influência grega. As duas concepções, em alguns momentos das cartas paulinas, são praticamente excludentes. Essa dificuldade de convivência entre as duas interpretações está bem presente no livro aos Gálatas. O motivo da influência judaica no cristianismo é óbvio. A contribuição helênica, mesmo não sendo tão explícita, é, no entanto, marcante em diversos textos no Novo Testamento.

No início do desenvolvimento do cristianismo, uma tendência filosófica grega encontrava-se em efervescência devido a intensificação de sua reflexão no aspecto doutrinário-religioso (Spinelli, p. 63). Esse fato levou filósofos platônicos ao extremo da contemplação espiritual. Os princípios que esses filósofos apresentavam constituíam-se no esforço de buscar um aprofundamento e renovação religiosa através da construção intelectual. Esse quadro facilitou uma aproximação e envolvimento da religiosidade filosófica helênica com o cristianismo. Até porque naquele momento o cristianismo se constituía na grande novidade religiosa.

A partir desse inter-relacionamento da tendência religiosa da filosofia grega e o cristianismo de certa maneira ainda emergente, surgem intelectuais gregos que defendem a religião cristã a partir da razão. Com isso, passaram a construir argumentos e sistemas teológicos que pudessem ter penetração no contexto cultural grego. Essa contribuição foi, sem dúvida, importante para o avanço do cristianismo entre os povos onde a cultura grega estava presente. Com isso, o cristianismo ultrapassou a cultura judaica. O próprio Paulo se declarava como enviado aos gentios (Gl 2.7-10). Como consequência, as primeiras comunidades cristãs desenvolveram-se doutrinariamente com algumas características diferenciadas em relação às comunidades judaico-cristãs (Wendland, p. 55). As características das comunidades judaico-cristãs baseavam-se mais na lei, entendendo-se como cristãs, mas continuavam praticando antigos ritos judaicos. Nessa concepção, elas exigiam, inclusive, a prática desses ritos aos novos ingressos no cristianismo (Goppelt, p. 265). Enquanto isso, nas comunidades de origem helênica desenvolvia-se um cristianismo livre de leis, mas fundamentado na fé. Essas duas teologias permeiam grande parte das cartas paulinas e do NT. O confronto chega ao auge na visão que Pedro tem em At 10.9ss. Esse confronto entre as concepções de origem judaica e grega foi, na verdade, o grande tema da controvérsia que Paulo teve que enfrentar em muitas comunidades e, especialmente, na dos Gálatas.

3. Nossa perícope

Nossa perícope encontra-se na segunda parte do livro (3.1 a 5.12), onde Paulo mostra a liberdade diante da lei. Faz isso demonstrando autoridade, pois fundamenta seu conhecimento com o conteúdo do AT. Mostra que a justificação está vinculada não ao cumprimento da lei, mas à promessa (Kümmel, p. 381). O texto em questão é uma argumentação que resulta numa espécie de síntese doutrinária da compreensão teológica paulina para os Gálatas.

V. 23: Paulo pensa numa fé específica e centralizada em Cristo, como evidenciou no v. 22. O sentido da lei, conforme a compreensão paulina nesse texto, na sua essência não era de punição, mas tinha a função de proteger as pessoas. Foi a partir de uma interpretação restritiva da lei que aconteceu o desdobramento normativo com sentido de reclusão. A fé cristã pôs fim à lei judaica no seu papel meramente punitivo.

V. 24: Aqui se define a função da lei no período pré-cristão: servir de aio/pedagogo. Essa figura de linguagem remete à função do paidagogós como aquela pessoa que acompanha e cuida de uma criança, mas que também é a responsável pela sua formação moral. Ao descrever a lei com essa metáfora, Paulo a circunscreve com sua função disciplinar. A lei era um agente ativo da salvação, mas sua função de paidagogós terminou com o advento da fé em Cristo. Apesar de essencial, a lei como paidagogós tem sua limitação, pois o acesso à liberdade somente é possível pela fé. Pode-se entender que indiretamente a lei tinha a função de levar à justificação.

V. 25: Esse versículo conclui o pensamento anterior. Chegou ao fim a função da lei como normalização. Disso não deve ser deduzido, no entanto, que a lei passa a inexistir para Paulo. Ele trata a lei, nesse caso específico, como um auxílio que encaminha para a fé em Cristo.

V. 26: É a fé e não a lei que define a filiação a Cristo. Isso é muito diferente do que se orientar apenas pela lei, porque ser filho de Deus somente é possível por intermédio de Cristo. Paulo concentra seu pensamento teológico na centralidade da fé em Cristo. A diferenciação na categoria entre os que são filhos de Deus e os que ainda são guiados pela lei tem o objetivo de fazer uma distinção entre os dois e evidenciar a superioridade do evangelho diante da lei. O todos, nesse contexto, quer abranger realmente todos: judeus e gregos. Essa proposta contrasta com a interpretação restritiva que os judeus cristãos faziam de Cristo, vinculando-o prioritariamente ao seu contexto cultural.

V. 27: A Epístola aos Romanos (6.3ss.) fala de conteúdo idêntico. Aqui o batismo revela sua importância por se tratar do início de um novo tipo de vida. Nesse aspecto, o batismo contrasta com a circuncisão, pois esta pode, no máximo, introduzir uma pessoa num sistema religioso legal. A figura de linguagem de Cristo vos revestistes revela a relação de proximidade entre Cristo e o crente. Esta vida nova inicia a partir do batismo e por isso ele é tão importante, numa comparação com a circuncisão.

V. 28: Havia uma diferença em ser judeu ou grego no contexto sócio-político e cultural. Também na comunidade cristã haviam diferenciações por esse motivo. Um exemplo de que esse assunto não é novo na comunidade dos Gálatas é o típico caso que encontramos em At 6. Iss., no qual os diáconos tiveram que ser instituídos para inibir a diferenciação entre cristãos, judeus e gregos no que tange à distribuição de alimentos. A proposição de Paulo é magnífica aqui: essa distinção já foi abolida por Cristo. Assim se estabeleceu um novo vínculo em Cristo que transcende os limites raciais, étnicos, culturais, econômicos, etc. Fundamentado neste novo vínculo em Cristo, Paulo propôs o fim da diferenciação entre as pessoas. A relação entre senhores e escravos deveria ser não mais de subordinação, mas permeada pelo sentimento de irmandade em Cristo, como filhos de Deus (v. 26).

V. 29: Paulo reforça sua tese de que em Cristo todos são um e com isso chega ao clímax de sua proposição: todos, tanto judeus quanto gregos, são herdeiros da promessa de Abraão, porque eles são de Cristo.

4. Reflexão teológica

No livro aos Gálatas, bem como na nossa perícope, encontramos um certo dualismo entre lei e fé. Para Paulo está claro que a fé tem relevância maior do que a lei. Ao mesmo tempo, ele dá uma conotação nova à lei diante daquilo que era sua interpretação corrente no universo judaico-cristão. A lei tem a função de servir como auxílio, para que a pessoa encontre-se com a fé, pois a partir da fé ela se torna livre para servir e não necessita mais da tutela da lei.

Essa liberdade que a fé trouxe diante da lei é tematizada por Paulo numa compreensão puramente teológica, pois é uma liberdade concedida pela graça de Deus aos seus filhos. Por sua natureza, o ser humano não tem acesso à liberdade que vem da fé, mas é chamado por Deus (5.13) a usufruir dessa liberdade. A lei não exerce mais uma relação de subordinação para quem se encontra na condição de filho de Deus. Essa liberdade perante a lei, no entanto, não é uma liberdade para o pecado, mas para o amor, isto é, para o serviço ao próximo (5.14ss.). Segundo Wendland, isso significa que o cristão também está livre da sujeição ao próprio eu (Wendland, p. 68), que é uma característica do pecado e da carne. Cristãos pertencem a Cristo e para ele vivem, portanto, não mais para si mesmos. Nesse sentido, a vida em liberdade significa a prática do serviço a Cristo, pois Cristo mesmo ocupou o lugar da lei. E, nesse aspecto, somente é possível ser servo de Cristo se a pessoa for de fato livre (3.13). A lei perdeu o seu poder, tanto de condenar o pecador como de regular a ação das pessoas. No lugar da condenação pela lei aparece a graça pela fé. Com isso Paulo não quer absolutamente rejeitar a lei, entendida como orientação divina, mas colocá-la como um auxílio que pode levar à fé.

Paulo considera o período anterior a Cristo como o tempo da lei. O próprio apóstolo, com sua experiência de vida, foi levado a reconhecer que a lei mantém o ser humano na prisão, desperta o pecado e leva a pessoa a procurar a autojustificação perante Deus. Nessa relação, a pessoa transforma-se em escravo da lei (Gl 3.23). A lei não concede vida ao ser humano, e pelas suas obras ninguém se tornará justo, mas a justificação somente será possível pela fé como graça de Deus. A redenção de Cristo perante a lei significou a libertação do ser humano (Gl 5.lss.; 4.4ss.).

Em Paulo, a lei ritual e cúltica do AT não serve mais como ponte entre a comunidade e Cristo. A lei foi substituída pela fé. Persiste, contudo, a submissão à lei dos Dez Mandamentos, mas numa relação intermediada pelo amor. É no amor que se cumpre toda a lei (Gl 5.14). Diante da humanidade pecadora, tanto para judeus como para gregos, continua valendo a lei com o seu poder condenatório. Somente a fé em Cristo e o batismo podem libertar do juízo da lei. Diante da fé e do batismo, a lei é transformada no mandamento da graça que auxilia e ampara. A função da lei, por intermédio da fé, mantém os cristãos vinculados à vontade de Deus e lhes proporciona acesso à liberdade, de tal modo que não pode mais ser para o pecado (Gl 5.13), mas uma liberdade que se concretiza na prática do amor ao próximo.

5. Meditação

O cristianismo proposto por Paulo não quer levar a uma uniformidade, mas à igualdade. Na uniformidade todos seriam nivelados a partir de um protótipo idealisticamente perfilado e perderiam, com isso, justamente aquilo que têm de mais precioso, isto é, a individualidade. Na igualdade, essa individualidade é preservada e até reforçada. Na ideia paulina de que não pode haver judeu nem grego; nem escravo nem liberto; nem homem nem mulher; porque todos vós sois um em Cristo (v. 28), os dons, a capacidade individual, as aptidões não se desdobram como diferenciação social na esfera de unia sociedade competitiva, mas as especificidades são exatamente preservadas. Parte-se do pressuposto de que tanto judeus quanto gregos têm potencial que deve ser valorizado de modo igualitário.

Essa compreensão paulina constitui-se, na verdade, numa crítica forte contra a diferenciação social, em que uma das causas é a maximização de alguns dons ou capacidades de certa parcela da população em detrimento de outras qualidades da grande maioria. A moderna tecnologia da informática e as ciências jurídicas, só para citar dois exemplos, são casos típicos em que ganha valorização aquele profissional que sabe executar, relacionar dados, normas ou regras segundo um código de normas ou um programa existente. Em última análise, o que vale é a capacidade de interpretar o código jurídico ou os programas de computador que alguém produziu movido por certa intenção e interesse. A moderna informática não estimula a reflexão, mas somente a relação de dados. É considerado um bom profissional aquele que sabe executar bem o que outros já pensaram e elaboraram anteriormente, com vistas a um determinado resultado econômico e de monopólio de poder.

Os profissionais que não têm esse dom que a moderna tecnologia da informática exige, ou simplesmente não se contentam com uma mera execução do código jurídico, mas querem pensar, influir, dar sua contribuição pessoal como agentes de transformação, têm dificuldades para conquistar seu espaço profissional. Diante disso, o texto em questão mostra um questionamento: a sociedade deve ser permeada pelos diferentes dons, capacidades e valores existentes, permitindo que cada aptidão floresça. Paulo chama a atenção e quer preservar a individualidade pessoal que se expressa na diversi¬dade de dons na Igreja e na sociedade.

Por isso, Paulo não se restringe somente aos judeus. Esse todos são todos aqueles que optam pela proposição de Cristo e que o apóstolo apresenta. Mesmo que o discurso universalista de Paulo seja restritivo ao âmbito que o cristianismo pode abarcar pela sua especificação doutrinária, o mais importante, no entanto, é que todos podem ter acesso à proposta da qual Paulo faz marketing. E essa proposta é essencialmente diferente do dogma judeu-cristão.

No livro aos Gálatas, e na atuação paulina como um todo, percebe-se que a teologia perfilou-se fundamentalmente a partir de sua inter-relação com a realidade social e com outros conhecimentos existentes. Desse modo, é na inter-relação entre teologia e sociedade que aquela se constitui e pode passar a corresponder aos desafios e conflitos emergentes da realidade numa dimensão emancipadora.

6. Para refletir

Creio que um dos maiores desafios que temos como Igreja na atualidade c o de aterrissar a nossa teologia na realidade brasileira. Por mais que o esforço aconteça, muitas vezes não se sente o retorno na mesma proporção da energia investida. As causas podem ser diversas. Vejo na nossa perícope e, de uma maneira mais clara em todo o livro aos Gálatas, um indicativo que pode auxiliar a nossa reflexão sobre esta temática. Seguindo a hipótese de um inter-relacionamento entre o cristianismo e a corrente filosófica religiosa grega, temos, como resultado desse diálogo, uma proposta teológica com grande inserção entre os povos influenciados pela cultura helênica, enquanto que o cristianismo de tradição judaica ficou com sua ação localizada. Avalio que no nosso caso, como IECLB, a reflexão não deva ser somente de âmbito cultural e nem estar nela localizada de modo prioritário. O foco central, a exemplo de Paulo, deve ter como objeto de avaliação o diálogo entre a teologia e as ciências afins.

Cabem, nesse específico, algumas perguntas motivadoras como as seguintes. Até que ponto: a) a teologia está preparada para dialogar com outras ciências na prática pastoral e comunitária? b) Temos consciência de que não podemos dialogar com as outras ciências tendo como argumentos, a priori, nossos pressupostos teológicos e metodológicos? c) A teologia reconhece as outras ciências como parceiras de igual relevância para a discussão contextual e até eclesiológica? d) A teologia deixa se questionar e está disposta a aprender de outras ciências? Creio que o exemplo do cristianismo judeu e grego serve como auxílio nesse aspecto da reflexão.

7. Pistas para a prédica

* O eixo central da prédica poderia ter como referência a ideia de que ser cristão não pode ser serviço obrigatório, mas é graça.

* Outro aspecto deveria girar em torno da grande novidade de que não há mais judeu e nem grego, mas todos são um em Cristo. Isso tem desdobramentos inevitáveis para dentro da vida eclesial/comunitária e social, onde essa máxima paulina em muitos momentos ainda não foi ouvida. Nesse aspecto, o texto tem elementos para um forte questionamento teológico e social.

* A dica que Paulo dá também é boa para a pregação, isto é, olhar a funcionalidade da lei a partir da fé. A lei não é mais um elemento determinante, mas serve como auxílio. Ela existe para servir o ser humano e não o contrário. A lei nos auxilia, nos orienta (são inúmeros os exemplos que podem ser usados para ilustrar esse pensamento, desde o velho e conhecido exemplo de como a observação das leis, dos sinais de trânsito podem ser vitais ou não, até de como observar as instruções normativas para conseguir operar um programa no computador).

* O texto é um convite muito bonito. Gl 3.23-29 tem uma relação, em termos de proposta, muito próxima ao tema da IECLB para o biênio 1997/1998: Aqui você tem lugar. Dependendo da dinâmica da comunidade e de como o tema do biênio está sendo trabalhado, ele poderia auxiliar na concretização da prédica.

8. Bibliografia

GOPPELT, Leonhard. Teologia do Novo Testamento. 2. ed. São Leopoldo : Sinodal; Petrópolis : Vozes, 1983.
GUTHRIE, Donald. Gálatas : introdução e comentário. São Paulo : Mundo Cristão/Vida Nova, 1984.
KÜMMEL, Werner G. Síntese teológica do Novo Testamento. 3. ed. São Leopoldo : Sinodal, 1983.
SPINELLI, Miguel. Filosofia & Ciência. São Paulo : Edicon, 1990.
WENDLAND, Heinz D. Ética do Novo Testamento. 2. ed. São Leopoldo : Sinodal, 1981.

Proclamar Libertação 23
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia