Prédica: Gálatas 5.1,13-25
Leituras: I Reis 19. (14-18) 19-21 e Lucas 9.51-62
Autor: Flávio Schmitt
Data Litúrgica: 6º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 12/07/1998
Proclamar Libertação – Volume: XXIII
Tema:
1. Introdução
Tensão, contradição, conflito e cruz são a marca registrada do evangelho. Assim aconteceu com Jesus, foi o que experimentou o apóstolo Paulo e é isso que testemunham nossos dias. Este é o preço da salvação: fel, suor e sangue. Esse é o custo da liberdade.
A Carta aos Gálatas nos remete ao cerne da ambiguidade da vida em Cristo: justificados pela fé estamos em paz com Deus e em guerra com o mundo. Em nome da liberdade Paulo defende o evangelho de Jesus Cristo, o filho de Deus, nosso Senhor.
2. A carta e seus atores
Pela argumentação da carta é possível verificar que, no passado, os gálatas viveram no paganismo. Através de Paulo, há pouco, eles abraçaram a fé no evangelho de Cristo.
Repentinamente, porém, estão a ponto de voltar atrás por causa da pressão de pregadores que vieram de fora.
Antes de Paulo a situação dos gálatas era a seguinte: completo desconhecimento de Deus e culto a falsas divindades. Falsos deuses (4.8), adoração de forças da natureza (43.9) e jugo da escravidão fazem parte do coquetel no qual se encontravam quando foram alcançados pelo evangelho.
A origem histórica dos gálatas remonta ao século III a.C., quando tribos celtas se fixaram na Ásia Menor. O seu último rei foi Amintes, que morreu em 25 a.C., deixando seu reino como herança para os romanos. No tempo de Paulo eles faziam parte da província romana da Galácia, cuja capital era Ancira, atual Ancara.
A origem da comunidade, conforme At 13.13-14.26, está diretamente relacionada com a atividade missionária de Paulo e Barnabé no sul da Ásia Menor. Na segunda viagem missionária, além do sul, Paulo, acompanhado de Silas (At 16.6-8), percorreu a Frigia e o território gaiata.
Depois de Paulo a vida dos gálatas transformou-se radicalmente. Eles acolheram Paulo doente (4.13). Ao acolhê-lo, também receberam o evangelho da cruz (3.16) e se deixaram batizar (3.27). Não viveram mais como judeus (4.12a).
A fé foi uma resposta ao chamado de Deus. Eles passaram a viver uma relação pessoal com Deus, sem intermediação de ídolos. Resultado: tornaram-se filhos de Deus (3.26). Paulo sublinha que na passagem para a fé cristã os gálatas passaram por um processo de libertação (5.1). Emanciparam-se dos deuses que nada são (4.8), da escravidão do mundo (4.3,9), da carne (5.24) e da lei (3.13).
O relacionamento com Cristo e com o Pai é completado com o dom do Espírito (3.2-4). Os sinais carismáticos entre os espirituais (6.1) se tornam visíveis nos milagres (3.5) e no efeito do Espírito presente e atuante em seus corações (4.6).
Não nos é possível determinar como, onde, quando e por meio de quem a notícia sobre os gálatas chegou a Paulo. Sabemos que ele foi informado. Pelo teor da carta, não há por que duvidar da veracidade das informações.
Tudo ia bem (5.7). Porém subitamente os gálatas são impedidos de seguir a verdade. O apóstolo fica surpreso (1.6). Seus fiéis querem se deixar circuncidar (5.2), se submeter novamente à lei de Moisés (4.21) e aceitar o calendário religioso: guardar dias, meses, épocas e anos (4.10). Eles estão dispostos a acrescentar prescrições e proibições à fé. Depois de terem iniciado no Espírito, querem voltar à carne (3.3).
Na virada dos gálatas a pessoa de Paulo não permanece impune. As palavras do apóstolo indicam o teor da questão: tornei-me inimigo ao pregar a verdade? (4.16.) O tom é forte: ó gálatas insensatos! (3.1.) A situação não é fruto da inspiração divina (5.8). Ela é consequência da ação sedutora (3.1) de pregadores que foram até a Galácia perturbar e instigar (1.7, 5.10,12).
A crise na comunidade tem seus causadores. O que está acontecendo não é um processo autônomo, mas um fenômeno induzido. Paulo distingue entre os gálatas, chamando-os de vocês, enquanto os agitadores anônimos são mencionados como eles. Pelos dados esparsos e a partir da argumentação podemos criar um quadro para compreender o que pregam:
a) conferem valor decisivo à circuncisão;
b) impõem calendário celebrativo de dias, meses, estações e anos (4.10);
c) celebram o culto da observância da lei mosaica.
Junto com isso vem a obra difamatória contra Paulo. Perturbadores e pregadores de um evangelho compatível com a circuncisão e a lei sustentavam que Paulo não era um verdadeiro apóstolo de Cristo, nem de longe comparável com os apóstolos de Jerusalém (Barbaglio, p. 17). A defesa de Paulo deixa entrever as acusações que rebate: apostolado (1.1), doutrina (1.11-12), considerada tomada de outros, à medida humana; e a mensagem de Pedro (2.1ss.) respaldada pelas autoridades de Jerusalém. Paulo é acusado de usar golpes baixos (1.10) e de ser oportunista, de pregar um evangelho liberal, que não exige nada dos pagãos.
Pelas acusações dirigidas a Paulo é possível perceber que elas procedem de judeus cristãos empenhados numa restauração teológica e prática do judaísmo no interior da fé em Cristo. São círculos judaicos apocalípticos (Barbaglio, p. 18).
3. Texto
3.1. Delimitação
Nossa perícope apresenta duas partes. 5.1 é parte do bloco que trata da defesa doutrinal (3.1-5.12). O versículo retoma e conclui o tema da liberdade em relação à lei e também serve de ponte para a parte parenética que inicia em 5.13. O trecho de 5.13-25 é parte do bloco parenético – resultante ética (5.13-6.10). Paulo pretende excluir possíveis mal-entendidos em torno do evangelho da liberdade.
Divisão:
v.1 – tese central: Cristo libertou para a liberdade;
vv. 13-15 -exortação;
vv. 13-14 – liberdade segundo Paulo;
v. 15 – liberdade segundo os gálatas;
vv. 16-25 -opção: carne ou Espírito;
vv. 16-18 – carne versus Espírito;
vv. 79-27 – catálogo dos vícios: obras da carne; v
v. 22-23 – catálogo das virtudes: fruto do Espírito;
vv. 24-25 – conclusão: vida nova.
3.2. Comentário
Em 5.1 Paulo coloca a alternativa: liberdade ou escravidão, carne ou Espírito. O fundamento da liberdade não é um princípio filosófico ou moral. Jesus é a causa, o meio e a consequência da liberdade. A liberdade acontece na tensão entre manter-se firme na liberdade em Cristo ou entregar-se à escravidão, às antigas práticas judaicas e à pressão que vem da carne. Liberdade não é uma conquista que se faz uma vez e vale para sempre. É condição sob constante ameaça. Ela precisa ser defendida e amadurecida nas opções da vida.
A essência da liberdade é a prática do amor ao próximo (5.13-14). O cumprimento da lei se resume num mandamento: amar ao próximo. A vida na liberdade pode ser verificada no serviço ao próximo e na resistência à pressão que vem da carne. O amor é a plenitude da lei.
O conceito de liberdade dos interlocutores do apóstolo, em especial dos falsos pregadores, diverge em essência do evangelho de Paulo.
Na sequência, Paulo retoma o fiador da liberdade cristã já mencionado em 5.5. O Espírito atualiza a liberdade. É ele quem garante o desabrochar do amor (Gorgulho). Do conflito entre Espírito e carne Paulo visualiza duas possibilidades: liberdade ou escravidão. Desejo da carne e Espírito são duas orientações irreconciliáveis, chegam a ser antagônicas até, excludentes.
Nos vv. 19-21 Paulo enumera as obras da carne. Essas obras cobrem o âmbito do sexo, da religião, da vida comunitária e das emoções. Elas conduzem à exclusão do Reino de Deus. Paulo constata que por si só a pessoa é incapaz de livrar-se da carne (Rm 7.14-23).
Em seguida, Paulo enumera o fruto do Espírito. Esse fruto é múltiplo. Ele conclui invocando alguma lei que possa fazer o que o Espírito faz. O fruto do Espírito não c produto do que a pessoa ou a comunidade possam realizar, mas consequência do que Deus pode fazer.
Nos vv. 24 e 25 ternos a conclusão das conclusões: quem vive pelo Espírito também deve se deixar guiar pelo Espírito. Ambiguidade aqui não tem lugar. Os que são de Cristo crucificaram paixões e desejos, obras da carne.
4. Meditação
Paulo se vale de binômios fundamentais de sua teologia para proclamar sua posição e visão do conflito. Liberdade/escravidão, obras da carne/fruto do Espírito, carne/ Espírito são alguns dos enunciados chaves do texto.
A questão fundamental colocada pela passagem levanta a pergunta acerca do caminho que conduz à liberdade, à salvação. A liberdade passa por Jesus ou pela lei conchavada com as tradições judaicas e a circuncisão?
Paulo argumenta que a lei não é capaz de elevar o ser humano ao padrão de vida contemplado no Espírito. A força libertadora da cruz se manifesta no Espírito. A presença do Espírito é a graça que atualiza a liberdade.
A lei tem seus limites. Ela apenas indica o que deve ser feito e não tem força para orientar para a liberdade. A lei não é capaz de resgatar, de conduzir a natureza humana ferida e desorientada, curá-la e orientá-la para a vida, para a liberdade. Ela não cria a salvação.
A liberdade é um processo conquistado na cruz e que se atualiza na vida em amor. No processo de participação no amor a pessoa passa a viver e andar no Espírito. O ato de amar faz o ser humano penetrar na realidade da vida plena, livre.
Ao mencionar as obras da carne, Paulo fala da natureza humana. O gênero humano, por mais que queira, é incapaz de libertar a si mesmo da essência de sua natureza. As obras da carne levam à morte.
Somente a intervenção do Espírito possibilita ao ser humano orientar a sua vida para o Reino. O Espírito reconduz a pessoa para o caminho onde a força libertadora da cruz garante a vida.
Pelo texto podemos verificar que os cristãos de Gálatas reconheciam a função salvífica da morte e ressurreição de Jesus (1.4). Porém, com a vinda de pregadores estranhos, acrescentaram um segundo fator salvífico decisivo: a observância da lei e a circuncisão. Com isso relativizaram a função salvífica de Cristo.
Paulo rejeita completamente a tese da adição e apresenta a alternativa que se contrapõe: Cristo ou a lei. Com isso o apóstolo evidencia o caráter salvífico exclusivo da morte e da ressurreição e rejeita qualquer peso salvífico para a lei.
5. Pista para a pregação
Proponho duas possibilidades, cada uma delas, por sua vez, pode ser desdobrada novamente. Primeiro, abordar o texto no contexto de tensão da carta. Metodologicamente, como Paulo trata o conflito? O apóstolo se dirige à comunidade. Seus opositores permanecem o tempo todo anônimos, como pano de fundo. Ele procura esclarecer a comunidade e não atacar os gálatas, mesmo quando se vale de expressões fortes. Os ataques são desferidos contra os adversários. A pedagogia do apóstolo merece a nossa atenção.
Quanto ao conteúdo, a comunidade de Gálatas vive um processo em que o cristianismo está sendo reduzido a uma trajetória normativa fundamentada na lei. Duas propostas de comunidade estão em jogo. De um lado, um jeito de ser Igreja que se identifica com o judaísmo e a cultura judaica. De outro lado, um cristianismo aberto a toda humanidade, desligado de condicionamentos históricos e culturais; uma comunidade marcada pela opção fundamental da fé e do amor e não do legalismo. Trata-se de uma Igreja aberta, universal (3.28), na qual os fatores históricos e culturais não são condição para nela se ter lugar.
Além da questão eclesiológica, há também um critério soteriológico muito claro na visão de Paulo. O apóstolo ressalta que a observação de normas éticas e práticas religiosas não credenciam a comunidade para o Reino de Deus. Somente vivendo na dinâmica profunda do amor centrado no Cristo morto e ressuscitado a comunidade tem acesso ao Pai.
Uma segunda proposta sugere fixar a atenção na própria perícope e explorar conceitos centrais da teologia paulina: liberdade, vida no Espírito. Aqui a densidade teológica do texto abre possibilidades para contemplar a multiplicidade de contextos em que estão inseridas as nossas comunidades.
6. Bibliografia
BARBAGLIO, Giuseppe. As Cartas de Paulo (U). São Paulo : Loyola, 1991. (Coleção Bíblica Loyola, 5).
GORGULHO, Gilberto, ANDERSON, Ana Flora. Paulo e a luta pela liberdade. São Paulo : FIA, 1988. (Polígrafo).
SANDERS, E. P. Paulo, a lei e o povo judeu. São Paulo : Paulinas, 1990. (Biblioteca de Estudos Bíblicos).
SCHMIDT, Karl Ludwig. Em Gang durch den Galaterbrief. Zürich : Evangelischer Verlag 1947 (Theologische Studien, 11/12).
Proclamar Libertação 23
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia